O quarto era simplesmente branco. Branco de um jeito agressivo, violento, como se tivesse sido pintado com a intenção específica de apagar qualquer pensamento que tentasse sobreviver ali dentro. O tipo de branco que não se encontra numa loja de tintas comum, mas talvez em uma clínica onde ninguém volta o mesmo.
As paredes, o teto, o chão — tudo revestido pela mesma superfície lisa e absurda, sem um único detalhe, uma única rachadura, sem sombra, sem textura. Um branco absoluto. Não era hospitalar. Era hostil. Um branco que parecia vibrar, como se estivesse à beira de emitir som.
Havia poucos móveis, igualmente brancos, que pareciam brotados do chão, ou moldados da mesma massa sólida que fazia o ambiente. Uma cama de solteiro sem cabeceira, uma cadeira de madeira — fria ao toque — e uma mesa pequena onde absolutamente nada repousava. Tudo meticulosamente colocado, como peças numa exposição cujo tema fosse "o nada".
O mais perturbador era a ausência total de marcas humanas. Nem um arranhão no chão. Nem um canto lascado na madeira. Nenhum vestígio de que alguém, algum dia, existiu ali. Exceto eu.
Acordei ali.
Não lembrava de como.
Só sei que abri os olhos, e o branco me engoliu como uma onda. Não houve aquele breve momento de desorientação normal — o cérebro pulando entre sonho e vigília — houve apenas o choque. Um soco visual. Era como se meus olhos não estivessem prontos para aquele mundo, como se tivessem nascido naquele instante, condenados a um único estímulo.
Levantar da cama foi como tentar se erguer de dentro de um torpor anestésico. Os músculos respondiam com lentidão, como se estivessem debaixo d’água. Senti a tontura quase imediatamente, um redemoinho suave, mas constante, que tornava cada tentativa de se orientar inútil. O chão parecia se mover embaixo de mim — ora se esticando, ora se encolhendo — como se respirasse.
Não havia som.
Nenhum.
Não o silêncio comum de uma madrugada calma, mas uma ausência de som que parecia premeditada. Uma construção. Como se o ambiente tivesse sido projetado para absorver tudo: minha respiração, o ranger do colchão, os passos descalços. Andar ali era como caminhar dentro do próprio crânio.
como um corredor que vai se estreitando.
O silêncio tinha peso.
E forma.
Ele se acumulava nos cantos do quarto — se é que havia cantos — e se adensava como poeira invisível, pressionando meus ombros e enchendo meu peito com uma ansiedade silenciosa, quase respeitosa. Como se estivesse esperando. Observando.
Respirei fundo.
Esperei ouvir minha própria respiração — o som mais íntimo, mais inegável, o som da vida dentro da gente.
Nada.
Era como tentar ouvir uma fita sem fita. Como um sussurro num vácuo.
O ar entrava e saía, mas não produzia ruído algum.
Ali, até o tempo parecia engolido. Não sabia dizer se eram cinco da manhã ou duas da tarde. A luz era constante, neutra, sem ângulo, sem sombra. Uma luz branca que parecia vir de todas as direções — ou de lugar nenhum.
Olhei para meus próprios braços. Estavam ali. Mas não havia cor neles. Como se minha pele fosse um reflexo da parede, da cadeira, do lençol. Meu corpo inteiro era um prolongamento daquele lugar.
...eu não gostava disso.
Tentei lembrar.
Qualquer coisa.
Um nome. Um rosto. Uma rua. Um som.
Mas a mente tropeçava em branco, como se as memórias fossem páginas arrancadas de um livro antes da impressão.
Era um vazio tão agudo que doía fisicamente. Quando tentei forçar, a dor se concentrou atrás dos olhos — uma pontada quente, como se um prego tivesse sido empurrado devagar através do globo ocular, lá atrás, no fundo da cabeça, onde ficam as lembranças de verdade.
Me sentei na cama. Coloquei as mãos no rosto.
Foi aí que percebi que estava suando.
O suor corria frio pelas costas. Entre os dedos. Dentro dos cotovelos.
Não pelo calor — ali era sempre a mesma temperatura — mas pela sensação.
De que algo estava prestes a acontecer.
Ou talvez... já estivesse acontecendo.
E eu seria o último a saber.
Ali não era um quarto comum.
Era como se o espaço não tivesse sido feito para um corpo humano.
Comecei a notar isso depois de um tempo — talvez horas, talvez dias. É difícil dizer. Na ausência de som, de sombra e de mudança, o tempo se dissolve. Mas minha mente começou a perceber pequenas... anomalias.
Os cantos do quarto não pareciam mais fixos.
Eles... oscilavam.
Não fisicamente, mas na percepção.
Eu olhava para a mesa e ela parecia mais próxima da cama. Olhava de novo, e estava mais longe. A cadeira se movia quando eu não olhava. Eu tinha certeza disso. Uma certeza instintiva, como a que sentimos ao saber que alguém está nos observando, mesmo de olhos fechados.
Comecei a andar em círculos, medindo os passos.
Dez passos até a parede.
Depois, doze.
Depois, sete.
Isso não fazia sentido.
