A floresta andava mais silenciosa do que o normal. Nem mesmo o canto noturno das corujas se ouvia. Luna notou isso enquanto lavava o rosto no riacho. A água estava gelada, cortante, mas trazia um certo alívio à cabeça confusa. Os dias ali dentro pareciam um borrão. A floresta já não assustava tanto. Ela conhecia suas trilhas, seus cheiros, os pontos onde podia encontrar frutas silvestres e raízes comestíveis. E conhecia... Ele.
Ele, que a observava mesmo quando ela não o via. Que aparecia do nada, com a roupa suja de lama e os olhos fundos, dizendo que "estava tudo sob controle". Que dormia perto o suficiente pra protegê-la, mas distante o bastante pra não tocar. Ainda assim, havia uma tensão no ar sempre que estavam juntos — um fogo contido, prestes a se espalhar pela mata inteira.
Naquela manhã, Luna acordou com o som de passos. Mas não eram os dele.
Eram pesados. Tensos. Medidos.
Ela ficou em silêncio, deitada sob as folhas que cobriam seu abrigo subterrâneo improvisado. Cada centímetro do seu corpo parecia saber que algo estava errado.
Segundos depois, Ele apareceu. Os olhos semicerrados. A mandíbula travada.
— Não saia daqui — disse apenas, e sumiu entre os arbustos.
Luna ficou imóvel, o coração martelando no peito. Ela não sabia o que temer mais: o que se aproximava... ou o que Ele faria com isso.
O homem que entrara na floresta se chamava Elias Figueira. Policial veterano, quarenta e dois anos de idade, casado, pai de duas filhas. Um homem bom, de coração justo. Mas cansado. Cansado de ver crianças sumirem. De ver corpos serem encontrados em valas. De sentir o cheiro da morte todo dia no trabalho e não fazer ideia de onde ela vinha.
Os assassinatos recentes haviam se espalhado como uma praga. Primeiro o padrasto da garota Luna. Depois, um vizinho. Um segurança. Dois guardas da cidade sumiram após uma patrulha próxima à floresta. A única ligação entre os casos? Todos tinham alguma conexão com Luna.
E então, ela também desapareceu.
"Não é coincidência", pensou Elias. "Alguém a levou. Ou ela fugiu... e achou coisa pior."
Elias caminhava lentamente, arma em punho, olhos varrendo o terreno. A floresta era espessa, sufocante. Cada árvore parecia esconder olhos. O suor escorria pelas têmporas mesmo com o frio. Ele havia deixado seu carro a dois quilômetros da entrada, escondido. Viera sozinho — contra ordens superiores. Sabia que, com uma equipe, o “alvo” fugiria. Mas sozinho... poderia surpreender.
Ele não esperava ver Luna.
Muito menos daquele jeito.
Ela estava sentada em uma pedra coberta de musgo, os cabelos desgrenhados, as roupas sujas, mas o olhar... aquele olhar calmo, como se fosse parte da floresta.
— Luna?
Ela se virou devagar. Parecia reconhecer a voz. Seus olhos se arregalaram por um instante, depois voltaram ao normal.
— Você... é policial?
— Sim. Sou Elias. Tô aqui pra te levar de volta. Você tá segura agora. Vamos pra casa, tá?
Ela não respondeu.
— A sua irmã está bem. Está sendo cuidada por assistentes sociais. Você pode vê-la, Luna. Mas precisamos sair daqui.
Ela deu um passo para trás.
— Não posso ir.
— Por quê?
— Ele tá aqui.
— Quem?
Luna engoliu seco.
— Você precisa ir embora. Agora.
— Luna, você não entende. Esse homem é perigoso. Você tá assustada. Vem comigo, por favor. Eu juro que vou te proteger.
— Já sou protegida.
A voz dela saiu firme.
Foi nesse momento que Elias percebeu.
Ela não estava com medo. Não daquele lugar. E talvez... não dele.
Estava com medo do que aconteceria com ele.
O som do machado cortando o ar foi mais rápido que o grito.
Elias teve apenas tempo de virar o rosto e ver a sombra surgir entre os arbustos. A lâmina acertou o ombro dele em cheio, abrindo um corte profundo. Ele caiu de joelhos, a arma escorregando da mão.
Ele surgiu de pé, imponente, os olhos cravados no policial.
— Eu avisei. — murmurou.
— Desgraçado... — Elias tentou alcançar a arma, mas a bota do assassino esmagou seus dedos antes que pudesse tocar no cabo.
— Você veio pegar o que é meu. — a voz dele era baixa, controlada, mas fervia por dentro.
— Ela não é sua... é só uma menina...
A lâmina voltou a subir.
Luna gritou.
— PARE!
Ele parou. A lâmina suspensa no ar, tremendo nas mãos.
— Por favor... — ela sussurrou. — Não faça isso.
Os olhos dele encontraram os dela. Por um momento, houve hesitação. Um segundo apenas.
Mas foi o suficiente para Elias agarrar a arma e atirar.
O tiro pegou de raspão no abdômen de "Ele". Ele cambaleou para trás, rosnando como um animal ferido. Mas não caiu. O machado girou, e desta vez, Elias não teve chance.
O corte foi preciso. Frio. Silencioso.
O corpo caiu lentamente, como se o tempo tivesse desacelerado só para Luna assistir.
Ela correu para ele, mesmo sabendo que já era tarde. Elias ainda estava consciente, por um fio.
— Ele vai... te destruir — murmurou, o sangue escorrendo da boca.
Ela segurou a mão dele com força. Chorava, mas não por ele. Chorava pelo que se tornava. Pelo que aceitava. Pelo que estava perdendo dentro de si.
Ele se aproximou por trás. Colocou uma das mãos ensanguentadas no ombro dela.
— Eu disse que ninguém vai te tirar de mim.
Ela não respondeu. Apenas ficou ali, ajoelhada, olhando os olhos do policial apagarem.
E no fundo, uma parte dela... sentiu alívio.
Não porque Elias morreu.
Mas porque agora, não havia mais volta.
Naquela noite, a floresta parecia mais viva do que nunca. Os galhos se mexiam sem vento. Os grilos se calaram. E a Lua, cheia no céu, observava a cena lá de cima como uma testemunha silenciosa.
Ele cavou uma cova funda com as próprias mãos. Luna ajudou a cobrir o corpo com terra. Nenhum deles falou durante horas.
Quando o trabalho terminou, ela sentou-se na beira do buraco e olhou para as mãos cobertas de sangue seco e lama. Estavam tremendo.
— Isso vai acontecer sempre? — perguntou.
— Enquanto tentarem te levar, sim.
— E se um dia... eu quiser ir?
Ele a olhou com algo entre dor e fúria.
— Você não vai.
Silêncio.
Ela não disse que sim. Não disse que não.
Naquela noite, dormiram lado a lado. A mão dele repousava sobre a dela. E embora o corpo estivesse ali, a mente de Luna vagava por lugares que ela não sabia se existiam mais.
"Sou prisioneira?", pensava.
"Ou parte disso?"
As folhas sussurravam sobre amor e sangue.
E a floresta, cúmplice de tudo, os acolhia como seus novos filhos.
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Atualizado até capítulo 51
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