A Caixa Final

Não sinto meus pés.

Talvez porque não existam mais. Talvez porque estejam encostados em alguma coisa dura, fria, indiferente. Ou talvez porque já não sejam meus. É estranho pensar assim — que partes de mim já não me pertencem — mas é isso que sinto. Como se eu fosse um inquilino indesejado num corpo que foi lacrado antes da visita do despejo.

Mas ouço... alguma coisa.

Um barulho abafado, estranho, com a consistência de passos descalços sobre concreto úmido. Ou talvez terra. Solo fofo sendo compactado. Uma pá. Um som que carrega a paciência de quem trabalha à noite, sob ordens silenciosas.

Tento abrir os olhos.

Nada.

A escuridão aqui não é ausência de luz. É presença de outra coisa. Uma coisa espessa, que se deita sobre os olhos e preenche o espaço entre as piscadas. A escuridão dentro do caixão tem textura. Ela pesa.

Tento gritar. Nada.

Nem o som da minha própria voz. Como se tivesse sido extirpado da garganta por mãos que não acreditam mais em pedidos de socorro.

Tento mexer o dedo mindinho da mão esquerda. O menor. O mais esquecido.

Nada.

O corpo inteiro parece um eco distante. Um reflexo de algo que já fui. O cérebro comanda — o corpo ignora. Uma rebelião feita de silêncio e paralisia.

Minha mente, no entanto, ainda funciona. Ou penso que sim. Não há como ter certeza quando o único diálogo possível é consigo mesmo, e mesmo esse ecoa como se fosse de outra pessoa, uma pessoa soterrada em ruído.

O cheiro é de madeira crua. De cola industrial. De pano velho que secou suor de morto. Tem também outro cheiro. Umedecido. Frio. Umidade recente que busca um lugar para escorrer. O gosto — há gosto — é seco, poeirento, mofado. O gosto da espera. O gosto de coisa parada. Coisa encerrada.

O gosto da morte.

Caixão.

É isso. Estou dentro de um maldito caixão!

Mas não lembro como vim parar aqui.

Não há espaço. Não há conforto. Minhas pernas não esticam. Não dobram. Os joelhos estão presos em um ângulo desconfortável, como um boneco mal encaixado. Os cotovelos tocam as laterais. O ombro direito pulsa — há algo duro pressionando minha omoplata, como um prego atravessando uma promessa.

Começo a lembrar. Pouco. Fragmentado. Como se minha vida tivesse sido filmada por uma câmera trêmula, borrada pela chuva.

Uma estrada. Noite.

Um poste piscando. Clarão. A sensação de voar sem asas. E depois... o silêncio.

Não é silêncio real. É o tipo de silêncio que se instala quando o mundo lá fora continua, mas você foi desconectado. O som da desconexão. Como quando alguém arranca o cabo da TV e a tela vira neve. Só que essa neve cobre tudo.

Depois disso, é como se alguém tivesse apagado a fita da minha vida com uma navalha suja.

Mas eu não estou morto.

Eu sei que não estou.

Pelo menos eu acho não.

Será que me enterraram em coma?

Será que erraram?

Será que me mataram... mas eu sobrevivi?

Meu coração parece preso num batuque sem tambor. Ele quer disparar, mas algo o contém. Como se tivesse um punho apertando meu peito por dentro. Um punho frio, com dedos longos e esguios.

A garganta arde. Está seca de um jeito impossível. Sinto algo escorrer — saliva, talvez. Mas não posso engolir. Ela se acumula ali, entre o céu da boca e o fundo da garganta, formando uma pequena poça de fracasso. Um lago onde bóia a última esperança de controle.

Pesa.

É o tipo de desespero que não faz barulho. Ele não grita. Ele se senta ao seu lado e espera você murchar.

Então...

Barulho.

Três pancadas. Secas. Depois silêncio.

De novo. Mais fraco. Como se algo cedesse, desmoronasse. Terra, talvez. Talvez uma pá. Ou talvez — e é pior pensar nisso — talvez não seja ninguém me enterrando.

Talvez estejam me desenterrando.

Mas por quê?

Tento respirar fundo.

Não consigo.

Não há espaço para um suspiro inteiro. O ar entra curto, preso entre as costelas. Ele é morno, gasto, impregnado de madeira prensada e cola barata. Sinto o cheiro de mim mesmo agora — não o que fui em vida, mas o que estou começando a ser.

Um cheiro raso. Adocicado. Carnal.

Quanto tempo passou?

Minutos? Horas? Dias?

O tempo dentro de um caixão não corre. Ele rói. Ele mastiga você de dentro pra fora, sem pressa, saboreando cada segundo como se fosse a última lasca de carne do mundo.

E ele não mastiga só o corpo.

Mastiga a mente.

Ondas de memórias sujas. Elas vêm sem contexto. Estilhaços.

Minha mãe chorando no velório do meu avô. O cheiro de vela. A caixa. O som dos pregos sendo martelados — TOC. TOC. TOC. O tipo de som que fecha portas. Que sela pactos. Que apaga existências.