Comecei a andar com os olhos fechados, tentando sentir o espaço com o corpo, com os pés. O chão parecia plano — mas ao mesmo tempo, em certas áreas, havia uma leve inclinação invisível, uma sensação de que eu estava sendo levemente puxado em determinada direção.
Como se o quarto respirasse.
Como se o chão tivesse pulso.
Tentei me acalmar. Sentei de novo na cama. Olhei ao redor.
A mesa. A cadeira. A cama. As paredes.
Tudo perfeitamente branco.
E então algo aconteceu.
Não uma mudança brusca. Mas um detalhe sutil demais para ser ignorado.
A mesa.
Ela agora estava virada para outra direção.
Eu não tinha tocado nela. Não lembro de ter tocado. Mas ela não estava onde devia estar.
Me aproximei. Toquei.
Fria. Imóvel.
Mas eu sabia. Ela havia se movido.
Deitei no chão. Tentei encostar o rosto. Ver se havia alguma diferença na textura.
Mas não havia chão — havia apenas branco.
E mesmo com o rosto colado ao solo, não ouvia minha própria respiração ecoar.
Era como se o quarto consumisse tudo o que eu emitia.
Voltei a me sentar na cama, dessa vez sem soltar o colchão.
A sensação crescia. Não de medo. Não ainda.
Era algo mais... ancestral.
Como se meu corpo estivesse se lembrando de um instinto que a mente não compreendia.
Algo dentro de mim dizia:
“Esse lugar não foi feito para você.
Esse lugar... é você.”
E aí, pela primeira vez, eu me perguntei:
será que eu realmente acordei aqui?
Ou será que... nunca saí?
Não havia ninguém ali.
Nunca houve.
E, aos poucos, comecei a entender que talvez o que me apavorava não era a ideia de estar preso com alguma coisa…
Mas de estar preso comigo mesmo.
Mais ainda:
Preso depois de mim mesmo.
Como se eu fosse um rascunho do que havia sido alguém.
Como se a mente, isolada demais, começasse a se apagar linha por linha, letra por letra, mas não tudo de uma vez — não. Ela apaga o que for mais urgente esquecer primeiro. Nome. Memória. Tempo. E depois, vai roendo o resto com calma.
Eu não estava sendo vigiado.
Eu estava sendo reconhecido por mim mesmo.
E não gostava do que via.
Acordei várias vezes — mesmo sem dormir.
Me vi deitado. Depois em pé.
Depois sentado na cadeira.
Depois andando em círculos.
Depois encarando a parede, como se houvesse algo escrito nela que só aparecia pra mim.
Mas não havia.
Nunca houve.
E ainda assim, continuei olhando.
Ficar muito tempo sozinho faz isso.
Mas ficar muito tempo em branco... faz outra coisa.
Você começa a pensar coisas que não são pensamentos.
Começa a ouvir ruídos que não são sons.
Começa a duvidar que existiu, de verdade, antes daquele quarto.
Você sente o cérebro... deslizar.
Não por falha.
Mas por excesso de silêncio.
Lá pela enésima hora — ou dia, ou século — comecei a conversar comigo.
Em voz alta.
Mesmo sem som.
Imitava vozes.
Inventava perguntas e respostas.
Repetia palavras sem sentido até elas parecerem outra língua.
“Branco. Branco. Branco. Branco. Brancobrancobrancobrancob...”
E de repente, era como se essa palavra nunca tivesse tido significado nenhum.
Fiquei tentando lembrar o nome de uma fruta. Qualquer fruta.
Apenas uma.
Não consegui.
E aí comecei a chorar.
Não por tristeza.
Mas por constatar que a mente, quando não é alimentada com mundo, come a si mesma.
E naquele lugar...
não havia nada para me alimentar.
Nem dor.
Nem toque.
Nem cor.
Só eu
.....dissolvendo aos poucos, como açúcar no chá.
A última coisa que lembro de ter sentido foi… ausência.
Nem dor. Nem paz. Nem medo.
Apenas aquela ausência que é mais forte que qualquer presença.
Mais forte que um grito.
Mais forte que Deus.
É o momento em que a mente para de tentar entender.
Para de buscar padrão.
Para de resistir.
E começa, simplesmente, a não ser.
Deitei na cama. Ou talvez estivesse de pé. Ou talvez não estivesse mais em forma alguma.
Meu corpo já não importava.
Ele era só… extensão do branco.
As palavras sumiram primeiro.
Depois os pensamentos.
E, por fim, o impulso de existir.
Foi aí que percebi — de forma tão clara que não precisava de voz ou razão — que eu não havia sido esquecido ali.
Eu havia sido apagado.
Não por alguém.
Mas por dentro.
Por mim.
Era como se minha mente tivesse finalmente alcançado o branco perfeito.
A pureza do nada.
A quietude absoluta onde nenhuma dor consegue entrar — porque não há mais onde ela se prender.
E no instante em que isso aconteceu...
Não houve luz.
Nem som.
Nem fim.
Apenas branco.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 39
Comments
~abril(。・ω・。)ノ♡
Adorei essa introdução.
2025-04-23
1