O salto do sapato afundava na terra molhada a cada passo. Aurora caminhava com firmeza, apesar do vestido pesado e do coração ainda acelerado. Lá dentro, na igreja, o caos reinava: convidados murmurando, Sabrina fingindo preocupação, Gustavo provavelmente em pânico tentando entender por que a noiva perfeita o deixara no altar.
Ela não olhou para trás.
Parou na calçada, tirou o celular de um bolso escondido costurado por precaução — uma pequena rebeldia que a Aurora de antes jamais teria — e chamou um táxi.
— Me leve pra longe — foi tudo o que disse.
Horas depois, Aurora se viu diante de outro espelho, num quarto simples de hotel. A cama era dura, as paredes impessoais, mas aquilo era liberdade.
Longe da casa dos pais. Longe da máscara de noiva feliz. Longe da armadilha da qual quase não escapou.
Ela arrancou o vestido com raiva. As rendas se rasgaram, as pérolas caíram pelo chão.
O banho foi longo, como se pudesse lavar os anos de submissão, a ingenuidade, e o gosto da morte que ainda morava em sua memória.
Vestiu-se com o que pôde comprar numa loja de beira de estrada: uma calça jeans larga, uma blusa cinza e um casaco velho.
Sentou-se na beirada da cama e pegou um caderno do criado-mudo. Precisava escrever. Pensar com clareza. A adrenalina estava passando, e agora vinha o frio, o medo, mas também a determinação.
Ela tinha voltado por um motivo.
Escreveu no topo da página, com letras firmes:
"O QUE EU PRECISO FAZER."
E começou a listar:
1. Descobrir quando começou a traição entre Gustavo e Sabrina.
2. Coletar provas — mensagens\, ligações\, registros de encontros.
3. Descobrir se alguém mais estava envolvido.
4. Arruinar a imagem pública de Gustavo\, lentamente.
5. Expor Sabrina — da forma mais dolorosa possível.
6. Reconquistar sua liberdade e sua vida.
7. Descobrir quem me salvou.
Ela sublinhou o item sete.
Porque agora ela lembrava.
Nos momentos finais da outra vida, quando tudo escurecia, ela achou ter visto um vulto, alguém… uma mão quente segurando a sua.
Durante muito tempo acreditou que fosse Gustavo. Que ele tivesse se arrependido e chamado ajuda.
Mas agora ela sabia a verdade: Gustavo não salvou ninguém. Ele foi quem a matou.
Então… quem foi?
Quem a encontrou sangrando e a levou ao hospital? Quem cuidou dela nos últimos instantes? Quem garantiu que ela tivesse uma segunda chance?
Essa resposta podia mudar tudo.
Talvez ela tivesse um aliado que jamais conheceu. Talvez o único que enxergou sua dor — antes mesmo dela.
Aurora encostou a cabeça no travesseiro, mas não dormiu.
Pegou o celular, abriu a conversa com Sabrina. A tela mostrava meses de mensagens falsas, fotos, risadas… todas elas agora um teatro patético.
Digitou, sem pensar muito:
Aurora:
“Você lembra quem me encontrou naquele dia?”
Visualizado.
Nenhuma resposta.
Depois de alguns segundos, ela digitou outra coisa:
Aurora:
“Tudo o que estava escondido… vai começar a aparecer.”
A mensagem foi lida.
Sabrina não respondeu.
Mas Aurora sabia: naquela noite, não seria ela quem perderia o sono.
Ela fechou o caderno com um estalo.
A partir de agora, ela não correria mais de nada.
Ela voltara do inferno. E não sairia desse mundo em silêncio de novo.
O céu amanhecia devagar, tingindo a janela do quarto com tons acinzentados. Aurora não havia dormido. A ansiedade vinha em ondas silenciosas, mas não era mais paralisante. Agora, ela era útil. Era o fogo que alimentava sua lucidez.
