Acordei com Lúcifer sentado no meu rosto.
— *Você é um asfixiador profissional, sabia?* — grunhi, empurrando o gato para o lado. Ele miou, ofendido, e pulou para o chão com a dignidade de um rei deposto.
A luz do sol entrava pelas cortinas, lembrando-me cruelmente que ontem não tinha sido um pesadelo. Era real. Eu estava noiva do demônio. E pior: a mãe do demônio viria hoje *me ajudar a escolher um vestido*.
Desci para a sala de jantar já vestida de preto – um aviso silencioso de que eu estava de luto pela minha própria vida.
Meu pai estava sentado à cabeceira da mesa, lendo o jornal como se o mundo não estivesse prestes a acabar. Sofia, minha irmã, me lançou um olhar de pena antes de voltar a mexer no café.
— *Bom dia, princesa,* — meu pai cumprimentou, sem levantar os olhos. *Dormiu bem?*
— *Maravilhosamente. Sonhei que esfaqueava seu futuro genro.*
Ele abaixou o jornal devagar.
— *Isabella.*
— *Pai.*
Um silêncio pesado. Até Lúcifer, que tinha me seguido até a sala, parou de lamber a pata para observar.
Meu pai respirou fundo.
— *Hoje, a Sra. Orsini virá te acompanhar para escolher o vestido de noiva. Ela tem bom gosto.*
— *E eu tenho uma faca.*
— *Isabella.* O aviso na voz dele era claro.
Joguei meus braços para trás da cadeira, encarando o teto.
— *Por que ela tem que vir? Não posso escolher sozinha?*
— *Porque é tradição. E porque eu disse.*
Ah, ótimo. A dupla dinâmica que arruinava minha vida: *tradição* e *porque eu disse*.
Sofia tentou ajudar.
— *Você pode encontrar um vestido lindo, Bella. Algo que te faça sentir poderosa.*
— *Única coisa que me faria sentir poderosa seria um terno blindado com uma metralhadora acoplada.*
Meu pai ignorou o comentário.
— *Ela chega às 11h. Esteja presenteável.*
— *Presenteável ou obediente?*
Ele finalmente olhou para mim, e eu vi aquele brilho nos olhos que significava *"não me teste hoje"*.
— *As duas coisas.*
Às 11h01, a mãe de Vinni entrou na sala de estar como uma rainha entrando em território conquistado.
Dona Eleonora Orsini era alta, elegante, e tinha aquele jeito de olhar para as pessoas como se estivesse avaliando o preço de mercado delas. Seu cabelo estava impecavelmente preso, seu vestido bege custava mais que meu carro, e seu sorriso era tão falso quanto o meu noivado.
— *Isabella, querida,* — ela disse, estendendo as mãos. *Que prazer finalmente te ajudar com os preparativos.*
— *Sinto o mesmo,* — menti, deixando que ela apertasse meus dedos mortos.
Ela não se abalou com minha falta de entusiasmo.
— *Vamos? Tenho marcado com a costureira da família. Ela fez o vestido da minha sobrinha no ano passado, ficou divino.*
— *Que emocionante,* — respondi, seguindo-a para o carro como uma condenada a caminho do cadafalso.
A loja era tudo o que eu odiava: cheia de luzes brilhantes, espelhos enormes e vestidos que pareciam feitos para pessoas que nunca tinham pensado em matar alguém.
— *Temos vários modelos,* — a costureira disse, animada. *Alguns mais tradicionais, outros mais ousados…*
— *Ela vai de tradicional,* — Dona Eleonora decidiu.
— *Ela gostaria de opinar,* — corrigi, pegando o primeiro vestido que parecia menos nojento.
Foi uma hora de provar modelos que me faziam parecer uma boneca de porcelana.
— *Esse decote é muito baixo,* — Dona Eleonora franziu o nariz em um dos que eu quase gostei.
— *É o único jeito de eu não morrer sufocada no altar.*
Ela ignorou.
— *E esse é muito simples.*
— *Chama-se "elegância".*
— *Esse aqui,* — ela finalmente anunciou, puxando um vestido que parecia ter sido feito para uma virgem do século XVIII. *É perfeito.*
Olhei para o monstro de renda e seda.
— *Parece que meus seios foram condenados à prisão perpétua.*
Dona Eleonora sorriu, doce como veneno.
— *Exatamente
No carro de volta, ela quebrou o silêncio.
— *Você sabe que isso é maior que vocês dois, não é?*
— *Só porque é grande não significa que é bom.*
Ela suspirou.
