Coroa de Fogo - Sob a Dinastia
Quando passei pelo portão principal da nossa propriedade, não pude evitar a sensação de que aquela mansão era um mundo à parte, um reflexo exato do poder e das tradições da família Martins. As grades de ferro forjado, com o brasão da nossa família no centro, eram tão imponentes quanto as torres da casa que se erguiam contra o céu alaranjado do entardecer.
Minha casa, se é que eu podia chamá-la assim, era um monumento. Janelas altas, paredes de pedra clara cobertas por trepadeiras bem cuidadas, e um jardim que parecia um labirinto de flores perfeitamente alinhadas. Tudo ali exalava perfeição, e isso, às vezes, me sufocava.
Abri a porta principal e fui recebida pelo aroma familiar de madeira polida e velas perfumadas. O grande hall de entrada, com seu lustre de cristal que parecia conter estrelas, era imaculado como sempre. Minhas botas fizeram eco no mármore do piso, e antes que eu pudesse chamar por alguém, ouvi vozes vindas da sala de estar.
— Helena, querida, já chegou? — A voz da minha mãe soou, clara e carregada de autoridade.
Segui o som até a sala, onde ela estava sentada com uma postura impecável em um sofá de veludo azul. Minha mãe, Margarida Martins, era a personificação da elegância. Seu cabelo loiro estava preso em um coque perfeito, e o vestido cinza que usava parecia ter sido feito sob medida para ela. Ao seu lado, duas mulheres mais velhas estavam com blocos de notas nas mãos, e à frente delas, sentada em uma cadeira, estava minha irmã Clara.
Clara era tão diferente de Isabel e de mim que, às vezes, me perguntava se ela realmente fazia parte da família. Seus cabelos castanhos claros estavam penteados em tranças finas, e seus olhos azuis fitavam um ponto distante da sala, como se estivesse tentando fugir para um mundo só dela. Ela vestia um vestido creme, com rendas delicadas, mas o desconforto em sua postura era evidente.
— Estávamos aguardando você para o jantar, mas Clara ainda está terminando sua aula de etiqueta — explicou minha mãe, com um sorriso que não chegava aos olhos.
Eu me sentei no braço de um dos sofás, cruzando os braços.
— Aula de etiqueta de novo? Isso não é um pouco... excessivo?
Minha mãe me lançou um olhar que dizia tudo. Ela não tolerava críticas, especialmente quando se tratava da educação impecável que esperava para suas filhas.
— Clara precisa aprender. É importante que todas vocês saibam como se comportar em sociedade. Não podemos permitir erros.
— Eu já disse que não quero ser parte disso, mãe. — Clara finalmente falou, sua voz baixa, quase um sussurro. — Eu não quero ser como Isabel. Não quero ser perfeita.
As duas mulheres, que eu presumi serem professoras, trocaram olhares desconfortáveis, mas minha mãe se manteve impassível.
— Isso não é uma questão de querer, Clara. É uma questão de dever.
Eu sabia que Clara odiava tudo aquilo. Ela não tinha o espírito ambicioso de Isabel, que estava pronta para governar a cidade, nem a rebeldia inquieta que eu carregava. Clara vivia em um mundo à parte, feito de livros, histórias e sonhos que ninguém mais parecia entender.
— Posso falar com Clara? — perguntei, levantando-me e quebrando o silêncio. — Em particular.
Minha mãe hesitou, mas acabou concordando com um aceno breve.
Clara me seguiu até a biblioteca, um dos únicos lugares da casa onde ela parecia relaxada. O cômodo era amplo, com paredes cobertas de estantes repletas de livros antigos e modernos. A luz do entardecer entrava pelas grandes janelas, iluminando o carpete vermelho e os móveis de madeira escura.
Clara se sentou em uma poltrona próxima à janela e suspirou profundamente.
— Você não precisava me salvar lá — disse ela, sem me olhar. — Mamãe nunca desiste.
Eu me sentei no braço da poltrona ao lado dela e dei de ombros.
— Sei disso, mas às vezes acho que você precisa de uma pausa.
Ela finalmente me olhou, seus olhos brilhando com algo que eu não conseguia definir.
— Você acha que sou fraca, não acha?
— Claro que não! — respondi rapidamente. — Eu acho que você é diferente. E isso não é algo ruim.
Clara sorriu, um sorriso pequeno e tímido, mas genuíno.
— Eu queria ser como você, Helena. Você não se importa com as expectativas de mamãe. Você faz o que quer.
Eu ri, mas havia um toque de amargura na minha voz.
— Eu finjo que não me importo. Mas é difícil, Clara. Todo mundo espera que sigamos esses papéis definidos: Isabel como a líder, você como a mulher perfeita, e eu... eu nem sei o que esperam de mim.
Clara ficou em silêncio por um momento, olhando para os livros na estante.
— Talvez a gente não devesse seguir esses papéis. Talvez devêssemos criar nossos próprios.
Eu não sabia o que responder. Clara tinha uma visão que eu admirava, mas a realidade era mais complicada do que isso.
Quando descemos para o jantar, Isabel já estava lá, conversando com meu pai na sala de jantar formal. Isabel era o oposto de Clara. Seus cabelos eram longos e brilhantes, sua postura era impecável, e seu sorriso, embora praticado, era desafiante. Ela estava vestida com um vestido vermelho que destacava sua presença imponente.
— Finalmente — disse Isabel, levantando-se para nos cumprimentar. — Pensei que vocês duas tinham fugido.
— Bem que gostaríamos — brinquei, arrancando um olhar reprovador de minha mãe.
O jantar foi servido em pratos de porcelana fina, e a conversa girou em torno dos próximos eventos da cidade. Isabel estava entusiasmada com a possibilidade de modernizar algumas áreas, enquanto meu pai parecia relutante.
— Precisamos preservar nossas tradições — disse ele, cortando um pedaço de carne. — Não podemos simplesmente mudar tudo.
— Modernizar não significa abandonar o passado, pai — rebateu Isabel, com o tom confiante de sempre. — Significa encontrar um equilíbrio.
Clara e eu permanecemos em silêncio, observando a discussão. Quando a conversa finalmente mudou para assuntos mais leves, minha mãe voltou sua atenção para mim.
— E você, Helena? O que fez hoje?
— Nada de especial — respondi, tentando evitar o interrogatório.
Minha mãe arqueou a sobrancelha, mas não insistiu.
Quando o jantar terminou, voltei para meu quarto, sentindo-me exausta. O peso das expectativas, das tradições e dos segredos da nossa família parecia maior do que nunca.
Mas enquanto olhava pela janela, para o céu estrelado, me peguei pensando nas palavras de Clara: Talvez devêssemos criar nossos próprios papéis.
Eu não sabia como, mas sentia que algo estava para mudar. E talvez, só talvez, eu pudesse encontrar meu lugar nesse mundo que parecia tão perfeitamente montado, mas tão imperfeito por dentro.
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Atualizado até capítulo 83
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