Capítulo 04

O som da chuva martelando contra as janelas da livraria trouxe consigo um ar de melancolia, uma cadência quase hipnótica que se misturava ao ambiente silencioso. A cidade lá fora parecia imersa em uma névoa cinzenta, como se o mundo tivesse mergulhado em um sonho sem cor. No entanto, dentro de mim, a tempestade era outra. Sentado no balcão, com os olhos fixos no vazio, senti o fluxo das horas se arrastar de maneira disforme, enquanto minha mente estava cravada em um único ponto: Amanda.

Desde a última vez em que ela estivera aqui, algo dentro de mim parecia ter despertado. Não era desejo, nem era curiosidade, mas uma necessidade que me corroía de dentro para fora. O espaço ao meu redor, as prateleiras que antes me traziam uma estranha sensação de pertencimento, agora pareciam sufocantes. A cada instante que passava sem sua presença, a livraria tornava-se mais apertada, mais vazia.

Eu já havia sentido isso antes, essa inquietação. A fome. Mas com, Amanda, era algo além. Não era só o desejo pelo sangue, era algo mais profundo. Eu queria estar em cada pensamento dela.

(...)

Dias depois, a chuva persistia, quase como um lembrete constante de que o tempo não parava. Ainda assim, o mundo parecia suspenso. Estava no meio da tarde quando a porta da livraria se abriu novamente. O som familiar da campainha me alertou, e eu soube, antes mesmo de virar o rosto, que era ela.

Ela estava ali, Amanda, com os cabelos úmidos e a expressão perdida. Havia algo diferente nela, algo mais solto, como se a tensão que normalmente habitava seus ombros tivesse diminuído. Mas o que me chamou atenção foi o brilho em seus olhos. Não era mais a mesma inquietação da última vez, mas algo novo, algo que eu não poderia ignorar.

— Está chovendo — ela disse, como se isso fosse uma grande revelação.

Sorri levemente, sem desviar o olhar dela.

— Sim, há dias. Mas parece que você decidiu não deixar isso te impedir.

Ela deu um pequeno sorriso de lado, mas havia algo mais por trás dele, uma incerteza. Eu podia sentir. Os humanos são tão previsíveis em suas emoções. Sempre tentando esconder o que realmente pensam, como se pudessem mascarar a verdade com expressões vagas ou palavras banais. Mas eu via além disso.

— O Estrangeiro... — ela começou, enquanto caminhava em direção ao balcão, onde eu ainda estava. — Terminei de ler.

Havia uma hesitação na sua voz, como se quisesse esconder o impacto que o livro teve nela. Eu a observei por um momento, sem pressa, antes de responder.

— E o que achou? — perguntei, com um tom deliberadamente suave. Sabia que o livro teria despertado algo dentro dela, algo que talvez não estivesse pronta para admitir.

— Confuso — ela murmurou, os olhos evitando os meus por um segundo, antes de voltarem a me encarar. — Acho que não consigo compreender como alguém pode viver assim... tão... indiferente.

Eu podia sentir a tensão nas suas palavras, a luta interna para racionalizar os sentimentos que Camus havia despertado. O conceito de indiferença era perturbador para ela, porque te forçava a encarar o vazio dentro de si mesma. E era exatamente isso que eu queria.

— Indiferença é uma arma poderosa — comentei, cruzando os braços. — Meursault é uma representação disso. Ele não se importa com o que a sociedade espera, com o que os outros pensam ou com as convenções morais que nos aprisionam. Ele apenas existe, flutua através da vida. E talvez, Amanda, você também tenha flutuado até agora.

Sua reação foi imediata. A raiva surgiu em seus olhos, uma faísca que parecia dar vida àquele silêncio contido.

— Eu... não sou assim! — ela protestou, mas havia um tremor na sua voz, uma incerteza que traiu a convicção de suas palavras.

— Não? — perguntei, levantando uma sobrancelha, enquanto me aproximava um pouco mais. — E o que você é, Amanda? O que define sua vida? Suas escolhas? Você leu esse livro e se irritou com ele porque ele te confrontou. Você viu um espelho, e isso te incomodou.

