O céu de Nova Friburgo amanhecia com um azul pálido e frio. A serração cobria os telhados como um cobertor de algodão e a brisa cortava a pele com gentileza. Nayara atravessava a rua apertando o casaco cinza claro no corpo, protegendo-se do vento da manhã. A bolsa simples pendia do ombro, e os passos eram firmes, ainda que pesados por dentro.
Era o primeiro dia na creche do centro da cidade. A mesma creche que dona Lurdes, sua vizinha faladeira e boa de coração, tinha mencionado semanas antes, ao vê-la exausta depois de uma tarde costurando.
— Você é moça de cabeça boa, Nayara. Tem mãos delicadas, mas coração forte. Vai se dar bem com criança. Melhor do que costurar até doer a coluna. Costura nas horas vagas, minha filha... se quiser recomeçar, começa com gente, não com linha.
As palavras ficaram, maturando dentro dela. E ali estava, de pé diante de um portão de ferro simples, uma plaquinha branca com letras coloridas dizendo: Creche Esperança do Futuro. O nome soava como ironia e consolo ao mesmo tempo.
A diretora, dona Teresa, a recebeu com um sorriso gentil e os olhos cansados de quem lidava com dezenas de crianças todos os dias. As paredes do interior estavam decoradas com desenhos de mãos pintadas, cartazes com letras do alfabeto e colagens mal recortadas. Havia cheiro de talco, lápis de cera e mingau.
— Vai pegar a turma dos pequenos, de dois a três anos — explicou Teresa. — É a turma que mais chora, mais suja e mais cansa. Mas é a que mais ama também.
Nayara assentiu em silêncio, puxando uma prancheta com os nomes das crianças. Não sabia o que sentir. Estava ali, mas uma parte de si ainda se escondia, ainda fugia.
As primeiras horas passaram entre choros, fraldas trocadas, histórias contadas com vozes engraçadas e mãos pequenas puxando seu cabelo. Ao meio-dia, quando sentou para almoçar no refeitório, sozinha, com um prato de arroz, feijão e frango assado, Nayara suspirou. Aquele não era o glamour dos desfiles que um dia sonhou. Nem era a opressão do cárcere em que viveu com Caveira. Era apenas... vida. Simples. Comum. Quase invisível. Mas, pela primeira vez em muito tempo, sem medo.
Às quatro da tarde, quando fechou o fichário de presença e limpou as últimas manchas de tinta das mãos, sentia-se esgotada — mas não pela dor. Era o cansaço físico bom, de quem trabalhou com o corpo e a mente, não com a alma ferida. Voltou para casa a pé, as ruas estreitas e floridas da pequena cidade se estendendo como um bordado de paz. O aluguel da casinha que ocupava era barato, e ali, entre paredes úmidas e um fogão de duas bocas, ela encontrava silêncio.
À noite, acendeu a luz da sala e sentou-se no tapete para costurar. As linhas coloridas estavam alinhadas na caixa plástica. Os moldes improvisados, recortados de revistas antigas, se empilhavam na mesa. Nayara escolheu um tecido leve, floral, e começou a moldar o vestido de verão. Quando vestiu o modelo no manequim improvisado feito com cabides e espuma, parou por um instante. A peça era delicada. Linda. Como as que fazia antes de tudo desmoronar.
Seus dedos pararam. Os olhos vagaram pela janela, fixos na noite escura.
Era impossível costurar sem lembrar de quando fazia os primeiros trabalhos para a loja de uma amiga da mãe. Dos desfiles escolares, do primeiro elogio, da primeira saia que bordou sozinha. Também se lembrava da dor. De quando Albertina, a tia gananciosa, destruíra os sonhos com a língua venenosa. De quando Caveira, com promessas doces e olhos cravados de veneno, tomou para si o que ela era.
Ela pensava: Saí do pesadelo e fui parar no inferno. Agora... agora só ando. Só sobrevivo. Um passo de cada vez.
Alguns dias depois, Teresa a chamou na pequena sala da direção. Nayara achou que havia feito algo errado. Mas a diretora sorriu com olhos marejados.
— Uma das mães disse que o filho nunca tinha abraçado uma professora antes. Que agora chega em casa falando "tia Nayara, tia Nayara". Você tem um dom. De acolher.
Nayara sorriu. Um sorriso tímido, mas verdadeiro. Como uma flor nascendo no meio do asfalto.
— Obrigada.
— Você tem planos? — Teresa perguntou. — Para o futuro?
Ela hesitou. A verdade era que não sabia. Mas guardava uma carta dentro de uma caixinha, escondida no fundo do armário. Uma carta da diretora da ONG brasileira, parceira de uma ONG italiana, que dizia:
"Se um dia quiser recomeçar longe, numa nova terra, uma nova língua, nova vida... estamos aqui. Podemos ajudar. Damos suporte jurídico, psicológico e de inserção. Para que mulheres como você voem sem medo."
Ela havia lido aquela carta dezenas de vezes. Mas ainda não conseguia desprender-se da terra em que nasceu. Ainda amava o cheiro da serra, o som das cigarras ao entardecer, o gosto do café passado no pano. Mesmo que fosse também a terra da dor.
— Ainda não sei — respondeu, baixinho. — Mas por enquanto, aqui é suficiente.
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Os meses passaram. Nayara acordava às cinco e meia, arrumava-se com calma, preparava seu próprio café e ia à creche a pé. À tarde, voltava com um caderno cheio de rabiscos e bilhetes de crianças. À noite, costurava. Vendia algumas peças pela internet, por uma página que criou em segredo. O dinheiro era pouco, mas juntava.
Fazia uma poupança silenciosa. Para se preparar. Para ir embora. Ou talvez, para um dia... escolher.
Certa noite, experimentando um vestido azul de tecido leve, viu-se no espelho e por um instante imaginou: E se aquele desfile tivesse acontecido? E se Albertina não tivesse sabotado tudo? E se Caveira nunca tivesse aparecido?
Mas logo a imagem se desfez. E o que ficou foi a Nayara real. De cabelo preso com presilhas simples. Olheiras de professora cansada. Mas também de olhos limpos. Sem medo.
Do lado de fora, a vida seguia.
Dentro dela, um fio de esperança costurava lentamente os retalhos do passado, do presente e — quem sabe — do futuro.
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Atualizado até capítulo 49
Comments
Pop
Alguém consegue explicar uma coisa? Como ela saiu de Nova Iguaçu na Baixada Fluminense no rio e or para Nova Friburgo na Serra carioca?
2025-05-09
0
Marli Batista
So espero que esse monstro não consiga achar ela e que Filipe a encontre logo
2025-05-05
1
Livia Pereira
Veio com documentos e dinheiro que a LME da e não é pouco.
2025-05-15
0