Contos do Fundo

Contos do Fundo

Chuva de Sangue

O sol do sertão parecia uma ameaça, não uma bênção.

A caminhonete prateada de Marcos avançava pela estrada de barro com dificuldade, levantando uma nuvem ocre que se misturava ao céu seco. A trilha para São Cipriano não constava no GPS, e as placas de madeira pintadas à mão estavam tão desbotadas que mais pareciam relíquias esquecidas.

Ana, com os pés descalços sobre o painel, folheava uma revista de literatura meio amassada. De tempos em tempos, olhava pela janela com um misto de curiosidade e cansaço.

— Essa estrada tá me lembrando aquele filme do Ari Aster — disse ela. — Aquele com o culto e os dançarinos suecos...

— “Midsommar”? — Marcos perguntou, rindo. — Tranquilo, amor. Aqui é nordeste, não Escandinávia. Aqui o povo é gente boa. Rola até cuscuz.

Ana sorriu. Mas o sorriso morreu rápido.

— Você viu que acharam outro corpo no lago do Pará?

— O quê?

— Saiu ontem. Outro caso daquelas mortes sem ferimento visível. A polícia tá dizendo que é afogamento. Mas tinha sangue no barco, nenhum no corpo.

Marcos balançou a cabeça, tentando se manter no bom humor.

— Ótimo assunto pra quem vai passar uma temporada numa vila isolada, hein?

— Me desculpa. — Ela riu. — É só... Não sei. Lugares pequenos mexem comigo.

— É por isso que viemos, né? Isolamento criativo. Você escreve, eu fico no sol… a gente vive um pouquinho fora da internet.

— Se for tipo novela da Globo, tudo bem. Mas se for tipo Stephen King...

— A gente faz as malas e volta pra Recife, fechado.

Passaram por uma porteira aberta. Uma vaquinha magra os observou com desdém. Logo à frente, viram o letreiro improvisado de São Cipriano, entalhado em madeira de um tronco queimado.

A vila surgiu como uma miragem no meio da aridez. Era pequena — três ruas paralelas, uma praça no centro, e casas com paredes de barro e telhados vermelhos desbotados. Algumas janelas estavam abertas, outras cobertas com lençóis. Poucos moradores andavam pelas ruas, todos os observando como se já soubessem quem eles eram.

Marcos estacionou ao lado da praça. Desligou o motor.

— E aí, escritora. Chegamos.

Ana olhou para a casa alugada.

Parecia viva.

Não de um jeito bom.

A casa tinha cheiro de madeira antiga e barro seco, o tipo de cheiro que parece sair das paredes, não dos objetos. O forro de madeira rangia com o menor passo, e a luz do sol entrava filtrada pelas venezianas, riscando o chão com sombras compridas.

Ana largou a mochila no quarto e fez uma volta pela casa, sentindo-se como uma intrusa. O silêncio era grosso, quase sólido. Só o som de um ventilador velho rodando no canto da sala quebrava o clima — e mesmo assim, o barulho era mais irritado que constante.

— Achei o roteador — gritou Marcos da cozinha. — E, surpresa, ele é só de enfeite.

— Não tem Wi-Fi? — Ana apareceu encostada no batente da porta, segurando um copo de água.

— Nada. E a água tá morna, viu? Torneira quente e fria aqui é “quase escaldando” ou “temperatura de cuíca ao meio-dia”.

Ana riu.

— Pelo menos é água. Achei que a gente ia ter que buscar no poço.

Marcos parou e olhou pra ela por alguns segundos.

— Tá se sentindo bem aqui?

Ela hesitou.

— Eu não sei. É bonito. Mas... tem uma coisa estranha no ar. Como se estivéssemos num lugar que tá esperando alguma coisa.

— Você e essas frases de livro. — Ele deu um beijo na testa dela. — Vai ser bom. Uma semana, duas no máximo. Você vai escrever horrores e eu vou finalmente terminar aquele curso de fotografia analógica que nunca comecei.

— Você trouxe a câmera?

— Lógico. E uns filmes vencidos pra dar aquela estética “assombração de 1993”.

