Amanhecer

A tempestade continuava a rugir lá fora, como se o céu estivesse brigando consigo mesmo, e cada trovão parecia vibrar dentro das paredes frágeis da cabana. Eu quase podia jurar que a cada relâmpago, a marca no meu braço brilhava por um segundo, pulsando junto ao fogo.

Não fazia sentido.

Nada disso fazia sentido.

Ele estava aqui. Um lobo gigantesco, mais criatura mítica do que animal, caído no chão da minha cabana como se o destino tivesse decidido me jogar mais um peso que eu não pedi.

E a marca...

A marca queimava como brasa sob a pele.

Passei os dedos por cima dela, tentando aliviar o ardor inútil. Era quase como se reagisse a ele. A presença dele. Mas por quê?

Ele não disse nada. Nenhum som além da respiração pesada e lenta, o peito subindo e descendo como se lutasse para não apagar de vez.

"Talvez seja só medo", pensei, tentando me convencer. "Ou o frio."

Mas não era.

Era ele.

Era *sobre* ele.

Ainda assim, eu não sabia quem era. Não fazia ideia de que nome carregava, ou se vinha de alguma alcateia, ou se tinha matado alguém no caminho até aqui. Eu não sabia que minha mãe talvez soubesse quem ele era, ou que em algum canto do passado deles houvesse histórias sangrentas, segredos e nomes que deveriam significar algo pra mim.

Mas pra mim... nada.

Só um lobo ferido na minha cabana e uma marca que queimava sem motivo.

Suspirei, ajeitando mais lenha no fogo, porque a madrugada prometia ser longa, e porque ele parecia precisar do calor. Eu também.

— Não planejei nada disso, viu? — falei em voz baixa, como se ele pudesse responder, mesmo inconsciente. — Juro que prefiro quando minha vida se resume a fugir da fome e cuidar das minhas plantinhas.

Os olhos dele se abriram.

Dourados. Brilhantes como lâminas sob o sol.

Eu congelei com o pano ainda na mão, a respiração travando na garganta. Ele não se mexeu. Não rosnou. Não atacou. Só... olhou.

Olhou como se pudesse me despir inteira, atravessar a pele, os ossos, e enxergar as coisas que nem eu mesma gosto de ver.

— Relaxa... — sussurrei, engolindo em seco. — Não vou roubar seu casaco, prometo.

"Embora, sinceramente... faria de tudo por um casaco de pelos desse", pensei, mordo a língua para não soltar a piada em voz alta.

A tensão entre nós era densa, pesada como a neblina fria que escorria pelas frestas da porta.

Ele piscou devagar, e eu não sabia se aquilo era um sinal de que confiava em mim... ou se só estava cansado demais para morder minha cara.

Voltei a limpar a última ferida, sentindo os músculos dele se contraírem sob o toque, tensos, prontos para reagir. Mas não reagiu.

Era como cuidar de uma fera selvagem prestes a decidir se deixava você viver ou não.

E, por alguma razão que eu não podia explicar, não sentia medo.

Cansaço, sim. Alívio estranho por não estar sozinha na tempestade, talvez. Mas medo... não.

Quando terminei, ajeitei os cobertores ao redor dele e voltei para meu canto, a poucos passos da fogueira, observando.

Ele também não dormiu.

Ficamos ali, os dois, calados.

Ele vigiando. Eu vigiando.

Como se fosse um acordo silencioso.

Talvez, no fundo, ambos soubéssemos que naquela noite chuvosa, com o cheiro de terra molhada e sangue no ar, alguma coisa havia mudado.

Só não sabia o quê.

Ainda.

***

O fogo já tinha baixado quando acordei.

O cheiro da lenha quase apagada e da terra molhada ainda dominava a cabana. Por um segundo, demorei a entender onde estava. Pisquei devagar, sentindo a ardência habitual da marca no braço, um formigamento incômodo que me fez apertar os dedos ao redor dela.

Só então me dei conta.

Eu dormi.

Eu *dormi*.

Na mesma noite em que um lobo gigantesco, selvagem e desconhecido apareceu sangrando na porta da minha casa, eu simplesmente... adormeci.

Que tipo de loucura era essa?

O silêncio era absoluto.

Só o som da chuva fina pingando no telhado, agora reduzida a pequenos estalos espaçados. O amanhecer forçava um tom cinza e frio pela única janela, e quando virei o rosto devagar, lá estava ele.

Ainda ali.

Deitado exatamente onde o deixei, sobre as mantas improvisadas no chão, perto da lareira que quase se apagou durante a madrugada.

Respirava.

Pouco, mas respirava.

Eu fiquei observando em silêncio.

