Os Olhos da Herege

Os Olhos da Herege

O primeiro olhar

O sino da catedral soava pela cidade, chamando os fiéis à oração. O padre Gabriel ajustou o capuz de sua túnica, tentando afastar o frio da manhã. O aroma de pão recém-assado e fumo enchia as ruas de pedra da vila. Ele deveria estar focado em sua missão – a Igreja o havia enviado para cuidar das almas, não para se perder nos pecados do mundo. Mas naquela manhã, algo desviou seu olhar.

Perto da praça, junto à fonte, um grupo de ciganos havia se instalado. Mulheres de saias coloridas riam enquanto penduravam tecidos bordados, e homens de olhos astutos tocavam violinos com melodias que pareciam carregadas pelo próprio vento. Gabriel sabia que sua presença não era bem-vinda – a vila já murmurava sobre feitiçarias e enganações. Foi então que ele a viu.

Ela estava de pé sobre uma pedra, os cabelos negros escorrendo pelos ombros, olhos escuros faiscando sob o sol pálido. Uma cigana, sem dúvida. A pele morena contrastava com o véu vermelho que cobria parte de seu rosto, mas não escondia o olhar que o encontrou no meio da multidão. Gabriel sentiu o coração bater forte contra o peito. Nunca antes uma mulher lhe causara tal perturbação.

A cigana inclinou a cabeça, os lábios desenhando um sorriso misterioso.

— Bom dia, padre. — A voz dela soou como um feitiço, uma brisa morna em meio ao frio da manhã.

Ele engoliu em seco, sentindo o peso do crucifixo sob suas vestes.

— Você sabe quem eu sou? — Sua voz saiu mais dura do que pretendia.

Ela desceu da pedra com a graça de uma dançarina e deu um passo à frente, a poucos metros dele.

— Todos sabem. O novo padre da catedral. Aquele que veio para nos salvar dos nossos pecados. — O tom dela era provocador, mas havia algo mais. Uma tristeza oculta sob a bravata.

— E qual é o seu nome? — Ele não deveria perguntar. Não deveria sequer falar com ela. Mas a pergunta escapou antes que pudesse se conter.

A cigana sorriu de lado, os olhos cintilando como brasas.

— Selene.

Gabriel sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A forma como ela pronunciou o próprio nome pareceu gravá-lo em sua mente.

— Devia se afastar, padre. — Selene inclinou-se ligeiramente para ele, a voz num sussurro que só ele pôde ouvir. — Dizem que os olhos de uma herege podem condenar até os homens santos.

Ela então girou nos calcanhares e desapareceu na multidão, deixando para trás apenas o rastro de seu perfume doce.

Gabriel permaneceu imóvel, o coração ainda descompassado. O que acabara de acontecer?

Ele apertou os punhos, tentando recuperar o controle de sua respiração. Mas era tarde demais. Os olhos dela já estavam cravados nele.

Naquela noite, Gabriel tentou se concentrar nas escrituras, mas cada frase que lia parecia perder o sentido. O nome dela ecoava em sua mente como um cântico proibido. Seu corpo estava tenso, como se travasse uma batalha invisível.

Levantou-se abruptamente, cruzando a catedral vazia até o altar. A luz das velas tremulava, lançando sombras nas paredes de pedra. Ele se ajoelhou diante do crucifixo, as mãos apertadas em oração.

— Senhor, afasta de mim esse desejo.

Mas o silêncio foi sua única resposta.

Ele passou a mão pelo rosto, sentindo a pele quente. Precisava respirar, sair dali, encontrar algo que o trouxesse de volta à razão. Mas, no fundo, sabia para onde seus pés o levariam.

Quando percebeu, já estava do lado de fora, envolto na escuridão de seu capuz. As ruas estavam silenciosas, mas no limite da vila, o brilho das fogueiras ainda iluminava o acampamento cigano.

Ele não deveria estar ali. Cada passo era um erro, uma violação de tudo o que acreditava. Mas não conseguia parar.

A música era suave, um lamento de violino que parecia se misturar ao vento. Então, ele a viu novamente.

Selene dançava ao redor da fogueira, os pés descalços deslizando sobre a terra, a saia rodopiando como labaredas vivas. Seus braços erguiam-se ao céu, os olhos fechados, perdida no ritmo da melodia.

Gabriel sentiu um nó na garganta. Nunca vira algo tão belo... nem tão profano.

A chama iluminava sua pele dourada, realçando cada curva, cada movimento. Ela parecia uma visão, um ser que não pertencia a este mundo.

Então, como se sentisse sua presença, Selene abriu os olhos. O sorriso que surgiu em seus lábios foi lento, como se ela já esperasse por ele.

— Padre... — Sua voz era quase um sussurro, mas carregava a força de um feitiço.

Gabriel soube, naquele instante, que estava perdido.

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