Eu tinha sete anos.

Naquele dia, prometi: “Não quero morrer nunca.”

A ironia ri. Cheia de dentes.

Outro som.

Diferente.

Não vem de fora. Vem de dentro.

Um escorrer. Baixo. Molhado.

Algo espesso atravessando frestas de madeira, descendo pelas juntas como sangue por rachaduras em azulejos antigos.

Não é água.

Aqui não há água.

Então o que pinga?

Tic. Tic. Tic.

Como um relógio. Mas não um relógio de ponteiros. Não um relógio de tempo humano. É um tempo estranho. Um tempo com fome. Um tempo que não marca horas, mas limiares.

É isso.

O som escorre.

E não molha.

Ele preenche.

Vai preenchendo algo dentro de mim. Não sei se invade ou se extrai. Não sei se é um líquido... ou uma ideia.

De repente, lembro daquela matéria idiota: “Quanto tempo leva pra acabar o oxigênio em um caixão?”

Quatro a seis horas. Em média.

Depende do quanto a pessoa se mexe, se grita, se desespera.

Eu não me mexo.

Não respiro direito.

Talvez eu dure mais.

Ou talvez eu já tenha passado do tempo.

Talvez eu seja só consciência. Uma casca de percepção flutuando num corpo que já desligou a chave geral.

E então...

Uma coceira.

Na bochecha.

Tão pequena. Tão absurda na sua existência. A primeira sensação física desde que acordei nesse lugar.

Ela me fere. Com esperança.

Eu quero arrancar a pele. Eu quero alcançar o próprio rosto, escavar, sangrar, fazer qualquer coisa que não seja apenas sentir sem agir.

Mas não consigo.

Será o início da recuperação?

Ou a primeira alucinação do colapso?

A mente é perversa.

Ela oferece pistas falsas. Cria sensações fantasmas. Um dedo que nunca se moveu parece vibrar. Um músculo que nunca respondeu parece coçar. E a gente acredita, porque quer acreditar.

Porque preferimos uma mentira ao silêncio.

Escuto novamente.

Mas agora... não são mais pancadas.

São vozes.

Sussurros primeiro. Depois... canto.

Baixo. Molhado. Como se falassem através de um pano encharcado. Um idioma que não me pertence. Uma oração que não me inclui.

Ouço, mas não entendo.

Palavras sem articulação. Sons de gargantas secas tentando pronunciar o nome de algo esquecido.

E então, como um sussurro mais alto que um trovão:

"Ele acorda."

Não fui eu quem ouviu.

Fui eu quem disse.

Mas minha boca não se moveu.

As palavras saíram de um lugar entre os ossos. Do espaço que existe entre o que sou e o que estou prestes a ser. Elas não vieram com voz, mas com certeza. Como se sempre estivessem ali, esperando a hora de voltar.

Meu coração dispara. Ou tenta. Porque agora ele também não é mais só meu.

Há algo aqui.

Algo... comigo.

Não fora do caixão.

Dentro.

E não apenas dentro do espaço. Dentro de mim.

Eu o sinto. Vibrando baixo. Como uma nota tocada num órgão velho. Uma vibração que não vem do som, mas da carne. Ele estremece comigo. Ele é comigo.

Algo se mexe perto da perna.

Não — dentro da perna.

Uma sensação parecida com febre. Como se milhões de formigas queimassem debaixo da pele. E então… o dedo do pé esquerdo. Treme.

Um movimento real.

Ínfimo, mas real.

Meus olhos não veem, mas minha alma testemunha. É o bastante para que a esperança se insinue — e então o horror também.

Porque não fui só eu quem mexeu.

Fomos nós.

Minha pele arrepia. Sinto as unhas dos pés pressionando contra o forro de tecido grosso. Elas não estão do mesmo tamanho. Alongaram-se. Cresceram. Eu sei. Eu sinto. Como se quisessem escavar sozinhas.

As unhas estão... afiadas.

Não era assim.

Nada disso era assim.

O que há aqui era eu.

Mas agora somos dois. E a linha que separa um do outro está desfiando.

Meus dentes… trincam.

Não por tensão.

Por vontade própria.

Eles rangem como se mastigassem o silêncio. E o silêncio geme de volta.

Uma voz. Mais clara agora. Mas ainda sem forma.

“Silêncio é passagem. Agora você desce.”

A frase não tem som.

Ela tem peso.

Ela se deita sobre mim como uma mortalha molhada.

E então... vejo.

Mesmo com os olhos fechados. Mesmo sem luz. Eu vejo.

A terra — ela invade pelas frestas. Preta. Gorda. Viva.

Vermes sobem em espiral, como dedos trêmulos tentando tocar minha pele de novo depois de milênios longe.

Eles não vêm me devorar.

Vêm me saudar.

E eu? Eu sorrio.

Mesmo sem mover os lábios.

