A madrugada desceu pesada sobre o rio, envolvendo a floresta em um manto denso de silêncio. Nem mesmo os sapos ou os grilos ousavam quebrar a tensão suspensa no ar. Era como se toda a mata estivesse prendendo a respiração, consciente do que estava prestes a acontecer.
Anaí arrumou suas poucas coisas com gestos lentos e cuidadosos. Um vestido leve, um pedaço de pão de macaxeira embrulhado em folha de bananeira, a velha fita vermelha que a mãe lhe dera quando ainda era uma menina. Tudo o que possuía e tudo o que era cabia dentro de uma pequena sacola de palha trançada pelas mulheres da vila.
Antes de sair, ela olhou uma última vez para a palafita que fora seu lar. Ali aprendera a ouvir as canções do vento, a respeitar a força do rio e a conversar com as árvores em noites de lua cheia.
Seu peito apertou. Deixava para trás mais do que madeira e barro — deixava memórias, sonhos e a menina que jamais voltaria a ser.
No velho igarapé dos botos, Caetano a esperava. O pequeno barco de madeira flutuava suavemente, já livre das amarras. Ele segurava o remo com firmeza, mas era seu olhar que dizia tudo. Brilhava não apenas de alegria ao vê-la, mas de promessa. De esperança.
— Tá pronta, Anaí? — ele sussurrou, estendendo a mão para ela.
Anaí não respondeu com palavras. O calor de seus dedos entrelaçando os dele foi resposta suficiente.
Ela pisou na borda do barco, o coração pulsando descompassado, quando um estampido quebrou a serenidade da noite.
De repente, sombras saíram de entre as árvores, carregando tochas que iluminavam rostos tensos e olhos furiosos.
— Fugindo como dois ladrões, é? — a voz do pai de Anaí cortou o ar, tão afiada quanto um facão.
O mundo ao redor pareceu girar em círculos. Caetano instintivamente se colocou na frente dela, tentando protegê-la. Mas dois homens fortes o agarraram pelos braços, imobilizando-o. Ele lutou, esperneou, rugiu como uma onça acuada, mas era jovem demais, leve demais para enfrentar tantos.
— Soltem ele! — Anaí gritou, a garganta rasgando de desespero.
— Esse moleque vai aprender a respeitar! — berrou o pai, avançando com punhos cerrados.
Antes que Anaí pudesse impedir, Caetano foi atingido por um soco tão forte que caiu de costas na lama.
No meio da confusão, uma voz, cheia de rancor antigo, acusou Caetano de ter roubado mantimentos da comunidade. Uma mentira venenosa, plantada para justificar o castigo brutal que se seguiria.
Sem chance de defesa, sem sequer um olhar de misericórdia, Caetano foi amarrado e levado como um criminoso.
Anaí tentou correr atrás dele, gritando seu nome, mas mãos duras a seguraram. Seu grito ecoou pela mata, cortando a noite em duas.
— Caetano!
A resposta veio apenas no olhar dele, um olhar que misturava dor, medo e promessas que jamais se cumpririam.
Naquela madrugada, o rio não cantou.
O rio, como Anaí, apenas chorou.
E o amor que deveria ter sido livre como as grandes canoas das festas ribeirinhas foi tragado para sempre por um redemoinho de injustiça e medo
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Atualizado até capítulo 73
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