A floresta carregava o cheiro da morte.
Mesmo dias depois do enterro, Luna sentia o aroma do sangue impregnado nas folhas, na terra, na própria pele. Era como se a floresta respirasse aquilo, absorvendo o último suspiro do policial Elias e transformando-o em parte daquele lugar.
Desde então, algo entre ela e Ele havia mudado. Não que ele dissesse com palavras — raramente falava mais do que algumas frases. Mas Luna percebia. Ele a olhava diferente. Como se, ao assistir ao assassinato, ao ajudá-lo a enterrar o corpo, ela tivesse atravessado uma porta invisível. Agora, não era mais apenas "a menina perdida". Era dele.
E isso… a assustava.
Mas também a prendia.
Naquela manhã, acordou com os dedos dele afagando seu cabelo. O gesto era quase carinhoso, mas o toque era tenso. Como se o carinho fosse forçado, aprendido. Ele não sabia amar. Só sabia possuir.
— Dormiu bem? — a voz dele era rouca, baixa.
Luna assentiu. Não tinha forças para falar. Acordava todas as noites com pesadelos. Às vezes com o som do machado. Outras com o olhar de Elias antes de morrer.
— Te trouxe frutas. E carne. — disse Ele, deixando um punhado de amoras e pedaços cozidos de algo que Luna não reconheceu. Não perguntou. Não queria saber.
Comer era uma tarefa silenciosa. Ele ficava observando, como se cada mordida dela fosse uma confirmação de que ela ainda estava ali. Que não o havia traído.
Depois do café, caminharam juntos até o riacho. Era uma trilha escondida, cercada por arbustos e pedras. Ela gostava daquele lugar. Era um dos poucos onde conseguia respirar.
— Você acha que vão voltar? — ela perguntou.
Ele não respondeu de imediato. Bebeu um pouco da água gelada e depois limpou a boca com as costas da mão.
— Se voltarem, morrem. Simples assim.
— E se forem muitos?
Ele olhou para ela, e naquele instante, Luna viu. Não medo. Não hesitação. Mas prazer. Uma fome.
— Quanto mais, melhor.
Ela desviou o olhar.
Mais tarde, Luna andava sozinha pela floresta. Algo que Ele permitia com relutância. Mas ela precisava de espaço, mesmo que por pouco tempo. Seus pensamentos estavam caóticos. O lugar que antes era um refúgio começava a parecer uma prisão aberta.
Na verdade, a prisão não era feita de troncos, nem de mato.
Era feita dele.
De seu olhar. Do som dos passos pesados. Das palavras marcadas de posse.
"Você é minha."
"Eu te protejo."
"Eu te amo."
Amor. Ela não sabia mais o que era isso. Desde criança, nunca sentira nada que se aproximasse. Sua mãe a tratava como lixo. O padrasto a usava como se ela fosse um objeto descartável. Até seu próprio reflexo parecia estranho. Ela se olhava na água e se perguntava: "Sou mesmo real?"
Mas com Ele… havia uma estranha conexão. Ambos destruídos, quebrados. Ambos moldados pela violência.
Luna não sabia se aquilo era amor ou se era só sobrevivência.
Quando voltou para o abrigo, Ele não estava lá. O machado estava encostado ao lado da fogueira, o que a deixava mais tranquila. Ele sempre o levava. Sempre.
Ela aproveitou para vasculhar. Algo que vinha tentando há dias. Procurava alguma pista sobre quem ele fora. Um nome, talvez. Uma foto. Algo.
Num canto da cabana improvisada, encontrou uma mochila velha. Revirou com cuidado. Dentro, alguns papéis rasgados, um isqueiro, uma faca menor… e um caderno.
O couro da capa estava desgastado. Havia sangue seco nas bordas. Quando abriu, viu as letras. Escritas em uma caligrafia torta, trêmula.
“6 anos. Primeiro sangue. Chorei. Eles riram.”
“11 anos. Mata ou morre. Meu presente foi silêncio.”
“14 anos. Mamãe chorou quando matei o cachorro. Depois mandou eu matar de novo. Era o que ela queria. Sempre foi.”
“16. Corpos não me assustam mais. Só o espelho.”
As páginas estavam cheias. Eram confissões. Memórias de tortura, de abuso, de assassinatos forçados. Uma vida inteira construída sob medo, raiva… e obediência.
“19. Fugi. Matei meu pai com a mesma faca que ele me deu aos seis. Liberdade tem gosto de ferro.”
Luna leu e releu. Sentiu um nó na garganta. Pela primeira vez, viu Ele como humano. Não apenas como um monstro. Mas um menino que nunca teve escolha.
Sentiu-se próxima dele. Mas também mais distante. Porque se ela ficasse... poderia se tornar algo parecido?
Ou já estava se tornando?
Devolveu o caderno à mochila no mesmo estado. Quando se virou, Ele estava parado na entrada.
— O que você tava fazendo?
A voz era baixa. Quase um sussurro. Mas carregada de tensão.
Luna congelou.
— Eu... só tava procurando cobertor. Tá frio hoje.
Ele a encarou por longos segundos. Depois se aproximou. Pegou o caderno. Olhou a capa. Os dedos roçaram o couro velho.
— Você leu?
Ela pensou em mentir. Mas não conseguiu.
— Li.
Ele fechou os olhos por um segundo. Um músculo em sua mandíbula pulsava.
— Agora você sabe. Tudo.
— Sim.
— E você... me odeia?
Luna balançou a cabeça lentamente.
— Não.
Ele soltou um suspiro trêmulo. Como se aquele momento fosse mais difícil do que qualquer morte que já causou.
— Você devia me odiar.
— Talvez. Mas não odeio.
— Por quê?
Ela não tinha resposta. Só sabia que… não odiava. E isso a assustava mais do que qualquer outra coisa.
Naquela noite, Ele deitou ao lado dela. Pela primeira vez, tocou sua pele com a palma da mão aberta. Um toque gentil. Humano.
— Posso? — ele perguntou.
Ela olhou para ele, olhos firmes.
— Não hoje.
Ele assentiu. E se virou de costas, respeitando.
Luna ficou ali, olhando o céu escuro por entre as folhas. Pensando no que seria de si. Pensando na irmã, que talvez nem se lembrasse mais dela. Pensando que se alguém viesse procurá-la, provavelmente morreria.
Mas também pensava nele.
No menino que matava com seis anos.
No jovem que assassinou o próprio pai.
No homem que agora dormia ao lado dela.
Um protetor.
Um assassino.
Seu carcereiro.
Seu salvador.
E se odiava por pensar: Talvez, eu também seja tudo isso.
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Atualizado até capítulo 51
Comments
Carlos Vazquez Hernandez
Inesquecível 🥰
2025-04-22
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