O pecado em pensamento

Na penumbra da catedral, Gabriel ajoelhou-se diante do altar, o peso do dia sobre seus ombros. As chamas das velas tremulavam ao seu redor, lançando sombras nas paredes de pedra. Ele apertou o crucifixo contra o peito, sentindo o frio do metal em sua pele quente. Sua mente repetia as orações, mas os olhos dela ainda o perseguiam.

Selene.

Ela era uma visão profana, uma tentação enviada para testá-lo. Seus olhos escuros o desnudavam, como se enxergassem além das vestes, além da fé que ele tentava desesperadamente proteger. Ele deveria odiá-la. Mas tudo o que sentia era desejo.

Respirou fundo, obrigando-se a permanecer imóvel. A catedral era seu refúgio, o único lugar onde podia lutar contra esses pensamentos impuros. Mas na escuridão de suas preces, tudo o que via era Selene dançando sob a luz do fogo, os lábios curvados em um sorriso que o atormentava.

Ele fechou os olhos com força.

— Senhor, livrai-me desse mal…

O silêncio foi sua única resposta.

Gabriel levantou-se de súbito. O peso do desejo apertava seu peito como uma corrente invisível. Precisava escapar, encontrar o ar frio da noite, afastar-se da tentação que consumia seus pensamentos.

Ao sair da catedral, o vento cortante da madrugada o envolveu, mas nem mesmo o frio conseguiu acalmar o fervor que queimava dentro dele.

Suas pernas se moveram por instinto, e quando percebeu, já estava nos limites da vila.

O acampamento cigano ainda brilhava com o reflexo das fogueiras, sombras dançando sobre as tendas de pano. Risadas ecoavam entre as árvores, e o violino lamentoso serpenteava pelo ar, como um feitiço.

Ele se escondeu na penumbra, observando.

Selene estava ali, sentada perto do fogo. A luz tremeluzia sobre sua pele morena, e os cabelos escorriam soltos pelos ombros. Conversava com um dos ciganos, um homem alto de sorriso fácil. Ele se inclinou em direção a ela, e Gabriel sentiu um aperto no peito.

Ciúme.

A percepção o atingiu como um golpe.

Ele não podia sentir isso. Não podia desejar possuí-la.

Mas ali estava ele, escondido nas sombras como um pecador, observando-a como um caçador à espreita.

Selene riu de algo que o cigano dissera. O som foi como uma lâmina em sua alma.

Antes que percebesse, seus pés avançaram.

Selene notou sua aproximação antes mesmo que ele falasse. Seus olhos pousaram sobre ele, brilhando com algo que Gabriel não conseguiu decifrar.

— Padre… — Ela sorriu, mas havia uma ponta de curiosidade em seu tom. — Você anda muito pela noite.

O cigano ao lado dela ergueu uma sobrancelha, desconfiado. Gabriel ignorou seu olhar e fixou-se apenas nela.

— Preciso falar com você.

Selene ergueu as sobrancelhas, divertida.

— E eu cometi algum pecado grave para merecer a visita de um homem santo?

Gabriel sentiu os músculos enrijecerem. Ela brincava com ele, e isso só aumentava sua frustração.

— Você deveria deixar este lugar — disse ele, a voz baixa, carregada de algo que ele não compreendia.

O cigano ao lado dela bufou.

— Padre, não somos bem-vindos aqui. Sabemos disso. Mas não vamos embora só porque um sacerdote acha que devemos.

— Não estou falando com você. — A frieza na voz de Gabriel surpreendeu até a si mesmo.

Selene inclinou a cabeça, observando-o como se tentasse decifrar seu verdadeiro propósito. Então, com um suspiro leve, ergueu-se, batendo a poeira da saia.

— Muito bem, padre. Vamos conversar.

Ela caminhou para longe do fogo, e Gabriel a seguiu. O coração batia forte em seu peito, como um tambor de guerra.

Assim que se afastaram o suficiente, Selene se virou para ele.

— O que quer de mim, Gabriel?

O som do próprio nome saindo dos lábios dela fez seu estômago revirar.

— Quero que fique longe de mim. — As palavras saíram duras, mas sua voz tremia levemente.

Selene deu um passo à frente, reduzindo o espaço entre eles.

— Então por que continua vindo atrás de mim?

Ele ficou sem resposta.

Ela ergueu a mão devagar, os dedos roçando de leve o tecido de sua túnica. O toque foi breve, mas suficiente para fazê-lo prender a respiração.

— Você pode me chamar de herege, pode me ver como um pecado, mas sabe que isso não muda o que sente.

Gabriel segurou o pulso dela antes que pudesse afastar a mão, seus dedos apertando sua pele quente.

— Não diga essas coisas…

Selene sorriu, inclinando-se ligeiramente para ele.

— Diga-me então, padre… Quer que eu vá embora ou quer que eu fique?

Gabriel sentia o coração martelando no peito. Ele deveria soltá-la. Deveria se afastar. Mas sua mão ainda segurava a dela, e sua respiração estava entrecortada.

