Com a cabeça cheia de pensamentos, caminhei pelas ruas de Martins do Sul, tentando encontrar algum alívio para o turbilhão de sentimentos que eu não conseguia processar. Sabia que em casa seria um caos: a chegada da Casa Morales estava deixando todos pavorosos. Minhas irmãs já estavam imersas nas expectativas de encontros e apresentações, enquanto minha mãe supervisionava cada movimento. Mas eu precisava de um tempo para mim mesma, longe dos olhares ansiosos e das expectativas de todos.
A cidade estava diferente, com suas ruas mais movimentadas do que o normal. Quando passei pela praça principal, consegui ouvir alguns comentários sobre a visita dos Morales. Fui absorvida pelos murmúrios que flutuavam pelo ar
— Você viu? Eles estão aqui, em Martins do Sul! A Casa Morales, na nossa cidade! Que oportunidade, não é?
— Eles dizem que o herdeiro está à procura de uma esposa. Não posso acreditar que estamos tão perto disso...
As vozes se misturavam e formavam uma verdadeira cacofonia, como se todos na cidade esperassem que algo grandioso acontecesse a qualquer momento. As pessoas falavam com uma empolgação contagiante, mas para mim, era só mais uma realidade que se passava à minha volta, distante e sem emoção. Não conseguia me envolver com aquilo. Para mim, era só mais uma das muitas histórias que a cidade contava para alimentar seus próprios sonhos.
Deixei os murmúrios para trás e segui em direção ao meu lugar favorito na cidade: a Rua Cipreste. Era um local tranquilo, onde o tempo parecia desacelerar. A rua tinha muros de pedras antigas que pareciam contar histórias passadas de geração em geração. Sempre me sentia em paz ali. O cheiro das árvores, a brisa suave que balançava as folhas, e o som do Rio que corria sereno ao longe me faziam esquecer por um momento tudo o que acontecia ao meu redor. Era como se, naquele pequeno pedaço de mundo, eu fosse a única pessoa que existisse.
Sentei-me em um dos banquinhos de madeira, encostada ao muro. O som do rio me trazia uma sensação de calma, de algo que fluía sem pressa, sem preocupação com o que estava por vir. E foi ali, naquele banco que já havia se tornado meu refúgio, que as palavras começaram a surgir, sem aviso.
Tirei um pedaço de papel e uma caneta da minha mochila, sem realmente saber o que escrever. A mente estava turva, mas as palavras começaram a fluir. Eu não tinha uma direção, apenas o impulso de colocar para fora o que eu sentia, mesmo que fosse difícil entender o que exatamente estava me consumindo. Escrevi
"Sinto-me como uma flor que não pertence a este campo. Olho para o mundo ao meu redor e vejo as outras flores se abrindo, cada uma com seu propósito, com seu brilho. Mas eu... eu estou aqui, esperando por algo que não sei o que é. Um vazio profundo me preenche, e tudo o que faço é olhar para as sombras que se estendem ao meu redor, tentando encontrar alguma luz que me guie.
O que será de mim? Onde está o meu lugar no mundo? Sinto como se tivesse sido esquecida, como se minha presença aqui fosse apenas uma coincidência, um acaso no grande esquema da vida. Meu nome não importa, minhas escolhas não importam. Eu sou apenas mais uma sombra, uma figura perdida.
Eu queria ser como as outras flores, com um destino claro e brilhante à frente, mas tudo o que tenho é um campo vasto, sem caminhos definidos.
Com carinho,
Lírio"
Quando terminei de escrever, olhei para o papel com uma sensação de leve alívio. A carta não era para ninguém, mas ao mesmo tempo, eu sentia que estava me comunicando com algo maior. Lírio era o nome que eu escolhi, inspirado na minha flor favorita. Ela representava a pureza, a delicadeza que eu tanto desejava, mas que sentia que faltava em minha vida. Fiquei observando a carta por um momento, sentindo um calor no peito, como se o peso de todas as minhas perguntas, dúvidas e inseguranças tivessem sido finalmente expressos em palavras.
Olhei ao redor, e foi então que notei a pequena fresta no muro de pedra. Aquela abertura, que até então nunca havia me chamado a atenção, parecia perfeita para esconder minha carta. Sem pensar muito, me levantei e caminhei até a fresta, colocando a carta entre as pedras com um movimento cuidadoso. Não sabia o que aconteceria com ela. Talvez ninguém a encontrasse, ou talvez alguém se deparasse com as palavras de uma alma perdida e se sentisse tocado de alguma forma. Não importava. O importante era que eu a havia escrito, e naquele momento, isso era suficiente para mim.
Fiquei ali por um tempo, observando o Rio e pensando nas palavras que acabei de deixar para trás. Eu estava em paz agora, mais leve do que antes. A cidade continuava sua vida, e a Casa Morales seguia seu caminho, mas para mim, ali, naquele momento, havia algo muito mais profundo acontecendo. Eu havia me conectado comigo mesma de uma maneira que nunca tinha feito antes.
O vento começava a soprar mais forte, e as folhas das árvores dançavam ao ritmo da natureza. Eu ainda me sentia perdida, mas agora sabia que, mesmo nas minhas incertezas, eu tinha a capacidade de encontrar algo dentro de mim. A carta, embora simples, representava a busca por algo maior. Algo que eu ainda não compreendia completamente, mas que sabia que precisava encontrar.
De repente, o som dos passos no caminho de pedras me trouxe de volta ao presente. Olhei para trás e vi uma figura se aproximando. Era uma das professoras da escola, a Senhora Cardoso, que sempre caminhava pela rua nas tardes quentes. Ela me olhou com um sorriso gentil e acenou com a cabeça.
— Helena, não me diga que está aqui apenas para se esconder do mundo, não é? — ela disse, com uma voz suave, mas cheia de um tipo de compreensão silenciosa.
Eu sorri de volta, embora soubesse que não poderia contar a ela sobre minha carta ou sobre o que estava sentindo naquele momento. Não havia palavras que pudessem realmente explicar.
— Não, Senhora Cardoso — respondi, com um suspiro. — Só precisava de um pouco de... espaço.
Ela assentiu, sem questionar mais. Sabia que aquele lugar, aquele banco, tinha um poder silencioso sobre as pessoas. Às vezes, todos precisavam de um pouco de distância para entender o que realmente importava.
Ela se despediu e seguiu seu caminho, e eu voltei a me sentar no banco, olhando para o rio novamente. Eu ainda estava ali, em minha busca silenciosa por algo que me completasse. Mas, de alguma forma, naquela fim de tarde de verão, a sensação de vazio parecia um pouco mais leve.
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Atualizado até capítulo 83
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