Espelhos de Nos Mesmos

Espelhos de Nos Mesmos

Contrastes

A noite estava quente, típica de uma primavera que insistia em parecer verão. Felipe ajustou o colarinho de sua camisa preta, já úmida pelo calor e pelo nervosismo. Ele estava no auditório principal da universidade, esperando sua vez de subir ao palco para o ensaio geral da peça que apresentariam no fim do semestre. O teatro era sua fuga, o único lugar onde se sentia inteiro, apesar de carregar consigo o peso de um segredo: sua relação conturbada com seu corpo e o hábito destrutivo que ele sabia ser errado, mas não conseguia abandonar.

No canto oposto do campus, Gabriela empilhava papéis com uma precisão quase obsessiva. O cheiro de café amargo e o zumbido das lâmpadas fluorescentes preenchiam a sala do escritório estudantil de direito. Ela revisava pela terceira vez um discurso que deveria apresentar em um evento interdepartamental naquela mesma noite. Gabriela tinha talento para oratória e era reconhecida por sua dedicação e perfeccionismo, mas no fundo sentia-se como um quebra-cabeça mal montado, peças soltas que ninguém parecia perceber. A expectativa alheia era um peso que ela carregava com um sorriso impecável.

Enquanto Felipe ensaiava as falas de seu personagem – um jovem à procura de identidade em um mundo caótico –, Gabriela tentava ignorar a voz em sua cabeça que repetia que ela nunca seria boa o suficiente, mesmo quando todos ao seu redor diziam o contrário. Dois mundos tão diferentes, mas prestes a colidir de forma inesperada.

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No auditório, Felipe observava seus colegas ajustarem cenários e ensaiarem passos de dança. Ele adorava o processo criativo, mas era incapaz de se desligar das vozes que ecoavam em sua mente.

"Você não é tão bom quanto eles."

"Olhe para você, quem vai acreditar que alguém como você pode ser protagonista de qualquer coisa?"

Ele respirou fundo e apertou o script nas mãos, tentando se focar no momento presente. Seu colega de elenco, Jonas, cutucou seu ombro.

– Ei, Felipe, tudo bem? Tá com uma cara péssima.

Felipe forçou um sorriso. – Só tô nervoso, coisa normal.

Jonas deu de ombros e voltou para o ensaio. Felipe sabia que ninguém percebia de verdade o que se passava por trás daquele sorriso.

Do outro lado do campus, Gabriela finalmente empurrou os papéis para o lado, frustrada. O discurso estava bom, mas não bom o suficiente. Sempre faltava algo. Ela checou o horário e percebeu que tinha apenas vinte minutos para chegar ao auditório onde o evento interdepartamental seria realizado. Levantou-se apressada, pegando sua bolsa e os papéis desorganizados. Ao sair, tropeçou na mochila de um colega e quase caiu.

– Gabriela, calma! – disse André, um colega de classe.

– Estou calma – respondeu, visivelmente irritada. – Só tenho uma noite cheia pela frente.

André riu baixinho. Gabriela, porém, não tinha tempo para conversas. Saiu apressada, ignorando o nó no estômago que sempre surgia antes de eventos importantes. O nó que dizia que ela não seria suficiente, que acabaria tropeçando nas palavras ou decepcionando alguém.

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O auditório estava cheio quando Gabriela chegou, ainda tentando recuperar o fôlego. Ela entregou seu discurso ao mediador e se acomodou na cadeira reservada na primeira fileira. Ao olhar ao redor, notou a movimentação no palco e os jovens atores que corriam de um lado para o outro, ajustando luzes e ensaiando falas. Ela nunca havia prestado muita atenção no departamento de teatro; para ela, parecia algo secundário, quase irrelevante, comparado às responsabilidades que carregava.

Felipe estava no palco quando a viu entrar. Não sabia quem era, mas algo nela chamou sua atenção. Talvez fosse a postura impecável ou o olhar crítico com que observava tudo ao redor. Ele logo voltou a focar no ensaio, mas aquela figura permaneceu em sua mente. Durante uma pausa, ele desceu do palco para beber água, sem perceber que Gabriela também havia se levantado para organizar algumas anotações no corredor lateral.

