Sombras de Londres

Sombras de Londres

O Preto que Liberta

O espelho à minha frente refletia um rosto que não parecia mais o meu. Os olhos verdes estavam lá, as sardas também. Mas os fios dourados que sempre foram minha marca — e que tantas vezes fizeram minha mãe sorrir e dizer que eu parecia um raio de sol — haviam desaparecido. Em seu lugar, uma cascata de cabelos negros escorria até meus ombros, ainda úmida da tinta.

Toquei os fios com hesitação, sentindo o peso da decisão que tomara. Não era só uma mudança de cor; era uma ruptura. Um grito silencioso contra tudo o que esperavam de mim.

Desde pequena, ensinaram-me que uma mulher devia ser delicada, graciosa, sempre gentil. Devia sorrir, abaixar a cabeça, esperar ser escolhida. Eu nunca consegui me encaixar nessa moldura dourada que pintavam ao meu redor. Sempre fiz perguntas demais, sempre quis mais do que os limites invisíveis me permitiam.

E agora, aqui estava eu, de cabelo preto, desafiando o reflexo.

— Hellie? — A voz de minha mãe soou hesitante do outro lado da porta.

Segurei o fôlego por um instante antes de responder.

— Sim, mamãe?

A porta se abriu devagar, e minha mãe entrou no quarto. O choque em seu rosto foi imediato. Seus olhos percorreram meu cabelo como se estivesse vendo um desastre acontecer bem diante dela.

— O que você fez? — sussurrou, levando a mão à boca.

— Eu pintei — respondi, tentando parecer firme, mas sentindo o coração acelerar.

O silêncio que se seguiu foi insuportável. Ela não gritou, não chorou — o que talvez fosse ainda pior. Apenas me olhou com uma mistura de incredulidade e tristeza.

— Por quê? — Sua voz saiu fraca, quase suplicante.

Eu poderia ter dito tantas coisas. Que queria ser vista como algo além de uma boneca bonita, que estava cansada de viver dentro de uma moldura dourada que não escolhi. Mas tudo o que consegui dizer foi:

— Porque eu precisava.

Ela não respondeu. Apenas virou-se e saiu do quarto, deixando para trás um silêncio ainda mais pesado.

Sentei-me na beira da cama, o coração apertado. Eu sabia que havia magoado minha mãe. Mas, ao mesmo tempo, senti algo novo dentro de mim. Uma centelha de liberdade.

E eu sabia que aquele era apenas o começo.

Fiquei sentada na beira da cama por um longo tempo, observando as mechas escuras caídas sobre meus ombros. O silêncio da casa pesava ao meu redor, como se cada parede estivesse absorvendo a reação contida da minha mãe.

O cheiro forte da tinta ainda pairava no ar, misturando-se ao perfume suave de lavanda que sempre impregnava meus lençóis. Meus dedos percorreram os fios negros, tentando me acostumar com a nova sensação. Era estranho. Era diferente. Mas era eu.

Respirei fundo e me levantei, caminhando até a janela. Londres lá fora era uma massa nebulosa de prédios altos e ruas molhadas pela garoa. O céu, pesado e cinzento, parecia combinar com meu novo eu. Sempre gostei da cidade assim, coberta de névoa, como se escondesse segredos nas esquinas. Como se houvesse algo mais além do que nos permitiam enxergar.

Olhando para baixo, vi as carruagens passando, os cavalheiros apressados sob suas cartolas e as damas elegantemente vestidas, segurando suas sombrinhas enquanto caminhavam nas calçadas de paralelepípedos. Será que alguém ali embaixo já havia feito algo tão impensável quanto eu?

Minha atenção foi desviada quando um movimento no jardim capturou meu olhar.

Owen.

Ele estava encostado no portão de ferro, com as mãos nos bolsos do casaco escuro, a expressão atenta enquanto observava a casa. Meu coração deu um pequeno salto involuntário. Fazia dias que não nos falávamos direito, e agora ele estava ali, como se soubesse que algo havia mudado.

Apertei os lábios e desci as escadas rapidamente, ignorando a sensação incômoda de que minha mãe ainda estava em algum canto da casa, desapontada. Abri a porta com cautela, e o vento frio da tarde soprou contra meu rosto.

— Veio me espiar? — perguntei, cruzando os braços.

Owen ergueu uma sobrancelha e esboçou um meio sorriso.

— Achei que talvez tivesse ocorrido uma tragédia. Sua mãe me viu passando e olhou para mim como se o mundo estivesse acabando.

Suspirei e me encostei ao batente da porta.

— Para ela, talvez esteja.

Ele inclinou a cabeça, me analisando por um momento.