— *Vinni também não está feliz.*
Aquela era a primeira vez que alguém mencionava ele como algo além de um obstáculo.
— *Ótimo. Podemos nos odiar juntos.*
— *Ou aprender a tolerar-se,* — ela sugeriu. *Para o bem de todos.*
Olhei pela janela, os prédios passando como um borrão.
— *Já estou tolerando você. Não peça milagres.*
Ela riu, de verdade dessa vez.
— *Você é mais parecida com ele do que pensa.*
Cheguei em casa com o vestido – *aquele* vestido – pendurado em um cabide luxuoso, embalado em um saco de tecido caro que parecia gritar *"sua vida acabou"*. Joguei tudo no fundo do meu armário e deixei Lúcifer cheirar, como se ele pudesse confirmar o quão terrível era. Ele espirrou.
*Concordo, gato. Concordo.*
---
Meu pai decidiu que, já que eu estava sendo *tão cooperativa* (leia-se: não tinha incendiado a loja de vestidos), poderíamos adiantar a prova do cardápio do casamento.
— *Os Orsinis virão hoje,* ele anunciou, como se estivesse falando de uma visita ao dentista. *Comportem-se.*
Sofia me deu um aperto de mão discreto sob a mesa. Ela sabia. Sabia que cada passo nesse noivado era como pisar em vidro.
Ele entrou na sala de jantar como sempre: com aquela postura de quem *não quer estar aqui*, mas vai fazer questão de arruinar o dia de todo mundo mesmo assim.
Usava um blazer cinza escuro, a camisa aberta no colarinho, como se até a gravata fosse um compromisso grande demais. Os olhos dele passaram por mim como se eu fosse um dos móveis – até piscar para Lúcifer, que, *traidor*, ronronou em sua direção.
*Vou te dar sachê podre hoje à noite,* prometi mentalmente ao gato.
— *Bonito gato,* Vinni comentou, puxando uma cadeira. *Pena o dono.*
— *Ele não tem dono,* retorqui. *Assim como eu.*
Ele sorriu, lento, e sentou-se exatamente na cadeira ao meu lado. *Claro que sim.*
Os pratos começaram a chegar, e com eles, as opiniões não solicitadas.
— *O salmão está muito óbvio,* Vinni murmurou, provando um pedaço. *Algo mais único seria melhor.*
— *Como você, então? Único em ser insuportável?*
Meu pai deu um golpe na mesa.
— *Isabella.*
Vinni, no entanto, pareceu *divertido*.
— *Ela tem um ponto,* ele disse, erguendo o copo de vinho. *Sou insuportável. Mas pelo menos admito.*
Ele bebeu, os olhos fixos em mim sobre a borda do cristal.
Eu revirei os olhos e agarrei uma garrafa de água – até perceber que era *água com gás*.
— *Você pediu isso de propósito,* acusei, baixo.
— *Talvez.*
— *Odeio água com gás.*
— *Eu sei.*
E *isso* me fez pausar.
*Como ele sabia?*
Não tive tempo de perguntar antes que o próximo prato chegasse – uma sobremesa de chocolate amargo com raspas de laranja.
Vinni cortou um pedaço e, *sem quebrar o contato visual*, colocou na boca.
— *Bom,* ele admitiu. *Amargo. Complexo. Persistente no paladar.*
— *Que poético,* eu resmunguei. *Quase parece que você não é só um babaca.*
— *Quase.*
Ele estendeu o garfo na minha direção, com outro pedaço.
— *Prova.*
— *Não.*
— *Tem medo?*
*Isso era uma armadilha.* Tudo nele era uma armadilha. Mas eu nunca fui boa em recuar.
Inclinei-me e mordi o pedaço do garfo dele, mantendo os olhos fixos nos seus. O chocolate derreteu na minha língua – doce, depois amargo, depois *queimando* com o cítrico da laranja.
— *…Não é horrível,* admiti.
Ele sorriu, como se tivesse ganhado algo.
— *Já é um começo.*
No final da noite, quando os pratos estavam quase todos experimentados e as palavras tinham se esgotado, Vinni se levantou para ir embora.
Mas antes de sair, parou na minha cadeira.
— *O vestido,* ele disse, baixo. *É tão ruim assim?*
Eu olhei para ele, *realmente olhei*.
— *Pior.*
Ele riu – uma risada genuína, surpreendentemente quente.
— *Boa noite, Isabella.*
E então saiu, deixando para trás o gosto de chocolate e uma pergunta que eu não queria responder:
*Por que isso não foi tão insuportável quanto deveria?*
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Comments
Rita DE Cassia Gomes
❤️❤️❤️
2025-04-28
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