O dia seguiu abafado. O céu, que costumava mudar de cor conforme o sol caía, manteve-se de um azul opaco. Pássaros? Nenhum. Nem mesmo os urubus que geralmente circulam alto, fazendo círculos como sentinelas do sertão.

Na segunda ida ao mercadinho da vila, conheceram Dona Zefa.

Ela estava sentada em um banquinho de madeira em frente à loja, com uma sombrinha preta aberta, mesmo sem sol direto. Vestia preto da cabeça aos pés, com um rosário enrolado duas vezes no pulso.

— São os forasteiros da Casa da Cruz Torta — ela disse, antes mesmo deles abrirem a boca.

Ana sentiu o frio subir pelas costas.

— Como a senhora sabe?

— Aqui a gente sente. A casa puxa diferente quando tá pra chuva.

— Vai chover? — Marcos tentou manter a conversa leve.

Dona Zefa não respondeu de imediato. Fitou Ana por um tempo.

— Vocês deviam ir embora antes da sexta-feira.

— Por quê? — Ana perguntou.

— A chuva vai cair. E não é água que molha. É sangue que leva.

O casal se entreolhou. Marcos forçou um sorriso.

— Deve ser alguma lenda local, né?

Zefa continuou olhando.

— Toda vila tem um preço. Aqui a gente paga com silêncio e paciência. Mas quando chove... é hora de cobrar.

Ela levantou devagar, apoiando-se no banco. Deu um passo e murmurou:

— Foi escolha de vocês. Agora é escolha dele.

— Dele quem? — Ana perguntou.

Mas Dona Zefa já havia entrado na loja.

Na volta, Ana permaneceu quieta. Só que o silêncio não parecia mais um alívio. Era o tipo de silêncio que pressiona o peito.

— Isso tá te assustando? — Marcos perguntou, finalmente.

— A senhora... ela parecia saber mais do que dizia. E quando ela falou "chuva de sangue", eu lembrei daquele documentário que a gente viu no streaming. Lembra? O que teve no interior do Maranhão?

— Que caiu água avermelhada por causa de uma alga?

— Sim. Mas os moradores diziam que não era só água. Tinham sonhos estranhos. Um deles dizia que via as pegadas antes da chuva chegar...

— Amor. — Marcos segurou a mão dela. — É um vilarejo no meio do sertão. Isolado. Povo simples. Se a gente procurar, vai achar história de lobisomem, mula sem cabeça e até disco voador. Não pira.

Ana assentiu. Mas à noite, quando o céu se tornou uma camada cinza e o ar ficou parado, ela percebeu que o problema não era a lenda.

Era a espera.

Aquela vila inteira parecia esperar algo.

E eles, talvez, tivessem chegado na hora errada.

Na manhã de quinta-feira, Ana acordou com a sensação de que havia dormido pouco, mesmo sem lembrar de ter acordado durante a noite. O quarto estava abafado, o ventilador girando devagar, como se lutasse contra o ar espesso.

Marcos ainda dormia, roncando leve. Ela olhou o relógio digital: 6h03.

No banheiro, a água saiu morna e barrenta. No começo, pensou que fosse ferrugem nos canos. Depois percebeu que cheirava diferente. Não era podre, nem suja. Era um cheiro... férreo, levemente doce.

O mesmo cheiro que ela lembrava da escola, quando furava o dedo em atividades de ciências.

Ela deixou a torneira correr por alguns minutos. A água ficou mais clara, mas o cheiro permaneceu. Sentiu um incômodo profundo, como se algo dentro dela reconhecesse aquilo.

Na sala, Marcos lia um jornal velho deixado na casa. A data era de cinco anos atrás. A manchete falava sobre uma “seca histórica” na região, mas o que chamou a atenção dele foi uma notícia menor no rodapé:

“Casal desaparece em São Cipriano após aluguel em casa abandonada. Autoridades locais encerram buscas por falta de provas.”

Ele mostrou o jornal a Ana.

— Provavelmente é só coincidência, né? — disse, sem muita convicção.

Ana sentou-se devagar, sem tirar os olhos da notícia.

— A data. É o mesmo mês. Junho. E o nome da rua... é essa casa.

Marcos tentou rir.