— Eu sabia que você faria algo assim um dia — disse, dando um passo mais perto. — Mas preto, Hellie? Isso é quase um ultraje para os padrões londrinos.

— Exatamente. — Sorri de canto, sentindo um misto de nervosismo e orgulho. — Queria ver até onde vai o choque das pessoas.

Ele soltou um riso baixo e balançou a cabeça.

— Você sempre gostou de desafiar o que esperam de você.

Owen me conhecia melhor do que eu gostaria de admitir. Sempre foi assim, desde crianças, quando ele me ajudava a fugir das aulas entediantes de etiqueta para corrermos pelo jardim dos fundos. Mas agora éramos diferentes. Crescemos. E Londres não era mais um parque de diversões.

Cruzei os braços e olhei para ele.

— E você? Vai me dizer que está do meu lado ou que isso é um erro terrível?

Ele hesitou, e por um instante vi a luta interna em seus olhos cor de mel.

— Eu... acho que você tem coragem — disse, com cuidado. — Mas também acho que o mundo não é tão generoso com quem quer ser diferente.

Aquele aperto no peito voltou. Eu sabia que ele não podia me apoiar completamente. Sabia que ele carregava o peso das expectativas da própria família. Mas, ainda assim, parte de mim queria ouvir outra coisa.

— Nunca foi generoso comigo, de qualquer forma — murmurei.

Owen suspirou, como se quisesse dizer algo mais, mas desistisse no último momento.

Ficamos ali em silêncio, lado a lado na entrada da casa, observando Londres seguir seu curso.

Eu sabia que tinha feito algo grande. Que tinha começado algo que não podia mais voltar atrás. Mas a pergunta era: estaria realmente pronta para o que viria depois?

O vento soprou mais forte, e eu me abracei instintivamente, sentindo o frio atravessar o tecido fino do meu vestido. Owen percebeu e, sem pensar muito, tirou o cachecol que usava e o estendeu para mim.

— Aqui. — Sua voz saiu casual, mas seu olhar carregava aquela familiaridade de quem me conhecia bem demais.

Hesitei por um instante antes de aceitar. O tecido ainda estava quente do contato com sua pele, e o cheiro sutil de madeira e tabaco se misturou ao ar frio. Era um gesto pequeno, mas que me atingiu de uma forma inesperada.

— Obrigada. — Enrolei o cachecol ao redor do pescoço, sentindo-me um pouco mais protegida, mas também estranhamente exposta.

Owen se encostou ao portão e cruzou os braços, observando-me com uma expressão divertida.

— Você realmente não sente medo, sente?

Minha risada foi curta e sem humor.

— Sinto, sim. Mas eu aprendi que sentir medo e ceder a ele são coisas bem diferentes.

Ele balançou a cabeça, como se não soubesse se admirava ou temia minha resposta.

— E o que vem agora, Hellie? Você já desafiou sua mãe. Qual é o próximo passo da sua rebelião?

Cruzei os braços, olhando para a rua, onde a vida londrina seguia seu curso.

— Não sei. Mas não posso mais continuar sendo a menina perfeita que todos esperam. Há um mundo inteiro lá fora e... eu me sinto presa. Como se estivesse sempre esperando que algo acontecesse, mas nada nunca acontece.

Owen ficou em silêncio por um tempo, apenas observando-me. Quando finalmente falou, sua voz saiu mais baixa, quase hesitante.

— Talvez você esteja esperando a coisa errada.

Virei-me para ele, confusa, mas antes que eu pudesse perguntar o que queria dizer, a voz de minha mãe ecoou da porta da casa.

— Hellie, venha para dentro. Agora.

Engoli em seco e olhei para Owen, que soltou um suspiro, como se já soubesse que nossa conversa tinha terminado.

— Boa sorte — murmurou ele, afastando-se devagar.

Observei enquanto ele caminhava rua abaixo, misturando-se às sombras que cresciam conforme a tarde avançava. Então, virei-me e entrei em casa, fechando a porta atrás de mim.

Minha mãe estava parada no meio do hall, os braços cruzados e o rosto impassível, mas seus olhos diziam tudo.

— Precisamos conversar — disse ela.

E eu soube, naquele instante, que essa conversa não seria fácil.

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Comments

Bruna Cardoso

Bruna Cardoso

FIQUEI sem palavras....
que escrita maravilhosa 😍!
cara, os detalhes, tudo ficou muito perfeito!
sua história é cativante e chama a atenção do público, amei sua história e logo quando tiver tempo terminarei de ler ela todinha!
mas sabe como é a vida de um estudante no ensino médio... muito trabalho, pouco tempo.... logo que eu acabar todos meus afazeres, vou ler mais! uma boa sorte viu? amei seu livro e sua história 😊

2025-03-25

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