Ninguém durava muito tempo no 303.
Para a maioria dos moradores do Edifício Monte Castelo, era apenas mais um número entre tantos, uma porta como outra qualquer em um dos blocos esquecidos do centro. Mas os antigos sabiam — e os novos, quando descobriam, já era tarde demais.
Lucas ignorou tudo. As histórias, os olhares desviados, o porteiro que gaguejou ao entregar as chaves. Era o tipo de cara que não acreditava em “baboseiras populares”, como dizia com aquele tom de desdém que aprendeu lendo Bukowski e ouvindo podcasts sobre niilismo.
Pagou seiscentos reais por um aluguel no centro da cidade, sem fiador e sem consulta ao nome sujo. Um achado. Uma bênção.
Ou um aviso ignorado.
O apartamento tinha cheiro de tinta fresca misturado a mofo de décadas. As paredes recém-pintadas não escondiam os vestígios da água que descia pelas frestas da estrutura. O chão de taco rangia como se guardasse memórias — memórias ruins.
Lucas se mudou numa terça-feira nublada, com duas malas, um colchão inflável e uma TV de 42 polegadas. Naquela noite, comeu pizza fria sentado no chão da sala vazia, bebendo cerveja quente direto da lata. Sentia-se livre. Finalmente longe da cidade pequena, da mãe controladora, da ex que dizia que ele "só fugia".
Mas naquela primeira noite, às 3h03, a TV ligou sozinha.
Sem som. Só imagem.
Um corredor escuro. Piso de mármore rachado. Uma porta vermelha no fim, trêmula como se estivesse pulsando. Diante dela, um homem — magro, nu, o rosto coberto de sangue seco. Os olhos abertos, vazios. O olhar... não era para a porta. Era direto para a câmera.
Direto para ele.
Lucas desligou. O controle caiu da mão, mas ele não percebeu. Deitou-se de novo. “Pegadinha do novo século. Deve ter algum sensor doido nessa merda.”
Na manhã seguinte, a vizinha do 304 bateu à sua porta. Era uma senhora de cabelos brancos desgrenhados, olhos inchados e batom borrado. Parecia que não dormia há dias.
— Você entrou lá... — disse, sem preâmbulos.
— Bom dia, dona...? — Ele abriu. Abriu a entrada de novo.
— Desculpa, a senhora tá bem? — Não abra o espelho. Ele vê.
Ela empurrou um pedaço de papel dobrado na mão de Lucas e saiu, arrastando os chinelos no corredor como se arrastasse também os ossos.
Lucas olhou o bilhete. Uma única palavra escrita à mão, com letras trêmulas:
“Lembre-se.”
Ele guardou o bilhete por impulso.
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Lucas acordou às 3h03.
Sem alarme. Sem barulho. Apenas aquele despertar repentino, como se algo o tivesse puxado das profundezas de um pesadelo que ele já não conseguia lembrar.
A TV estava ligada de novo.
Mas agora havia som. Um sussurro, baixo, constante, como se uma centena de pessoas murmurassem orações esquecidas por trás de uma parede fina. A imagem era a mesma: o corredor escuro, a porta vermelha. O homem nu ainda estava ali, mas agora batia com a cabeça contra a porta. Lentamente. Ritmado. Cada batida fazia o vídeo vibrar, como se a câmera sofresse com o impacto.
Lucas desligou a TV.
O controle estava no chão, do outro lado da sala. Ele não lembrava de ter deixado ali. Mas a cabeça latejava demais para questionar.
Foi até o banheiro, querendo lavar o rosto e esquecer a madrugada como se fosse um filme ruim. A luz trêmula do teto parecia mais fraca, e o espelho embaçado exibia a própria imagem distorcida. Mas não havia vapor. Não havia banho.
Ele passou a mão para limpar. E viu.
No reflexo, ele não estava sozinho.
Atrás de si, parado junto à porta do banheiro, um vulto — escuro, como fumaça, mas com algo vagamente humano em sua forma. Os olhos eram dois buracos vermelhos, fundos, pulsando.
O reflexo sorriu.
Lucas se virou num rompante, mas o banheiro estava vazio.
Voltou o olhar para o espelho.
Nada. Apenas ele.
Mas agora... ele estava suando frio.