Mesmo sem querer.

O sorriso acontece como um instinto de outra vida.

O peito treme.

Não de medo.

De retorno.

E pela primeira vez… eu entendo.

Este não é um caixão.

É um útero.

E eu não estou morrendo.

Estou nascendo.

O horror agora tem outro gosto.

Não é mais o medo do fim.

É o medo do que começa.

A coisa dentro de mim — o Outro — não é uma entidade que invadiu. Ele sempre esteve ali. Eu era a prisão. A cela. E o acidente, ou o coma, ou o que quer que tenha sido... foi a chave.

Ele não vem do inferno.

Ele vem de baixo.

Mais profundo que os infernos. De antes da linguagem. Antes das formas. Ele tem fome de espaço, de corpo, de carne viva para lembrar o mundo de sua textura.

Eu era esquecimento.

Agora sou lembrança.

Meus dedos estalam. Um a um. O som é de madeira sendo partida. Mas sou eu.

Estou acordando.

E o mundo vai dormir.

Ouço passos.

Reais.

Agora sim, do lado de fora.

A pá cessa.

Silêncio.

E então… a voz de um homem:

“Cê ouviu isso?”

Outra voz. Mais longe.

“Barulho. Tipo... dentro.”

“Tá maluco. Tá tudo selado.”

“Não, juro… eu ouvi. Tipo... como se tivesse mexido.”

Pausas. Risos nervosos. Uma corrente de dúvida.

“Tá… vamos abrir?”

E então, o primeiro toque metálico.

Chave girando.

Ferrugem cedendo.

O mundo lá fora nem sonha que o que vai sair daqui não é um homem.

É um presságio.

E ele tem fome.

Primeiro, o som da alavanca.

Metal raspando contra madeira.

Uma chave sendo girada na direção errada — hesitação.

Depois, silêncio.

Como se o mundo prendesse a respiração antes de fazer uma escolha estúpida.

E então…

TOC.

O primeiro trinco se solta.

A caixa respira.

Não com ar — com intenção.

Ouço o sussurro da madeira relaxando. Um gemido úmido, como se as fibras estivessem pedindo para não serem abertas. Como se o próprio caixão estivesse tentando manter o que está aqui dentro contido.

Mas eles não ouvem os avisos dos mortos.

Só os passos dos vivos importam para quem ainda acredita que está do lado certo da terra.

“Vai... ajuda aqui.”

Outra voz. “Tá pesado. A tampa inchou.”

Não foi a tampa que inchou.

Fui eu.

Meu peito agora roça o teto. Meus braços estão maiores. A pele esticada como couro molhado. Os ossos reformaram-se no escuro. Moldaram-se ao som do sangue antigo que gotejava entre as tábuas.

Eu sou menos humano agora.

Mais... alguma coisa.

Algo que não tem nome — só presença.

E ela se espalha.

Pelo caixão.

Pelo chão.

Pela alma dos que ousam se aproximar.

“Um, dois, e…”

A tampa abre.

Luz.

Pela primeira vez, luz.

Mas ela não invade. Ela se retrai. Como se entrasse num lugar que não a reconhece mais.

“Meu Deus…”

Foi o que o primeiro homem disse.

Não como um grito.

Como uma confissão.

Como alguém que entendeu, tarde demais, que Deus já não está aqui.

Que o que está diante dele é o que vem quando Deus fecha os olhos.

Ouvi o som da pá cair no chão.

Ouvi o passo para trás.

Ouvi o outro tentando falar, mas sua voz foi engolida pelo que saiu de mim.

Não som.

Não palavra.

Um suspiro.

Meu primeiro suspiro.

Não feito com ar, mas com presença. Um hálito de eras esquecidas, de criptas antes do tempo, de pactos feitos com a carne antes da invenção da alma.

Eles caem de joelhos.

Não por fé.

Mas porque as pernas não sustentam quem vê o que devia estar enterrado para sempre.

A luz do mundo lá fora não me aquece.

Ela estremece.

E eu — não mexo.

Apenas olho.

Com olhos que ainda não se abriram, mas já veem.

Um deles tenta correr.

Outro vomita.

Mas não há para onde fugir quando a coisa que renasce carrega o escuro dentro.

Me ergo.

A madeira range sob minhas costas. O pano rasga. Meus braços se abrem — longos, secos, como galhos mortos que cresceram demais na direção errada.

A boca se abre.

E dentro dela, há mais do que dentes.

Há um nome.

O meu.

O verdadeiro.

O que o mundo tentou esquecer.

E ele sai.

Não com som — com intenção.

Uma onda escura que se espalha. Um toque sem toque.

Eles caem. Primeiro os corpos.

Depois a memória.

Depois o tempo.

E tudo volta a dormir.

Menos eu.

Porque agora estou acordado.

E a caixa?

Não era final.

Ela era só o começo.

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Comments

Dzakwan Dzakwan

Dzakwan Dzakwan

Cara, essa história é demais!

2025-04-24

1

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