A Menina Que Não Sabia Brincar

Ela se chamava Luna.

Tinha oito anos, dois olhos enormes e uma coleção de filtros no rosto.

Sabia deslizar o dedo na tela antes mesmo de saber escrever o próprio nome.

Sabia sorrir para a câmera, mas não para o espelho.

Sabia dançar todas as trends,

mas nunca tinha corrido atrás de uma borboleta.

Luna morava num apartamento silencioso,

cheio de Wi-Fi e falta de tempo.

Os pais trabalhavam muito, e quando não trabalhavam, descansavam das exigências do trabalho.

Davam amor — do jeito que podiam.

Mas quase sempre, esse amor vinha com senha, com conexão, com distração.

Um dia, a escola fez algo estranho:

um dia inteiro sem eletrônicos.

Nada de tablets, nada de lousas digitais, nada de vídeos.

A professora disse que era “pra brincar como antigamente”.

Luna franziu a testa.

Brincar… como?

Colocaram cordas no pátio. Bolinhas de gude. Papel para dobradura.

Luna olhou tudo aquilo como quem observa objetos de outro planeta.

As outras crianças começaram a correr, gritar, suar.

Havia risos altos, tropeços, poeira.

Ela ficou sentada no canto, olhando.

Não sabia como entrar.

Não sabia como se joga amarelinha.

Não sabia perder no pega-pega sem chorar.

Não sabia brincar de faz-de-conta sem um filtro engraçado ou trilha sonora de fundo.

Sentiu algo estranho:

um aperto no peito misturado com um vazio que ela não sabia nomear.

A professora se aproximou, sentou ao lado.

Perguntou se estava tudo bem.

Luna respondeu com a frase que ouvira tantas vezes em casa:

— Tô só cansada.

Mas não era cansaço.

Era ausência.

Era a falta de algo que ela nunca teve, mas que o corpo sentia falta mesmo assim.

No dia seguinte, Luna desenhou.

Desenhou um balanço num parque que nunca visitou.

Desenhou uma menina correndo atrás de um cachorro sorridente.

Desenhou mãos dadas com outras crianças.

E ao lado, escreveu com letras tortas:

“Quero aprender a brincar.”

Não mostrou pra ninguém.

Mas guardou.

Dobrou o papel com cuidado,

e colocou dentro da mochila, entre os cadernos de tarefas.

A infância tinha deixado um bilhete.

Mesmo que ninguém estivesse ouvindo.

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O Tempo do Senhor Álvaro

O senhor Álvaro sentava no mesmo banco da praça todas as manhãs.

Chuva, sol, frio ou calor — lá estava ele.

Com seu chapéu velho, uma bengala torta e um olhar que atravessava o tempo.

Ele não falava muito.

Mas quem olhava de perto, percebia:

seus olhos estavam sempre conversando com alguma coisa que ninguém mais via.

Com as árvores, talvez.

Com o passado.

Com lembranças que já não cabem no mundo de agora.

As pessoas passavam apressadas por ele.

Algumas achavam bonito vê-lo ali, como parte da paisagem.

Outras desviavam o olhar, com culpa disfarçada de pressa.

Os jovens corriam de um compromisso para outro, fones nos ouvidos.

Alguns tiravam fotos da praça, mas não viam a praça.

Fotografavam as flores, mas não sentiam o cheiro.

Álvaro só observava.

Sabia que não era mais ouvido — mas isso não o impedia de ouvir.

Certa vez, uma menina sentou ao lado dele.

Devia ter uns dez anos, carregava um tablet maior que o caderno.

Ele olhou pra ela, sorriu com os olhos.

— Bom dia, mocinha.

Ela respondeu sem tirar os olhos da tela:

— Tô jogando.

— E o mundo? — ele perguntou, apontando para o céu, para os pássaros, para as folhas dançando com o vento.

— Já jogou com ele hoje?

A menina franziu a testa, sem entender.

Depois voltou à tela.

Álvaro não insistiu.

Mas naquele dia, ao voltar pra casa, escreveu em seu caderno de anotações —

aquele que ninguém lia, mas que ele preenchia todos os dias como se fosse um testamento do invisível:

“Hoje, tentei conversar com o futuro.

Ele estava ocupado demais.”

Na semana seguinte, ele não apareceu.

O banco ficou vazio.

Mas, estranhamente, parecia cheio de memórias.

A menina do tablet voltou.

Dessa vez, sem o tablet.

Sentou no banco, ficou ali uns minutos olhando para o céu.

Depois pegou um papel do bolso e deixou em cima do banco, dobrado como um segredo.

Quem passasse e tivesse coragem de ler, veria escrito:

“Desculpa.

Volta outro dia pra gente conversar?”

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