Não sabia por quanto tempo, só... fiquei. Assistindo ao subir e descer lento do tórax enorme dele. A pelagem bagunçada, suja de sangue seco. O corte na garganta estava mais fechado, as ataduras firmes, mas a marca dele... aquelas cicatrizes em volta, os arranhões, tudo parecia ter sido deixado por outra criatura tão grande quanto.

E, de novo, aquela sensação estranha queimando em mim.

A marca no braço latejou, como se reagisse ao simples fato de eu estar olhando pra ele.

— Quem diabos é você? — perguntei baixinho, sabendo que ele não responderia.

Ou será que responderia?

Me levantei com cuidado, o corpo dolorido da posição ruim em que adormeci, e fui até a janela. Não havia sinais de pegadas além das dele, o que indicava que, se foi atacado, conseguiu despistar os outros antes de cair aqui.

Ou talvez...

Talvez tenha vindo direto.

Para *mim*.

Engoli em seco com esse pensamento absurdo.

— Paranoia... só paranoia — sussurrei pra mim mesma.

Quando voltei pra perto dele, peguei o balde de água fresca que sempre deixo ao lado da porta e um pano limpo. Limpei com calma o rosto dele, desviando o olhar quando percebi que os olhos dourados estavam abertos de novo.

Apenas me assistindo.

Sem um som.

Sem um gesto.

Só... me observando, como se cada movimento meu fosse ser julgado.

Eu estava tão acostumada ao silêncio da floresta, ao isolamento forçado, que a presença dele parecia engolir todo o espaço.

Mesmo sem falar.

Mesmo sem se mexer.

— Preciso trocar as ataduras antes que infeccione. Vai deixar? — questionei, sem esperar uma resposta real, mas na esperança de não levar uma mordida como pagamento.

Os olhos dele piscaram devagar outra vez.

Interpretei como um "sim".

Ou um "não me importo".

Ou talvez um "tente e descubra".

Aproximei-me, cuidadosa, sentindo o cheiro forte de mato, chuva e sangue vindo dele. Fiz meu trabalho em silêncio, e, por mais estranho que fosse admitir, não me senti tão sozinha naquela manhã fria.

Depois de tudo, ele estava ali.

E eu ainda respirava.

A marca ainda queimava.

Vou atrás de água morna e depois volto novamente para a sala.

Me ajoelho ao lado dele de novo, sentindo as juntas estalarem discretamente. A água morna no pano escorre entre meus dedos enquanto torço com calma, e antes de encostar na pele dele, levanto o olhar, encontrando aqueles olhos dourados e atentos, ainda me estudando como se eu fosse uma ameaça pior do que a própria morte.

O peito sobe e desce devagar, pesado.

Ele podia me partir ao meio com uma patada, se quisesse.

— Se me morder, te faço de casaco — murmuro, com a voz baixa, quase rouca, passando o pano limpo na lateral do pescoço dele, onde o corte foi mais fundo, somente pra limpar as impurezas.

Os olhos estreitam um pouco.

Será que entendeu?

Não importa.

A verdade é que estou tremendo por dentro. Não é medo... exatamente. É outra coisa. Um tipo estranho de ansiedade que queima sob a pele, junto com a marca no meu braço que voltou a arder como brasa.

Limpo o sangue seco, troco a atadura com cuidado, tentando ignorar o fato de que nunca toquei em nada tão grande, tão quente e... vivo.

A tensão não some.

Ela só cresce, espessa como a névoa que se forma do lado de fora com o fim da tempestade.

Ele não desvia o olhar.

Nem eu.

O silêncio entre nós é tão afiado que corta.

— Pronto — aviso, mesmo sabendo que ele não precisa de nenhum aviso. Retiro as mãos devagar, como se afastar fosse o ato mais sensato que eu poderia ter.

Mas não me afasto.

Fico ali, observando a respiração dele, conferindo se não vai desmaiar de novo ou simplesmente decidir que estou perto demais.

— Não faço ideia de quem você é... — confesso em voz baixa, puxando a manta para cobri-lo mais um pouco. — Mas se veio até aqui, azar o seu. Não tenho muita coisa além de chá ruim e uma cama pequena demais pra você.

Penso em rir da própria piada, mas engulo.

Não parece o momento.

Além disso, não sei por que estou falando tanto.

Talvez porque, pela primeira vez em anos, tenha alguém pra ouvir.

Mesmo que seja um lobo prestes a morrer ou me arrancar a garganta.

Volto a sentar perto da lareira e atiço as brasas com a ponta da vara, trazendo de volta um pouco de calor pro ambiente. E então fico ali, no amanhecer pálido, com a marca queimando, a pele arrepiada e a sensação incômoda de que...

Isso está só começando

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Comments

Marfisa Torres Ferreira

Marfisa Torres Ferreira

essa história é muito boa,

2025-03-12

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