Talvez tenha sido quando começamos a responder “tô bem” no automático.
Ou quando os olhos deixaram de se encontrar,
porque a atenção estava sempre em outro lugar.
Talvez tenha sido quando dormir virou um ato de resistência,
e descansar virou culpa.
Sim… há uma ferida invisível crescendo entre nós.
Ela não sangra, mas pesa.
Ela não grita, mas cala tudo que importa.
As ruas continuam cheias,
mas a solidão nunca foi tão barulhenta.
Gente sentada lado a lado,
mas cada um em sua própria prisão digital,
rolando telas como se ali estivesse a salvação.
Ou ao menos o alívio.
Estamos viciados em distrações.
Em ruídos.
Em atalhos.
Como se a verdade fosse pesada demais pra carregar sem fones de ouvido.
Como se parar pra sentir fosse perigoso.
Como se o silêncio dissesse o que ninguém quer encarar.
E o mais triste é que
nos acostumamos com isso.
Com o cansaço constante.
Com os dias sem sabor.
Com a correria sem propósito.
Você já reparou?
A gente não anda mais — a gente corre.
Não conversa — responde.
Não contempla — registra.
Não vive — compartilha.
E, no meio disso tudo, os sentimentos vão ficando apertados num canto.
Sem espaço pra existir.
Sem tempo pra doer.
Sem colo.
Sem voz.
A dor virou fraqueza.
A pausa virou atraso.
A vulnerabilidade virou exposição.
E o amor?
Ah, o amor virou resposta visual de emoji.
Virou indireta.
Virou ausência disfarçada de orgulho.
Poucos têm coragem de amar com presença.
Com silêncio.
Com permanência.
Enquanto isso, seguimos fingindo controle.
Colecionando metas.
Planilhas.
Rotinas.
E fingindo que isso basta.
Que a alma não está gritando por algo mais.
Mas a alma grita, sim.
Ela grita no choro silencioso antes de dormir.
Grita na vontade de sumir por uns dias.
Grita no medo de ser esquecido.
Na sensação de estar sempre atrasado, mesmo sem saber pra quê.
A tecnologia deveria aproximar.
Mas afastou.
A produtividade deveria libertar.
Mas escravizou.
O progresso deveria curar.
Mas criou doenças novas,
dores novas,
formas novas de esvaziamento.
E, no fundo, todo mundo sabe.
Mesmo quem nega.
Mesmo quem finge.
Mesmo quem sorri.
Estamos vivendo no modo sobrevivência.
E chamando isso de vida.
Mas e se a gente parasse por um instante?
Só um.
Pra ouvir o que pulsa por baixo do ruído.
Pra sentir o que ficou guardado desde que tudo ficou rápido demais.
Será que ainda daria tempo?
De resgatar o essencial?
De reaprender a existir com leveza?
De lembrar que a vida, a real mesmo,
não é feita de produtividade —
mas de presença?
Talvez o caminho de volta não esteja em grandes revoluções.
Talvez esteja nas pequenas coisas.
No café que se toma devagar.
No pôr do sol que se observa sem pressa.
No olhar que encontra o do outro e não desvia.
Na mensagem sincera.
No toque.
Na pausa.
Porque, no fundo,
a vida nunca quis velocidade.
Ela só queria ser sentida.
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O Homem da Janela 304
Ele aparecia sempre às 18h.
Como um ritual esquecido do tempo em que os dias ainda tinham cheiro de fim de tarde.
A cortina se abria devagar,
e ali estava ele — o homem da janela 304.
Camisa amassada, olhar perdido, uma caneca nas mãos.
Parecia observar o mundo com uma melancolia silenciosa,
como quem esperava por algo que já sabia que não viria.
Ninguém sabia seu nome.
Mas todos, em algum momento, olharam pra ele.
Era impossível não notar aquele instante de pausa no prédio ao lado,
numa cidade onde tudo corre,
tudo buzina,
tudo pisca.
Ele era o contrário disso.
Era silêncio entre notificações.
As crianças da vizinhança diziam que ele era um espião.
Os adultos achavam que ele estava deprimido.
Os mais velhos, no entanto, apenas balançavam a cabeça e diziam:
— Esse aí entendeu tudo.
Ninguém sabia o que ele fazia,
mas muitos sabiam o que sentiam ao vê-lo.
Porque havia algo de triste,
e ao mesmo tempo reconfortante,
em ver alguém parado, só olhando.
Ele não segurava celular.
Não usava fones.
Não fazia lives, stories, reels.
Ele apenas… existia.
Ali, naquele pedaço de concreto elevado,
como quem observa o tempo e se pergunta por que ele anda tão apressado.
Alguns diziam que ele tinha perdido alguém.
Outros achavam que estava cansado do mundo.
Mas, se alguém prestasse bem atenção,
daria pra ver: ele sorria às vezes.
Sorrisos pequenos, discretos, quase imperceptíveis.
Como quem encontra graça num pássaro pousando no fio.
Ou num cachorro que late sem motivo.
Ou numa nuvem que lembra o rosto de alguém.
Um dia, ele não apareceu.
Às 18h, a cortina não se abriu.
E, naquele dia, a cidade pareceu mais barulhenta.
Mais vazia, paradoxalmente.
As pessoas notaram.
Mais do que queriam admitir.
Uma moça da janela em frente postou no grupo do prédio:
> “Alguém sabe do senhor da janela 304?”
Silêncio.
Depois de horas, alguém respondeu:
> “Acho que ele se mudou.”
Mas não havia caixas.
Não houve caminhão de mudança.
Só ausência.
E então, no dia seguinte, ele estava lá de novo.
Às 18h.
Com a mesma camisa amassada,
a mesma caneca,
o mesmo olhar que parecia ver mais do que os olhos alcançavam.
Mas agora, havia algo diferente.
Um bilhete colado no vidro.
Escrito à mão, simples, direto:
> “Estou aqui.
Só não queria ser o único a parar.”
Ninguém disse nada no grupo do prédio.
Mas naquela semana,
outros começaram a abrir suas janelas às 18h.
Uns com chá.
Outros com silêncio.
Alguns com lágrimas que não sabiam de onde vinham.
E pela primeira vez em muito tempo,
houve algo entre os prédios que não vinha das telas:
presença
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Atualizado até capítulo 34
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