O Espelho das Verdades

A noite já caía sobre a cidade, mas o campus universitário permanecia vivo. Estudantes passavam apressados, outros caminhavam devagar, conversando em grupos. Luzes amareladas iluminavam os jardins, criando sombras que dançavam com o vento leve. Felipe, por sua vez, permanecia sentado em um banco de concreto, longe do fluxo de pessoas. Ele gostava da solidão daquele espaço, onde podia observar o movimento sem se envolver nele.

Enquanto isso, Gabriela saía de uma reunião no auditório principal. O teatro estava ganhando forma, e ela havia assumido um papel de destaque no projeto. Era algo que sempre fazia, sem esforço aparente, mas que carregava um custo emocional que ela ainda não entendia completamente. A cada elogio, sentia-se mais pressionada a manter a perfeição. Naquela noite, no entanto, ela sentia algo diferente: uma vontade crescente de fugir da rotina, de desafiar as expectativas que os outros tinham sobre ela. E, de alguma forma, seus pensamentos voltaram para Felipe.

Gabriela caminhava distraída pelos corredores quando avistou Felipe. Ele estava com os olhos fixos no chão, os ombros levemente curvados, e parecia imerso em pensamentos. Por um momento, ela hesitou. Algo nele despertava uma curiosidade que ela não conseguia controlar. Ele era tão diferente, tão distante do mundo dela, e, no entanto, parecia carregar um peso que ela reconhecia.

— Felipe? — chamou, aproximando-se com cuidado.

Ele ergueu o olhar lentamente, como se tivesse sido arrancado de um transe. Seus olhos, normalmente frios e distantes, carregavam uma surpresa contida.

— Gabriela. Oi.

Ela se sentou ao lado dele sem pedir permissão, cruzando as pernas e colocando a mochila no chão. Felipe sentiu a tensão em seu corpo aumentar. Não estava acostumado a ter alguém tão próximo, principalmente alguém como ela.

— Você parece distante hoje — disse Gabriela, observando-o com atenção.

— Eu? Não mais do que o normal — respondeu ele, com um meio sorriso que não alcançou os olhos.

Ela inclinou a cabeça, como se tentasse decifrá-lo. Havia algo em Felipe que a desafiava, e Gabriela gostava de desafios.

— Às vezes, acho que você gosta de se esconder do mundo — continuou ela, olhando para o céu escuro. — Mas, sabe, isso não funciona por muito tempo.

Felipe riu, mas era uma risada amarga.

— E por que isso te interessa?

Gabriela deu de ombros.

— Não sei. Talvez porque eu também esteja me escondendo, mas de um jeito diferente.

Essa confissão inesperada pegou Felipe de surpresa. Ele olhou para ela, realmente olhou, como se tentasse entender o que Gabriela queria dizer. Pela primeira vez, ele percebeu que a confiança que ela exalava era, em parte, uma fachada.

— Às vezes, sinto que estou vivendo para os outros — disse Gabriela, quase em um sussurro. — Me esforço tanto para ser a melhor, para atender às expectativas, que esqueço quem eu realmente sou.

Felipe ficou em silêncio por um momento. Ele não esperava essa vulnerabilidade dela, mas, ao mesmo tempo, sentiu-se conectado de uma maneira que nunca havia sentido antes.

— Eu entendo — respondeu ele finalmente. — Mas, no meu caso, é diferente. Eu não tento agradar ninguém. Eu só... evito. Evito tudo.

Gabriela franziu a testa.

— Evita o quê?

Ele hesitou, mas decidiu que não havia mais motivos para mentir.

— Evito sentir. Evito enfrentar o que está errado comigo. Evito as pessoas porque... é mais fácil assim.

Gabriela sentiu um nó na garganta. Felipe estava se abrindo, e ela percebeu que havia mais nele do que imaginava.

— E o que está errado com você? — perguntou ela, sua voz suave.

Felipe desviou o olhar, mas não respondeu. Era uma pergunta que ele não estava pronto para encarar, pelo menos não naquela noite.

A conversa terminou, mas algo havia mudado entre eles. Ambos sentiram isso. Gabriela ficou em silêncio por alguns instantes, observando Felipe enquanto ele olhava para o horizonte. Ela queria dizer algo, mas não sabia o que. Ele, por sua vez, sentiu um alívio estranho por ter falado um pouco sobre si mesmo.

Quando finalmente se levantaram para ir embora, Felipe hesitou antes de falar:

— Obrigado por... ouvir.

Gabriela sorriu, um sorriso pequeno, mas genuíno.

— Obrigada por confiar em mim.

Eles caminharam juntos até a saída do campus, e, pela primeira vez, o silêncio entre eles não parecia desconfortável.

Naquela noite, Felipe voltou para casa sentindo-se mais leve, mas também mais vulnerável. Ele passou horas andando de um lado para o outro em seu quarto, tentando processar tudo o que havia acontecido. Gabriela o fazia questionar tudo o que ele acreditava sobre si mesmo. Ela era tão diferente, tão aberta, e, ao mesmo tempo, parecia entender algo sobre ele que ninguém mais conseguia.

Mas, enquanto pensava nela, os velhos fantasmas começaram a reaparecer. A sensação de inadequação, a voz interna que dizia que ele nunca seria suficiente, que ninguém poderia realmente aceitá-lo como ele era. Ele sabia que estava se aproximando de Gabriela, mas isso o aterrorizava.

No banheiro, ele olhou para o espelho e viu o reflexo de si mesmo: os olhos cansados, o corpo magro demais. Ele sentiu uma onda de vergonha e raiva ao mesmo tempo. A bulimia era o segredo que ele carregava como um fardo insuportável, e, naquela noite, ele se viu à beira de cair novamente no ciclo que tanto o machucava.

Enquanto isso, Gabriela estava em seu quarto, encarando o teto. Ela se sentia inquieta, como se algo estivesse mudando dentro dela. Felipe havia despertado algo que ela não sabia explicar. Ele era tão diferente de tudo o que ela conhecia, e isso a fazia questionar suas próprias escolhas, seus próprios medos.

Ela pegou o celular e começou a digitar uma mensagem para ele, mas hesitou antes de enviar. Em vez disso, fechou os olhos e tentou dormir.

Nos dias seguintes, o teatro tornou-se um ponto de encontro não oficial para Felipe e Gabriela. Eles passavam horas juntos, ensaiando, conversando e, às vezes, apenas dividindo o espaço em silêncio. O teatro, com suas cortinas pesadas e luzes suaves, tornou-se um lugar onde ambos podiam ser um pouco mais autênticos.

Os outros colegas notaram a aproximação dos dois, e os comentários começaram a surgir, mas nenhum deles se importava. Felipe ainda se sentia inseguro, mas a presença de Gabriela era, de alguma forma, confortante.

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