A multidão ao nosso redor, ainda em choque, abriu caminho para a mãe desesperada que se jogou nos braços do filho, chorando em pânico.
— Obrigada — agradeceu ela, segurando o menino com força, como se quisesse fundi-lo ao próprio corpo, impedindo que qualquer coisa ruim se aproximasse dele novamente.
— Não foi nada — respondi, meio sem saber onde enfiar a cara com tantas pessoas olhando.
Por sorte, a caminhonete havia parado a tempo, evitando uma tragédia. O impacto que nos derrubou não foi forte, e a criança saiu ilesa. Já meu joelho não teve tanta sorte. Um corte ardido se formava com o sangue escorrendo lentamente, resultado do atrito com o asfalto quente.
Após um rápido atendimento dos socorristas, fui liberada. Nada sério, segundo eles. Mas a situação deixou uma pulga atrás da orelha. A cada dia que passa, tenho mais certeza: não nasci pra ser mãe. Mal consigo cuidar de mim... quem dirá de uma criança.
Sacudi o pensamento e continuei minha saga, entregando os currículos que faltavam. Me candidatei para vagas de garçonete, cabeleireira, faxineira... qualquer coisa que me rendesse algum dinheiro. Apesar de estar cursando Administração, precisei trancar o curso. A grana não deu. Não dava mais nem pra passagem.
Voltei pra casa com as pernas doendo e o corpo pedindo arrego. Mas, claro, como boa protagonista de vida caótica, meu dia não podia acabar sem uma nova humilhação. Um infeliz passou com o carro em uma poça gigantesca e me molhou da cabeça aos pés com lama.
Maldição. Justo hoje que eu tinha lavado o cabelo! Agora teria que repetir tudo. Voltei para casa praguejando o motorista com todos os palavrões que conhecia — e ainda inventei uns novos só pra ele. As pessoas na rua me olhavam como se eu fosse um ser emergido do esgoto. E talvez, visualmente, eu estivesse mesmo.
Cheguei em casa furiosa. Vermelha de raiva, um pouco da lama ainda escorrendo pela nuca. Subi direto para o meu quarto e fui pro banho, tentando lavar o dia de mim. Minha mãe ainda não tinha chegado.
Já mais limpa — por fora, pelo menos — decidi fazer o almoço. Sei o quanto minha mãe chega cansada, e queria poupá-la de mais uma tarefa. Nunca fui uma chef, mas também não morro de fome com minhas invenções. Preparei um feijão bem temperadinho, arroz soltinho e macarrão. Nada chique, só aquele almoço simples com gosto de casa.
Comi, enchi a barriga e me joguei no sofá para maratonar minhas séries favoritas. Uma delas, Lúcifer, era sagrada. E entre nós, que diabo mais delicioso. Já perdi as contas de quantos sonhos safados tive com ele. Daqueles em que você acorda suando, o coração disparado e uma certa região do corpo pedindo socorro. Nesses dias, só banho gelado resolve.
Fiquei tanto tempo assistindo que o sono me venceu. Dormi ali mesmo, com o controle na mão, sem nem perceber a hora.
[...]
Um sacolejo insistente começou a me tirar do torpor. Quem era o abençoado me balançando daquele jeito bruto? Não se pode mais dormir em paz? O sono estava bom demais pra ser interrompido por alguém sem noção.
— Peste, o que é? — murmurei, sem abrir os olhos, com a paciência esgotada.
A pessoa parou de me balançar. Aleluia, pensei.
Mas não. Era só o silêncio antes da tempestade. De repente, um balde de água fria caiu sobre mim, seguido por um puxão tão violento que fui parar no chão. Levantei mais rápido que o Flash.
— Me respeita, menina! Ainda sou sua mãe! Você me chama de peste? Eu que te carreguei nove meses, passei horas gritando pra te parir, e agora você me trata assim? — Ela desfilava pela sala como uma general furiosa, sem nem me dar chance de resposta.
— Mãe, desculpa! Eu não sabia que era a senhora. Foi sem querer, meu raio de luz, estrela da minha vida! — corri atrás dela, tentando amenizar a situação.
— Quem mais seria, criatura? Só moramos nós duas aqui! Você acha que é visita? Vai sonhando! E mesmo que fosse, iriam tocar a campainha! — respondeu, revirando os olhos.
— Desculpa mesmo. Você sabe que foi reflexo. — A abracei com força e dei aquele beijo longo que ela adora. A puxei para o sofá. — Fiz até o almoço. Já comeu?
— Já sim. Quando cheguei, a senhorita estava aqui, dormindo feito pedra — disse, me analisando de cima a baixo.
— E a entrevista? Conta tudo! — perguntei, cheia de esperança.
— A dona da casa é super educada. A entrevista foi maravilhosa. Conversamos horas, acredita? — sorriu.
— E aí? Conseguiu ou não? Fala logo, mãe! — quase pulei no sofá de ansiedade.
— Consegui, claro! O salário é ótimo, muito além do que esperávamos. Vamos sair do sufoco, filha — disse, apertando minha mão com carinho. — E você? Entregou todos os currículos?
— Entreguei sim. Agora é torcer para que alguém me ligue até amanhã — falei, ligando a TV. — Vamos assistir mais um pouco. Já tá anoitecendo.
— Estava conhecendo a mansão. Começo amanhã cedo — respondeu, sentando ao meu lado. — Mas agora... Lúcifer, porque ninguém é de ferro.
Terminamos de maratonar nossas séries favoritas, com direito a risadas, comentários maliciosos e aquele laço de amizade que só mãe e filha têm. Depois, fomos preparar o jantar. Fiquei com as tarefas básicas, enquanto ela cuidava do principal.
Enquanto ela terminava de cozinhar, fui conferir meus e-mails. E não é que tinha uma resposta?
Senhorita Mabelly Houston,
Seu currículo nos chamou atenção. Gostaríamos que comparecesse ao endereço abaixo para uma entrevista.
Agradecemos desde já,
Restaurante San Diego
Rua: Kwamis, Nº 312.
Li três vezes pra ter certeza. E ainda me perguntei: que nome é esse? Kwamis? Parece nome de desenho, eu sai entregando tanto currículos que nem me lembro os nomes das ruas.
Mas tudo bem, o importante é que... fui chamada pra entrevista!
— MÃE! Vem aqui agora! — gritei, correndo até a cozinha. — Recebi um e-mail! Um restaurante me chamou! Vou fazer entrevista pra garçonete!
— Como assim conseguiu um emprego? Há meia hora você tava deitada no sofá sem perspectiva nenhuma! — ela disse, surpresa.
— Vamos jantar e eu te conto tudo! — falei, cheia de entusiasmo.
E foi assim, entre garfadas e sorrisos, que contei sobre o acidente, a poça de lama, os currículos e, enfim, a tão esperada entrevista. Pela primeira vez em muito tempo, fui dormir com um fiozinho de esperança aceso dentro de mim.
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Atualizado até capítulo 42
Comments
roseli rosa martins floriano
o filho da gente é muito diferente, a maternidade nos modifica. E o jeito que você pulou para proteger uma criança que você nem conhecia me diz que você está errada .
2025-06-03
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roseli rosa martins floriano
Eu no lugar do macarrão teria feito um ovo frito, mas aceito o macarrão .
2025-06-03
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roseli rosa martins floriano
Sim ela entregou, quase morreu atropelada mas isso é outra história.
2025-06-03
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