Essa mansão cheira a medo, aquele tipo que se tenta esconder atrás de tapetes persas e lustres de cristal. É um medo embrulhado em etiqueta, engarrafado em perfumes caros. Todo mundo aqui, com seus ternos alinhados e olhares calculados, acha que o dinheiro os blinda de tudo. Mas eu conheço o cheiro da falsidade. E sei que medo disfarçado não me engana.
O salão é um show de opulência: mármore por toda parte, cortinas pesadas, paredes decoradas com obras de arte que provavelmente custaram mais do que um mês inteiro do meu esquema na Zona Norte. As taças de champanhe circulam como se fossem distribuir felicidade, mas o líquido borbulhante só disfarça o gosto amargo de gente que faria qualquer coisa para se manter no topo.
Eu não pertenço a esse mundo.
Caminho pelo salão como uma faca deslizando por carne macia. Os olhares me seguem – alguns de desprezo, outros de medo. Eles sabem quem eu sou. Conhecem meu nome. Na Zona Norte, meu nome é lei. O tráfico, as apostas, os favores: tudo passa por mim. Nos distritos suburbanos, nos becos e nos bairros esquecidos, a polícia não entra sem pensar duas vezes. Mas aqui, nesse pedaço "fino" da Zona Norte, eles fingem que o caos do subúrbio é um mundo à parte. Só que hoje eu trouxe esse caos para dentro da mansão.
Felipe Almeida é o primeiro a me receber. O aperto de mão dele é firme, mas vazio. Não há peso, não há verdade. Puro teatro.
— Rafael, que surpresa ver você por aqui. — Ele sorri, aquele sorriso nojento de político que acha que domina o mundo.
— Surpresa nunca é boa, deputado. — Respondo com um sorriso curto, sem calor. Ele sabe que o meu também é teatro.
Não estou aqui para apertar a mão de um deputado. Estou aqui por Ana.
A polícia está farejando meus passos, meus negócios, minha organização. Alguém dentro do meu grupo está vazando informações. E desde que Ana apareceu na minha vida, as coisas começaram a desandar. Eu sei reconhecer perigo quando vejo, e Ana é puro perigo, embalado em mistério e beleza. Aquela morena me enredou antes que eu percebesse. Hoje, preciso saber: está comigo ou contra mim?
A encontro perto de uma mesa, tentando se misturar aos convidados. Só que Ana é impossível de ignorar. Com aquele vestido vermelho que parece pintado no corpo, ela atrai olhares sem esforço. Mas o que me chama atenção não é o vestido. São os olhos dela. Sempre atentos, sempre buscando uma saída.
Hoje, não vai escapar.
Passo pelo salão sem desviar de ninguém. Deixo claro que não estou pedindo permissão para estar aqui. Sou uma presença desconfortável nesse mundo de sorrisos ensaiados.
— Ana.
Minha voz sai baixa, mas suficiente para alcançá-la. Ela para por um segundo, como se avaliasse as opções. Ficar ou fugir.
Ela decide ficar.
— Rafael. — A voz dela é calma, mas não há aquele sorriso que costumava me desarmar.
Me aproximo devagar, até sentir o perfume dela misturado ao ar pesado do salão.
— A gente precisa conversar. Agora.
Não é um pedido. Ela sabe disso.
Por um segundo, ela hesita, mas disfarça rápido. Aquela hesitação me deixa ainda mais alerta. Algo está errado.
— Aqui não é o lugar. — Ela responde com firmeza, mas sem confrontar.
Dou um sorriso torto.
— Eu não ligo pro lugar. Quero respostas, Morena.
Ela olha ao redor, avaliando quem pode estar ouvindo. Sempre esperta, sempre cautelosa. Isso é parte do que me atrai. Mas hoje só me irrita.
— Vamos conversar na varanda.
Assinto, e a sigo. Não me importo com os olhares que nos acompanham. Ana é minha. Sempre foi, e ninguém ali tem nada a ver com isso.
A varanda é grande, aberta para o horizonte da cidade. Lá embaixo, as luzes de Lagoas piscam como um mar traiçoeiro, escondendo suas correntes perigosas. O cheiro das flores nos vasos gigantes se mistura com o vento quente da noite.
Ana se apoia no parapeito, de costas para a vista, mas de frente para mim. Eu espero que ela diga algo. Ela não diz.
— O que você quer, Rafael? — Ela finalmente quebra o silêncio, cruzando os braços.
— Quero saber quem você é de verdade.
Minha voz sai firme. Cansei dos jogos.
— Tá comigo ou contra?
Ela respira fundo, mas não desvia o olhar.
— Você acha que eu sou o quê? Uma traidora?
— Não sei mais o que pensar. Só sei que desde que você apareceu, a polícia não larga do meu pé. Coincidência? Eu não acredito nisso.
Por um segundo, algo muda no rosto dela. Não é medo. É culpa. Uma sombra, quase imperceptível, mas suficiente para gelar meu sangue.
Dou um passo à frente e seguro o braço dela, minha mão apertando firme.
— Diz. Você tava me espionando esse tempo todo?
Ela não responde de imediato. Mas também não nega.
— Rafael, eu...
Essa pausa. Essa maldita pausa. Eu já sei a verdade antes que ela termine de falar.
Solto o braço dela como se tivesse tocado fogo.
— Como você pôde?
Minha voz sai baixa, mas cheia de algo que não consigo identificar. Dor.
Raiva. Descrença.
Ela tenta se aproximar, os olhos suplicantes.
— Não era pra ser assim...
— Não era pra ser? — Solto uma risada curta e amarga. — Então o que era pra ser, hein? Você me destruir de outro jeito?
Ela para, como se não soubesse o que dizer. Ou talvez saiba, mas tenha medo da minha reação.
O som de passos quebra o silêncio. Lucas aparece, acendendo um cigarro com aquele ar casual de quem acha graça de tudo.
— Tudo em paz por aqui? — Ele pergunta, o tom carregado de sarcasmo.
Ana fica tensa, os ombros se enrijecendo. Lucas é uma peça nesse jogo também. Sempre foi.
— Isso é entre eu e ela. — Respondo, minha voz um tom mais baixo, mas não menos ameaçadora.
Lucas dá de ombros e solta uma tragada.
— Só tô garantindo que ninguém faça besteira.
Besteira já foi feita. Eu fui o idiota que caiu nessa armadilha.
— Termina isso agora. — Murmuro para Ana, minha voz apertada. — Você tem dez segundos pra me dizer por que eu não devo acabar com você aqui mesmo.
Ela me encara, os olhos brilhando com algo que não consigo decifrar.
— Porque eu te amo, Rafa.
Por um momento, o mundo inteiro para. O vento, o som distante do salão, as luzes da cidade – tudo desaparece. Só resta ela, e essas palavras.
— Isso muda alguma coisa? — Pergunto, minha voz rouca.
— Muda tudo.
E mesmo sabendo que isso vai me destruir, eu acredito.
O som de um tiro ecoa do salão.
Ana segura minha mão.
— Estamos juntos nisso.
Dou um sorriso sombrio, enquanto o caos se aproxima.
— Então, vamos pra guerra.
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Atualizado até capítulo 47
Comments
Sousa
química maravilhosa 😍
2024-12-02
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