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Durante o dia, tentou convencer a si mesmo de que estava apenas cansado. Mudanças de cidade, pressão do novo emprego que começaria dali a uma semana, aquela paranoia de sempre que vinha junto com a solidão.
Mas o 303 não deixava esquecer.
A geladeira, que ele jurava estar desligada, começou a fazer um som agudo, como uma sirene abafada. Às vezes, Lucas tinha certeza de que ouvia passos no corredor... dentro do apartamento. Pequenos estalos na madeira, como pés descalços andando devagar.
À noite, as batidas começaram. Três toques secos. Sempre às 3h03.
Na parede.
No chão.
E no espelho.
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Cansado, Lucas buscou o bilhete da velha do 304. Releu a palavra “Lembre-se” como quem procura um feitiço de proteção. Havia algo naquele papel que o incomodava. A textura era mais grossa, quase áspera. E, ao segurar contra a luz, ele notou uma mancha — algo escrito por baixo, apagado ou encoberto.
Raspou levemente com a unha.
“303 é uma repetição.”
O quê?
Ele vasculhou a internet. Não encontrou nada relevante. Apenas fóruns obscuros com histórias mal contadas sobre apartamentos onde o tempo se dobrava, onde pessoas desapareciam e reapareciam sem memória. Uma postagem, em particular, o fez congelar:
“Se você está no 303, cuidado com os espelhos. Eles não mostram você. Eles mostram quem te quer de volta.”
Lucas tentou sair do apartamento naquela noite. Deu duas voltas na chave, pegou as mochilas.
Mas a porta não abria.
A maçaneta girava em falso, como se fosse parte de um cenário. O olho mágico mostrava o corredor, sim — mas em preto e branco, e vazio demais. Sem som. Sem luz.
Sem saída.
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A primeira vez aconteceu às 2h17 da manhã. Lucas acordou com sede e foi até a cozinha. Acendeu a luz. Serviu-se de água. Voltou para o colchão. Cochilou.
Acordou de novo às 2h17.
Exatamente.
Olhou o celular. Pensou estar bugado. Reiniciou. O relógio voltou: 2h17.
Olhou pela janela. A rua estava escura como breu. O poste à frente do prédio, que piscava durante o dia, estava agora completamente apagado. Mas havia luz vinda de algum lugar. Uma luz fria, branca, que parecia escorrer das paredes do apartamento.
Olhou para o corredor do 303.
O corredor estava mais comprido.
Não havia portas, nem luzes. Apenas um vazio retorcido se estendendo além da geometria real do imóvel. Um eco gelado se arrastava pelo chão de madeira. Não era som. Era como se o próprio ar deslizasse ali, úmido e sibilante.
Lucas recuou.
Olhou o celular.
2h17.
E quando olhou de novo para o corredor... ele já não estava ali.
A planta original do apartamento tinha voltado.
Ele tocou o batente da porta. Estava quente. Como se tivesse sido dobrado, esticado... e recém-recolocado no lugar.
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Na noite seguinte, colocou o celular para gravar áudio. Deixou em cima da mesa, junto ao bilhete da vizinha. Dormiu com a TV desligada, trancado no quarto, a luz do banheiro acesa.
Acordou com dor no pescoço. E arranhões no braço esquerdo.
Nada sério. Mas profundos o suficiente para sangrar.
Correu até o celular. Parou a gravação. Ao reproduzir, o áudio estava normal... até 3h03.
Um estalo. Um som de vento. E depois, uma voz rouca, mas familiar:
“Você não devia ter lembrado. O 303 só existe porque você existe.”
Ele pausou.
Recuou até o canto da sala. Tremia. Não de medo — mas de um reconhecimento sinistro.
Aquilo era a sua voz.
Gravada. Falando com ele mesmo.
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Na tarde seguinte, tentou sair de novo.
Abriu a porta com força. Corredor vazio. Luzes apagadas.
Desceu as escadas correndo, três andares. A cada lance, as luzes piscavam.
Ao chegar no térreo, as portas de entrada... não existiam mais.
Em seu lugar, um espelho. Enorme. Atravessando toda a parede.
E nele, o reflexo mostrava o hall vazio. Mas sem ele.
Lucas não estava lá.
O espelho devolvia um mundo onde ele não existia.
Onde talvez nunca tivesse existido.
Ele subiu correndo, tropeçando nos próprios pés.
Ao entrar no 303, a porta se fechou sozinha atrás dele.