Ao sair do hotel, enrolou os cabelos num coque simples, colocou um óculos escuro e se escondeu dentro de si mesma. Precisava desaparecer por fora para aparecer por dentro — onde o plano já começava a tomar forma.
A primeira parada foi no hospital mais próximo à antiga casa onde ela morreu.
Mesmo com o tempo voltando, a lembrança da dor era viva demais para ignorar. Sabia exatamente onde caiu, onde sentiu o sangue se espalhar, onde o frio começou a tomar conta. E lembrava — como um vulto embaçado — da voz que sussurrou: “Vai ficar tudo bem.” Não era a voz de Gustavo.
Ela precisava confirmar o que só agora ousava acreditar: alguém a encontrou. Alguém a socorreu. Alguém foi contra a sentença de morte assinada pelo homem que ela amava.
No balcão do hospital, ela se aproximou com cautela.
— Bom dia. Preciso de informações sobre uma entrada no pronto-socorro, há cerca de dois anos. Um caso de agressão grave… uma mulher em estado crítico. Não tenho certeza se era eu mesma. Estava sem documentos, dizem.
A recepcionista a olhou com estranheza.
— Você era a vítima?
Aurora assentiu, devagar.
— E está tudo bem com você agora?
Ela forçou um sorriso.
— Agora estou.
A moça hesitou, mas se levantou.
— Espere um pouco. Vou chamar alguém da equipe de registros antigos.
Meia hora depois, um enfermeiro de jaleco branco surgiu. Tinha olhar gentil e um andar firme.
— Aurora Brandão?
Ela ficou tensa.
— Sim. Sou eu.
Ele se aproximou, com um tablet em mãos.
— Eu lembro de você.
Aurora engoliu em seco.
— Você… estava lá?
— Eu estava de plantão quando te trouxeram. Você chegou com o crânio fraturado, sangrando muito. Nenhum documento. Achei que não fosse sobreviver. Mas você lutou. E alguém insistiu pra que te atendessem antes de qualquer burocracia.
Aurora arregalou os olhos.
— Alguém… Quem te trouxe?
O enfermeiro hesitou.
— Um rapaz. Ele não disse o nome. Parecia nervoso. Deixou você na maca, pressionando o corte com as próprias mãos. Só disse: “Por favor, ajudem ela. Ela foi traída.” E sumiu.
A garganta de Aurora fechou.
— Você lembra como ele era?
— Jovem. Alto, moreno, olhos escuros. Usava um moletom. Ah… e mancava levemente de uma perna.
Aurora ficou muda. Nunca conhecera alguém com esse perfil entre os amigos de Gustavo.
E se não era conhecido… então por que aquele homem sabia da traição? E por que ajudaria uma mulher desconhecida?
— Você teria imagens das câmeras? Da entrada?
O enfermeiro balançou a cabeça.
— Isso já é com a administração. Mas posso te dar uma cópia do relatório de entrada e o horário exato. Talvez ajude a procurar.
Ele imprimiu o documento e entregou a ela com um olhar solidário.
— Seja lá o que aconteceu com você, parabéns por estar de pé. Poucos saem daquela sala vivos. Você foi sorte... e força.
Aurora pegou o papel com dedos trêmulos.
Força.
Sim. Ela tinha.
Mas agora queria algo a mais: respostas.
Saiu do hospital sentindo o peso dos anos se tornarem mais leves. Não estava mais presa no passado. Estava começando a remontar o quebra-cabeça da sua própria salvação.
E no fundo, uma pergunta latejava como um eco:
Quem era o homem do moletom… e por que ele a salvou?
Ela descobriria.
Nem que tivesse que revirar o mundo inteiro.
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Atualizado até capítulo 30
Comments
Marilena Yuriko Nishiyama
humm 🤔 quem será esse homem que ajudou a Aurora 🤨,do espero que ela o encontre ou ele a encontre
2025-05-18
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