Ele sabia a resposta. Mas não ousava dizê-la em voz alta.

Gabriel afastou-se dela com um movimento brusco, como se estivesse se afastando de um fogo ardente. O calor de sua pele ainda queimava a sua mão, e ele podia sentir a presença de Selene como uma sombra, mesmo com a distância entre eles. O desejo e o medo se entrelaçavam dentro de seu peito, tornando a respiração difícil, pesada.

— Você não entende, Selene — disse ele, a voz tensa. — Tudo o que você representa é pecado. Sua existência é uma tentação que desafia minha fé. Eu sou um homem de Deus, e você… você é a perdição.

Ela riu suavemente, sem desprezo, apenas uma melancolia silenciosa em seu sorriso. Era como se já soubesse tudo o que ele queria dizer, mas ainda assim estivesse disposta a ouvi-lo.

— Então, por que me procura? — perguntou ela, seus olhos penetrantes buscando as respostas que ele não queria dar. — O que me quer, Gabriel?

Ele fechou os olhos por um instante, tentando afastar os pensamentos que começavam a invadir sua mente, pensamentos que o envergonhavam. O que ela queria dele era simples, e ainda assim, ele se recusava a admitir. Ela queria a sua alma, não apenas seu corpo. Sabia disso. Sabia que ele já havia se perdido no jogo silencioso entre eles, no jogo em que ele tentava resistir, mas ela o atraía de maneira irresistível. Ele queria protegê-la, mas ao mesmo tempo, desejava sua companhia, sua presença.

— Eu… — As palavras estavam presas em sua garganta. O ar parecia rarefeito, e tudo ao seu redor começou a girar. — Eu quero que vá embora, que se afaste desta vila, deste lugar. O que você faz aqui é errado, e você é uma ameaça.

Selene se aproximou dele, o sorriso agora suavizando, como se ela estivesse tocando algo muito profundo dentro dele, algo que ele não podia controlar. Seus passos eram suaves, quase etéreos, e ela parecia deslizar sobre a terra, uma criatura dos ventos. Ela parou a poucos centímetros dele, tão perto que Gabriel podia sentir o calor de seu corpo.

— Você não pode me mandar embora, Gabriel. Não tem esse poder. Nem você, nem o Deus que você diz servir. — A voz dela era baixa, mas sua intensidade era inegável. — Você não entende, não entende nada do que está acontecendo entre nós. E talvez, se você se permitisse sentir, saberia o que eu sei.

Ele queria recuar, queria colocar distância entre eles, mas suas pernas estavam imóveis. A força dela, não física, mas algo mais profundo, estava prendendo-o no lugar.

— Não sou como os outros. Não sou uma cigana que vem para enganar os homens. Não sou um demônio, padre. — Ela colocou a mão sobre o peito dele, onde seu coração batia forte, e Gabriel quase não conseguiu respirar. — Eu sei o que você sente, e você sabe o que eu sinto. O que você tem medo de perder, Gabriel, não é só a sua honra. Você tem medo de perder a sua humanidade.

Ele sentiu o toque dela como se fosse fogo, e foi tudo o que ele conseguiu fazer para não ceder ao impulso de afastá-la. Não podia tocá-la. Não podia ceder.

— Isso é um pecado. — Ele respirou fundo, tentando recuperar o controle de si mesmo, de sua própria mente. — Você não pode fazer isso comigo.

Selene observou-o por um momento, e seus olhos brilharam com um mistério profundo, como se ela soubesse o que ele estava prestes a fazer, mas ainda assim esperasse por ele. Ela deu um passo atrás, lentamente, e a distância entre eles, que antes parecia insuportável, agora parecia um abismo.

— Se você acha que me afastando vai salvar sua alma, está enganado. — A voz dela estava mais suave, quase como um sussurro. — Mas não se preocupe, padre. Não vou mais forçar você a me procurar. Vou embora, por enquanto. Mas saiba, Gabriel… O que está em seu coração, você não pode apagar. Nem mesmo com as orações mais fervorosas.

Ela se virou, caminhando lentamente de volta ao fogo, deixando Gabriel ali, sem palavras, sem ação. A silhueta dela desapareceu nas sombras, e ele ficou ali, paralisado, tentando entender o que acabara de acontecer.

Por um longo momento, ele não se moveu. O ar parecia denso, e o peso de seus próprios sentimentos parecia esmagá-lo. Selene estava certa, e isso era o pior de tudo. Ele já não sabia mais se estava tentando afastá-la para protegê-la ou para se proteger. Sua alma estava dividida, e ele não sabia como seguir em frente.

Finalmente, com um suspiro pesado, Gabriel virou-se e caminhou de volta à catedral. Mas a cada passo, a lembrança dela o assombrava, e ele sabia que sua vida, sua missão e sua fé jamais seriam os mesmos.

Ele estava perdido.

E, no entanto, sabia que a única maneira de se encontrar novamente seria encontrando-a mais uma vez.

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