— Talvez essa cidade só precise de mais jornalismo investigativo. Sabe como é, folclore, tragédia, dá ibope...

— Marcos, ontem à noite... eu sonhei com sapos.

Ele parou. Olhou sério.

— Tipo... “a gente acorda de um pesadelo e ri”, ou tipo “você tá lembrando agora e sentindo vontade de chorar”?

— Eu... eu não sei. Só lembro do som. Milhares deles. Não era natural. Era como... como se estivessem cantando.

Silêncio.

Ele pegou o copo de água da pia, cheirou.

— Isso tá com cheiro de sangue.

— Eu sei.

Durante o dia, a vila estava estranhamente parada.

Não havia barulho de carroça, nem rádio tocando. As lojas estavam fechadas. Os poucos moradores que apareciam na rua desviavam o olhar. Um menino passou correndo, descalço, e deixou cair um brinquedo de madeira.

Ana pegou o boneco. Era um sapo.

Feito à mão, grosseiro, mas os olhos tinham detalhe demais. Ela jurava que piscavam com o reflexo da luz.

No final da tarde, foram até a venda de novo. Estava aberta, mas vazia. Nenhum funcionário, nenhum som.

Sobre o balcão, uma única garrafa de água mineral, como se estivesse deixada ali propositalmente.

Ao lado dela, um bilhete:

“Não fiquem depois da sexta noite. A casa conhece seus nomes agora.”

Naquela noite, Ana trancou todas as portas e janelas. Marcos afastou os móveis e bloqueou as frestas com toalhas.

— Se isso for alguma pegadinha bizarra de interior, eu juro que vou rir no final.

— Você ainda acha que isso é pegadinha?

— Não. Mas prefiro isso do que pensar que a gente... foi trazido.

Ana parou de se mover.

— Trouxeram a gente, Marcos?

Ele não respondeu.

Mas no fundo, ela já sabia.

Durante a madrugada, ela acordou com o som.

Era um coaxar.

Baixo, molhado. Vindo do telhado.

Depois do sótão.

Depois das paredes.

Marcos dormia profundamente, o rosto pálido, os olhos tremendo sob as pálpebras.

Ela se aproximou. E quando ia acordá-lo, viu algo estranho: uma bolha d’água escorrendo do canto do olho dele.

Não era lágrima. Era mais densa. Escura.

Como se a chuva já estivesse dentro dele.

O dia nasceu cinza. Mas não o cinza comum das manhãs nubladas. Era um tom mais escuro, como se o céu tivesse sido coberto por uma lona suja, pesada. O sol não apareceu nem por segundos. E, mesmo sem vento, as árvores e arbustos da praça balançavam — como se respirassem.

Ana acordou antes de Marcos. O corpo inteiro doía. Quando se olhou no espelho, notou pequenas manchas escuras nas laterais do pescoço, como hematomas circulares. Tentou esfregar, mas elas estavam fundas na pele, como marcas de sucção.

Na cozinha, a torneira soltou dois espirros secos de ar antes de morrer de vez. Nenhuma gota.

— A água acabou — disse ela, enquanto Marcos, ainda sonolento, aparecia no corredor.

Ele parou.

— Isso... é normal?

— Aqui, nada mais parece normal.

Eles comeram bolachas velhas e dividem a última garrafa de água. O relógio marcava 9h44 quando ouviram o primeiro som: uma pancada seca no telhado. Depois outra. Como se pedras estivessem caindo.

— Deve ser o começo da chuva — disse Marcos, tentando parecer calmo.

Mas Ana estava parada na janela.

— Não. Não são pedras. São... sapos.

Ele foi até ela. Juntos, viram um dos bichos escorregar pela calha e cair no chão com um estalo úmido. Era maior que o normal, com a pele acinzentada e olhos muito escuros. Por um segundo, os olhos do animal se moveram com consciência — não como um bicho, mas como algo que observa e reconhece.

E então, o som.

Vindo do centro da vila.

Um coaxar em uníssono.

Não era natural. Tinha ritmo. Padrão. Era um canto. Uma convocação.

Marcos correu até a porta. Estava destrancada, como haviam deixado, mas agora não abria. A maçaneta girava, mas o trinco parecia preso por dentro — como se a casa estivesse... segurando.

