Justiça e Contrastes

A manhã de quarta-feira começou preguiçosa e abafada. O som insistente do despertador ecoou pelo pequeno apartamento de Felipe. Ele se remexeu na cama, tentando prolongar mais alguns minutos de sono, mas a luz que atravessava as frestas da cortina parecia determinada a tirá-lo do conforto. Com um suspiro resignado, ele se sentou na beira da cama, sentindo os músculos tensos de uma noite mal dormida.

No canto do quarto, um espelho grande refletia sua imagem. O olhar de Felipe foi inevitavelmente atraído para ele, como se um ímã o forçasse a encarar seu próprio reflexo. Vestindo apenas um moletom amassado, ele observou os detalhes que odiava: o rosto levemente inchado pela manhã, os ossos que pareciam ora salientes, ora escondidos, dependendo do ângulo. Ele desviou o olhar rapidamente, tentando silenciar a voz em sua cabeça que dizia que ele precisava ser "melhor".

Enquanto se preparava para sair, seu telefone vibrou sobre a mesa. Era uma mensagem no grupo da turma de artes cênicas:

"Pessoal, não se esqueçam que hoje tem a reunião para organizar o projeto colaborativo com Direito. Às 14h na sala 302. Não faltem!"

Felipe soltou um gemido baixo. Ele havia esquecido completamente desse projeto. Trabalhar com os alunos de Direito não era algo que o animava, principalmente porque o ambiente de artes cênicas, mesmo com suas próprias tensões, ainda era mais livre e menos formal do que o que ele imaginava de um curso tão tradicional.

"Vai ser só mais um dia para sorrir e fingir que está tudo bem," ele murmurou para si mesmo, enquanto jogava uma mochila nas costas e saía de casa.

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Na outra ponta do campus, Gabriela começava seu dia de maneira completamente diferente. Seu despertador não era uma sirene irritante, mas a programação disciplinada de sua mente. Às 6h30, ela já estava de pé, arrumada e pronta para enfrentar o dia. A mesa de estudos no canto do dormitório estava perfeitamente organizada, com livros empilhados e marcadores de texto estrategicamente posicionados.

Enquanto vestia sua camisa social branca e ajustava o coque no cabelo, Gabriela olhou rapidamente para sua colega de quarto, que ainda dormia profundamente. Ela gostava de começar o dia sem depender de ninguém, mas havia algo na convivência no dormitório que a incomodava profundamente. Talvez fosse a falta de privacidade, ou o simples fato de dividir seu espaço com alguém que não compartilhava sua visão de organização e seriedade.

Assim que chegou ao prédio de Direito, Gabriela foi informada sobre a reunião do projeto colaborativo com o curso de artes cênicas. Ela franziu o cenho, mas assentiu sem protestar. Projetos em grupo não eram seu forte, mas ela estava disposta a manter sua reputação impecável.

"É só uma questão de eficiência," ela pensou. "Faço minha parte e saio disso o mais rápido possível."

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Às 14h, os dois cursos se encontraram na sala 302, criando um contraste imediato. De um lado, os alunos de Direito chegaram pontualmente, carregando laptops e anotações, conversando em tons formais. Do outro, os estudantes de artes cênicas entraram aos poucos, alguns atrasados, carregando mochilas desorganizadas e usando roupas que refletiam personalidades vibrantes e criativas.

Felipe entrou por último, tentando passar despercebido. Ele escolheu um lugar no canto da sala, o mais distante possível da frente, onde Gabriela já estava sentada com uma postura impecável.

A professora que coordenava o projeto, uma mulher na casa dos 40 anos com óculos de armação grossa, deu início à reunião.

— Boa tarde a todos. Como vocês sabem, este é um projeto interdisciplinar que busca integrar as habilidades de argumentação dos alunos de Direito com a expressão artística dos estudantes de artes cênicas.

Ela fez uma pausa, ajustando os óculos enquanto observava os grupos dispersos.