Foi um encontro acidental. Literalmente.

– Ei, cuidado! – Gabriela reclamou quando os papéis dela caíram no chão, resultado do esbarrão de Felipe.

– Desculpa, não vi você aí – respondeu ele, abaixando-se imediatamente para ajudá-la.

Ela suspirou, claramente irritada. – Claro que não viu.

Felipe entregou os papéis, sentindo-se constrangido. – Foi mal. Não foi minha intenção.

– Tudo bem – ela respondeu secamente, reorganizando os papéis com rapidez.

Por um momento, os olhos de Felipe ficaram fixos nela. Ela parecia impecável, quase fria, e ele não sabia por que isso o incomodava tanto. Gabriela, por outro lado, percebeu o olhar e achou que ele estava julgando sua pressa ou sua aparente desorganização, algo que detestava que os outros notassem.

– Boa sorte aí, seja lá o que você estiver fazendo – disse ela, sem muita emoção, antes de voltar para o auditório.

Felipe a observou partir, intrigado. Não era comum que alguém o deixasse tão curioso, especialmente em um primeiro encontro tão breve.

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A noite seguiu com apresentações interdepartamentais. Gabriela finalmente subiu ao palco para seu discurso, enquanto Felipe aguardava a vez do ensaio geral da peça. O discurso dela foi impecável, arrancando aplausos da plateia. Ela desceu do palco com um suspiro de alívio, mas o burburinho interno continuava. "Foi bom, mas será que foi o suficiente?"

Quando a peça de teatro começou, Gabriela permaneceu na plateia, mais por falta de opção do que por interesse. Ela observou Felipe no palco, intrigada pela intensidade com que ele se entregava ao personagem. Era como se aquele jovem inseguro que esbarrara nela tivesse desaparecido, substituído por alguém confiante e magnético. Apesar de si mesma, ela se pegou prestando atenção.

Felipe, por outro lado, estava no seu elemento. No palco, ele sentia que podia ser quem quisesse, longe das inseguranças que o assombravam na vida real. Mas, ao final da apresentação, quando as luzes se apagaram e os aplausos cessaram, a realidade voltou como um peso. Ele deixou o palco exausto, a adrenalina dando lugar ao cansaço e àquelas vozes familiares que nunca o deixavam em paz.

Quando a noite terminou, Felipe e Gabriela cruzaram caminhos novamente no saguão. Dessa vez, foi Gabriela quem o abordou, ainda intrigada pela performance.

– Você foi bem lá no palco – disse, cruzando os braços.

Felipe, pego de surpresa, hesitou antes de responder. – Obrigado. Não sabia que você estava assistindo.

– Não estava nos meus planos, mas acabei ficando. Não é algo que eu costumo assistir.

– Parece que você não gostou muito – ele arriscou, tentando interpretar o tom dela.

– Não foi isso. Só não esperava... isso.

Felipe franziu a testa. – Isso?

Gabriela deu de ombros. – Algo tão intenso. Acho que subestimei o teatro.

Ele não sabia ao certo se aquilo era um elogio ou uma crítica, mas preferiu não insistir.

– Bom, que bom que você gostou... eu acho.

Ela deu um leve sorriso, algo raro e quase imperceptível.

– Acho que você tem talento, mesmo que não acredite em si mesmo. Isso fica evidente.

Aquelas palavras o pegaram desprevenido. Era raro alguém perceber algo além da superfície. Antes que ele pudesse responder, Gabriela já estava saindo, deixando Felipe parado, perdido em pensamentos.

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Naquela noite, ambos foram para casa com algo diferente na mente. Gabriela, surpresa por ter se sentido tocada por algo tão distante de sua rotina. Felipe, intrigado por aquelas poucas palavras ditas por uma estranha que, de alguma forma, parecia enxergá-lo melhor do que ele mesmo.

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