Ana começou a ouvir vozes.

Sussurros pelas paredes.

Pelas frestas do chão.

Pelo encanamento seco.

“O tempo chegou.

A carne deve responder.

Vocês estão escolhidos.”

Ela caiu de joelhos, segurando a cabeça.

— Faz parar! Faz parar!

Marcos correu até ela, desesperado. O som estava por todo lado. O coaxar se transformava em palavras. Palavras em línguas antigas, que não deviam existir. Palavras que pareciam vir da terra, do fundo do barro, de debaixo da casa.

Eles correram para o quarto. Fecharam a porta. Empurraram a cômoda.

Lá fora, os sapos começaram a entrar.

Pelas venezianas.

Pelo ralo do banheiro.

Pelas rachaduras do assoalho.

Escorrendo pelas paredes como lama viva.

Marcos pegou a faca de cozinha. Era tudo que tinha.

Ana estava no canto, cobrindo os ouvidos, os olhos arregalados.

— Vai passar — disse ele. — Só precisamos resistir. Só isso.

Mas ela já sabia que não era sobre resistir.

Era sobre aceitar.

Na parede do quarto, uma fenda apareceu.

Fina. Escorrendo sangue.

Depois abriu-se, como se a casa estivesse parindo algo.

Dali saiu o primeiro deles.

Não era sapo.

Era... algo que usava a forma de um sapo.

Tinha pele e olhos e bocas demais. Saltava e se arrastava, como se tivesse nascido da fome de algo maior.

E quando abriu a boca, Ana ouviu a voz de Dona Zefa.

“É assim que se preserva.

Com sangue, com silêncio.

Com entrega."

O tempo dentro da casa não seguia mais as regras da Terra.

Ana não sabia há quantas horas estavam ali. Os sapos — ou as coisas que fingiam ser sapos — agora não rastejavam mais: caminhavam. De pé. Em duas pernas. Com mãos pequenas demais, cheias de unhas.

Alguns usavam pedaços de pele humana como manto.

Marcos estava no chão. Respirava, mas não falava mais. Os olhos parados, como os dos animais mortos que o avô de Ana pendurava atrás da casa.

Ela tentava não pensar. Apenas ouvia o som da chuva vermelha do lado de fora. Agora, também caía dentro da casa.

Gotejava do teto como lágrimas.

Escorria pelas paredes.

Mergulhava o quarto inteiro em um vermelho espesso, quente, vivo.

As criaturas cercaram o casal. Não atacaram. Só observavam.

Foi então que ela percebeu: não estavam ali por ela.

Era ele.

Marcos.

Ele sussurrou algo.

— Ana... me desculpa. Eu sabia.

Ela congelou.

— O quê?

— Eu... soube. A imobiliária... me pagaram pra trazer alguém. Eu não sabia que seria assim. Achei que era só... uma superstição. Um ritual bobo. Me disseram que duraria pouco. Que seria indolor. Eu só... só queria o dinheiro.

Os olhos de Ana ardiam.

Chuva caía sobre ela. Dentro dela.

As criaturas se moviam. Lentamente.

Uma delas se aproximou de Marcos. Encostou a mão no peito dele.

Ele se contorceu.

Gritou.

Mas não saiu som.

E então, ele se desfez.

Não explodiu. Não foi rasgado. Apenas... desmanchou. Como se sua existência fosse devolvida em partículas, em sangue, em silêncio.

Ana gritou.

E a casa... parou de chover.

Na manhã seguinte, a vila estava em paz.

Crianças voltaram a brincar na praça.

O mercado reabriu.

Dona Zefa pendurou roupa no varal, assoviando.

Na casa da Cruz Torta, apenas Ana permanecia.

Sentada.

Encharcada.

Olhos vazios, fixos na porta.

Ninguém ousava entrar.

— Sobreviveu — disse um dos moradores, cochichando.

— E agora?

— Agora... a vila vai esperar de novo. Mas algo mudou.

No chão do quarto, onde antes estava Marcos, uma nova rachadura surgiu.

Fina.

Pulsante.

No meio dela, uma flor brotava.

Vermelha.

Carnuda.

O ciclo recomeçara.,

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