— Vocês serão divididos em duplas, um aluno de cada curso, e terão três semanas para apresentar um trabalho que explore o tema "Justiça e Humanidade".

O murmúrio entre os estudantes começou imediatamente. Felipe revirou os olhos discretamente; ele odiava trabalhos em dupla.

Quando a professora começou a chamar os nomes, Gabriela cruzou os braços, esperando ouvir quem seria seu parceiro.

— Gabriela Almeida e Felipe Monteiro.

Gabriela ergueu as sobrancelhas, surpresa, enquanto Felipe deixou escapar um leve suspiro de frustração. "Ótimo", ele pensou, "mais uma pessoa para me julgar."

Gabriela levantou-se rapidamente e aproximou-se de Felipe, que ainda estava sentado.

— Olá, Felipe, certo? Eu sou Gabriela. Vamos nos sentar juntos para discutir o projeto?

Felipe a olhou por um momento antes de assentir. Ele puxou a cadeira ao lado dela, mas manteve uma certa distância.

— Então, como prefere trabalhar? — perguntou ela, direta.

Felipe hesitou. Gabriela parecia tão segura de si, e ele não queria parecer desorganizado ou desinteressado.

— Podemos decidir o tema juntos primeiro e... depois dividir as partes? — sugeriu ele.

Gabriela inclinou a cabeça, estudando-o. Ele parecia desconfortável, mas ela não conseguia identificar exatamente por quê.

— Certo. O que acha de começarmos com a ideia de justiça sob uma perspectiva mais humana? Talvez algo que conecte as emoções às decisões jurídicas.

— Parece bom, — respondeu Felipe, quase automático. Ele não estava acostumado a conversas tão objetivas, mas também não queria desapontá-la.

Eles passaram a próxima hora discutindo ideias, mas a dinâmica era tensa. Felipe evitava contato visual, e Gabriela, apesar de ser educada, mantinha um tom quase impessoal, como se estivesse falando com um cliente.

Quando a reunião terminou, Gabriela foi a primeira a se levantar.

— Vou preparar uma lista de referências e te envio por e-mail. Podemos nos encontrar amanhã para revisar.

— Claro, — respondeu Felipe, guardando suas coisas.

Enquanto caminhavam para fora da sala, cada um perdido em seus próprios pensamentos, algo inesperado aconteceu. Gabriela viu Felipe tropeçar levemente na escada, quase derrubando a mochila.

— Tudo bem? — perguntou ela, um tanto surpresa com o próprio reflexo de preocupação.

Felipe deu um sorriso sem graça.

— Sim, só distração.

Gabriela hesitou, mas acabou oferecendo um pequeno sorriso antes de seguir seu caminho.

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Naquela noite, Felipe voltou para seu apartamento se sentindo esgotado. Ele abriu a geladeira e encarou o conteúdo: algumas frutas, um pote de iogurte pela metade, e uma pilha de pratos não lavados na pia. Ele fechou a geladeira sem pegar nada, sentindo a familiar culpa invadir seu peito.

Já Gabriela, no dormitório, sentou-se à sua mesa e começou a organizar os materiais para o projeto. Por mais que tentasse se concentrar, sua mente voltava para a breve interação com Felipe. Algo nele parecia fora do lugar, uma mistura de melancolia e esforço em parecer bem que ela reconhecia de longe, mas preferia ignorar.

Nos dias seguintes, as reuniões entre os dois se tornaram mais frequentes. Aos poucos, as barreiras foram diminuindo, e conversas antes formais começaram a incluir pequenos momentos pessoais. Felipe descobriu que Gabriela tinha uma determinação quase inabalável, mas também uma insatisfação latente com tudo que fazia. Gabriela percebeu que Felipe era incrivelmente criativo, mas sua autocrítica parecia sempre sabotá-lo.

Sem perceberem, a parceria para o projeto começou a revelar mais do que apenas suas visões sobre justiça e humanidade.

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