Suas mãos apertaram a borda do balcão, os nós dos dedos se tornando brancos. A tensão no ar era palpável, e eu podia sentir o poder que essas palavras tinham sobre ela. Eu estava a despindo de suas defesas, camada por camada, revelando aquilo que ela se recusava a ver. Era inevitável. Tudo estava indo exatamente como eu planejei.

Ela ficou em silêncio por um longo tempo, respirando fundo, tentando recuperar algum controle. Mas não importava o quanto tentasse, eu sabia que ela estava perdendo.

— Talvez você tenha razão... — você disse, finalmente. Sua voz era um sussurro, quase inaudível.

Esse era o momento que eu esperava. O momento em que ela começaria a ceder. Não completamente, mas o suficiente para que a barreira entre nós fosse quebrada.

— Isso não é algo ruim — continuei, mantendo meu tom calmo, quase gentil. — Às vezes, precisamos perder o controle para nos encontrarmos.

Eu podia sentir que ela estava lutando contra o peso dessas palavras. O medo, a hesitação, a confusão. Tudo estava claro nos seus olhos. E, no fundo, era isso o que eu queria. Queria que ela se sentisse perdida, porque, assim, saberia que só eu poderia guia-lá de volta.

— Então... o que faço agora? — ela perguntou, sua voz repleta de incerteza.

Esse era o ponto de ruptura. Aquele momento em que eu soube que ela estava pronta para o próximo passo.

— Talvez devêssemos explorar isso mais a fundo. — meus olhos encontraram os seus, e eu pude ver a confusão sendo lentamente substituída por curiosidade. — Ler é uma porta para o autoconhecimento, Amanda. Mas também é só o começo.

Ela assentiu, quase imperceptivelmente, como se estivesse absorvendo minhas palavras, tentando entender o que isso realmente significava.

— O que você sugere? — ela perguntou, sem perceber que, com essa pergunta, já estava me entregando o controle.

— Há muito mais que você pode explorar... livros, sim, mas também suas próprias limitações. — Me aproximei um pouco mais, mantendo minha voz baixa e convidativa. — E eu posso te guiar nisso, se você permitir.

O silêncio que se seguiu foi pesado. Eu sabia que ela estava considerando minhas palavras, pesando as opções. Havia uma parte dela que queria recuar, voltar para sua zona de conforto. Mas outra parte, aquela que eu estava despertando, queria saber mais. Queria ir além.

Finalmente, ela balançou a cabeça, concordando.

— Certo — ela disse, com um tom resoluto que era novo para mim. — Vamos fazer isso.

Senti uma onda de satisfação. Cada passo estava sendo dado exatamente como eu previra. Amanda estava começando a ceder, a se entregar, e, com o tempo, a linha entre nós desapareceria completamente.

(...)

Nos dias seguintes, nossos encontros tornaram-se frequentes. Ela voltava à livraria quase diariamente, sempre procurando novos livros, novos desafios. Eu te guiava cuidadosamente, introduzindo obras que lentamente desconstruíam as ideias que ela tinha sobre si mesma e sobre o mundo ao seu redor. A filosofia existencial, a literatura sobre moralidade, tudo que pudesse desafiar a estabilidade que ela tanto se esforçava para manter.

E, pouco a pouco, fui observando a transformação. Ela se tornou mais introspectiva, mais questionadora. As conversas que antes eram simples trocas de impressões sobre livros agora se aprofundavam em questões mais pessoais, mais complexas. Eu observava com atenção, notando cada mudança sutil em suas reações, cada nova camada de vulnerabilidade que era exposta.

Era fascinante como, em tão pouco tempo, ela havia se tornado tão diferente. Não totalmente, claro. Ainda havia resistência, ainda havia partes dela que lutavam para manter algum controle. Mas eu sabia que isso era apenas uma questão de tempo.

Mais populares

Comments

HappyKilling

HappyKilling

Viciei completamente!

2024-10-15

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!