Não bateu. Não trancou.
Sumiu.
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Lucas passou as próximas horas sentado na sala, sem coragem de piscar por muito tempo. O apartamento estava mudo, parado — como se estivesse esperando ele se mexer.
Ele não dormiu. Não comeu. Não bebeu.
Porque no fundo, ele sabia.
Estava sendo observado.
Às 3h03, a luz do teto piscou uma vez. Só uma.
E então veio o cheiro.
Não de mofo. Nem de coisa podre.
Era um cheiro quente, metálico, como sangue novo misturado com ferro oxidado. Era o cheiro de um lugar onde algo foi morto… e o que sobrou se recusou a ir embora.
Lucas se levantou devagar, como se qualquer movimento mais brusco pudesse acordar algo.
O espelho do banheiro estava sujo.
Mas não por fora.
Por dentro.
Como se algo do outro lado tivesse encostado a mão suja e deixado um rastro. Havia marcas de dedos. Longos. Quase... garras.
Ele se aproximou.
E então viu.
Um rosto.
Não o seu.
Não uma distorção.
Mas um rosto parado no fundo do espelho, olhando-o com olhos tão fundos e pretos que pareciam sugar tudo ao redor. A boca era grande demais. O nariz, desprovido de forma. A pele... lisa como vidro, sem poros, sem humanidade.
E então, abriu a boca.
Do outro lado do espelho.
Não saiu som.
Mas o abajur estourou.
As luzes apagaram.
Lucas tropeçou para trás. Bateu a cabeça na parede. O mundo girou.
E por um momento, ele viu o 303 como ele realmente era.
Não havia paredes.
Não havia teto.
Apenas um espaço oco e escuro, com dezenas de olhos flutuando no ar, todos voltados para ele. As janelas tremiam. O chão pulsava como carne. O ar estava mais quente — como a respiração de algo muito grande… e muito perto.
Ele tentou gritar.
Mas o som não saía.
E então, tudo voltou.
A sala.
A luz.
O silêncio.
O espelho estava limpo.
Mas no chão, em letras tremidas de água vermelha, havia uma frase:
ELE MORA AQUI.
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Lucas começou a contar os dias.
Mas isso não importava.
Porque o tempo no 303 não respeitava calendários.
Às vezes, ele acordava e o leite na geladeira estava coalhado. Outras, as plantas que ele esqueceu de regar estavam verdejantes e abertas, como se tivessem acabado de ser colocadas ali. Seu celular mostrava a mesma data há cinco dias. Depois, pulava três semanas.
Mas isso não era o pior.
O pior era o espelho que surgira no quarto.
Ele nunca esteve ali antes.
Simples, oval, pendurado acima da cama como uma sentença.
Ele o cobriu com um lençol. Mas toda manhã, o lençol caía.
E o reflexo mostrava Lucas... dormindo.
Mesmo quando ele estava acordado.
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Aos poucos, ele parou de lutar.
Dormia por exaustão, com luzes acesas.
Não comia mais. O estômago não sentia fome, mas o corpo enfraquecia.
A pele ficou acinzentada. Os olhos fundos.
Ele já não lembrava seu sobrenome. Não sabia de onde viera.
E o mais assustador… já não sabia se queria sair.
O 303 começou a falar com ele.
Nas paredes, nas rachaduras do teto, nas pausas entre os zumbidos dos fios elétricos.
Sussurros como o som do vento num necrotério. Vozes de quem foi esquecido.
“Você é lar agora.”
“Fique. Preencha o vazio.”
“Ele precisa de você inteiro.”
Ele tentou quebrar o espelho. Usou um martelo. Um pedaço de ferro.
Mas a superfície absorveu os golpes, como se fosse líquido.
E, por um segundo, a mão dele quase entrou.
E do outro lado… algo tentou puxar.
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Na última noite, Lucas se sentou na sala.
Respirou fundo.
Olhou para a porta.
Ela estava aberta.
Pela primeira vez.
O corredor à frente estava vazio, iluminado pela luz fraca de emergência.
Ele se levantou. Caminhou. Cada passo ecoava como um adeus.
Chegou à soleira. Parou.
Olhou para fora. Depois para dentro.
E o 303 falou pela última vez:
“Você já está aqui. Sempre esteve.”
Lucas virou-se para correr.
Mas não havia mais corredor.
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Atualizado até capítulo 39
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