O som da campainha da livraria ainda ressoava nos meus ouvidos, mesmo depois que ela partiu. A porta se fechou suavemente, e a escuridão da noite se insinuou pelos vidros, como se o mundo lá fora estivesse esperando por algo. Ou por ela. Fiquei ali, parado por alguns momentos, deixando que a sensação da sua presença, que ainda pairava no ar, impregnasse o ambiente. Era curioso como, mesmo ausente, ela parecia preencher cada canto. As prateleiras de madeira envelhecida, os livros empilhados com cuidado quase reverencial, tudo parecia um pouco mais pesado agora, como se ela tivesse deixado um traço de si mesma.
Eu me movi em direção à porta, trancando-a lentamente, não por receio de que alguém entrasse, mas porque aquela era a hora de refletir. A hora de te sentir, mesmo à distância. Cada visita sua era como um novo capítulo se desenrolando diante de mim, e eu precisava de um momento para absorver tudo o que tinha acontecido.
Quando voltei para o balcão, meus olhos recaíram sobre a prateleira onde ela havia hesitado antes de escolher seu primeiro livro. A Insustentável Leveza do Ser. Uma escolha perfeita, é claro, mas o que a maioria das pessoas não entendia é que as escolhas literárias são muito mais do que simples preferências pessoais. Elas são espelhos. Refletem partes de nós que evitamos, partes que não estamos prontos para confrontar. E, Amanda, estava à beira desse confronto, mesmo que não tivesse consciência disso.
O livro havia sido a primeira isca, um teste para ver até onde ela estava disposta a ir. Mas agora, com O Estrangeiro nas suas mãos, sabia que o caminho se aprofundaria. Camus era mais direto, sim, mas a simplicidade de sua obra escondia uma complexidade maior: a questão do absurdo, do vazio existencial. Ela mal arranhou a superfície com Kundera. Camus irá te fazer ela olhar para dentro, e o que ela encontrar pode ser que não seja bonito. Não será confortável!
Subi as escadas em direção ao mezanino, onde mantinha meus volumes mais raros. O chão de madeira rangia sob meus passos, e o som ecoava na loja silenciosa. Aquele era o meu espaço privado, onde me refugiava quando precisava de calma. A livraria, embora aberta ao público, era meu domínio. Meu reino. Mas o mezanino era o centro de tudo. Lá de cima, eu podia observar o espaço inteiro.
Sentei-me numa poltrona velha de couro que mantinha perto de uma janela estreita. A luz da lua entrava pálida, cortando a escuridão com um brilho prateado. Peguei um volume de Baudelaire que estava sobre a mesa ao lado e o folheei sem muito interesse. Minhas mãos se moviam automaticamente, mas minha mente estava em outro lugar. Estava com ela.
Me perguntava onde ela estaria agora, após deixar a livraria. Seu apartamento, provavelmente. Um lugar modesto, pequeno demais para a grandiosidade do que ela representava. Eu podia imaginar a cena. Ela chegando em casa, deixando as chaves sobre a mesa, tirando os sapatos e se jogando no sofá. Olhando para O Estrangeiro em suas mãos e sentindo aquele mesmo peso que ela tentou ignorar desde que leu o primeiro livro.
Talvez ela faça um chá. Sim, isso parecia algo que ela faria. Um chá para tentar acalmar a mente. Mas não importa o quanto ela tente se distrair. O livro está lá, olhando para ela, silenciosamente pedindo para que seja aberto. E ela vai ceder. Mais cedo ou mais tarde.
Sorri para mim mesmo. Era fascinante observar o desenrolar disso tudo. Cada detalhe, cada pequena reação dela. Ela pensava que tinha controle, mas, no fundo, eu já estava conduzindo tudo. Não havia maldade nisso. Eu simplesmente vejo o que ela ainda não conseguia ver. Ela precisava de alguém como eu. Alguém que pudesse mostrar o que realmente é a liberdade, o que realmente significa viver sem as amarras que ela mesma a impôs.
Naquela noite, o sono veio tardiamente. Quando finalmente apaguei as luzes e me retirei para o apartamento que ficava nos fundos da livraria, já passava das três da manhã. Me deitei, mas os pensamentos não me deixavam em paz. Sabia que, a partir daquele momento, as coisas começariam a avançar de forma mais rápida. Ela não era o tipo de pessoa que lidava bem com mudanças internas. Sabia que as sementes que plantei estavam germinando, e logo ela estaria de volta, buscando mais respostas. Mais guias. Mais de mim.
A semana passou como um borrão de eventos monótonos. Clientes entravam e saíam da livraria, comprando livros que, na maioria das vezes, mal compreendiam. Eles buscavam distrações, escapismo. Não queriam ser desafiados, como ela. E isso me irritava. Cada cliente que entrava sem a profundidade necessária para apreciar o que oferecíamos me fazia ansiar ainda mais pela sua volta.
Foi na sexta-feira à noite, quase uma semana após a última visita dela, que ela retornou. Desta vez, eu estava no balcão, registrando algumas vendas do dia, quando ouvi a porta se abrir. Meu corpo inteiro se alertou instantaneamente, reconhecendo a presença antes mesmo de levantar os olhos. Era como se o ar ao seu redor se alterasse, tornando-se denso, carregado de algo que só ela trazia.
Olhei para cima e lá estava ela, parada na entrada, um pouco mais confiante do que da última vez. Seus olhos, no entanto, ainda carregavam a mesma incerteza. Havia algo que você não conseguia resolver, algo que te puxava de volta aqui.
— Boa noite — ela disse, aproximando-se devagar.
Eu me endireitei, deixando o trabalho de lado. O momento havia chegado.
— Amanda — cumprimentei, um sorriso leve surgindo nos meus lábios. — Como foi a leitura?
Ela hesitou por um segundo, mordendo levemente o lábio inferior. Era um hábito que eu já havia notado. Sempre que ela estava nervosa, ou prestes a revelar algo que ainda não tinha certeza se deveria.
— Foi... diferente — ela respondeu, finalmente. — Achei que seria mais fácil, mais simples. Mas não foi. Acho que nunca me senti tão... — suas palavras ficaram presas na garganta por um momento, antes dela desviar o olhar, constrangida. — Perdida.
"Perdida." A palavra flutuou no ar entre nós. Era isso. Exatamente o que eu esperava ouvir.
— É assim que as melhores leituras nos fazem sentir — comentei suavemente. — O Estrangeiro não é um livro para trazer conforto, Amanda. Ele é um espelho. Reflete o vazio que todos carregamos, mas evitamos olhar.
Ela assentiu, seus olhos ainda baixos, como se estivesse tentando processar o que eu acabara de dizer.
— Acho que é isso... Eu fiquei me perguntando, durante a leitura, se talvez... eu mesma seja assim. Meio... desconectada do mundo.
Minha respiração ficou suspensa por um segundo. A franqueza na sua voz me pegou de surpresa, mas também confirmou o que eu já sabia. Ela estava no caminho certo, indo exatamente para onde eu queria.
— Desconectada? — perguntei, como se estivesse genuinamente curioso, embora a verdade fosse que eu já esperava por essa confissão. — O que te faz sentir assim?
Ela levantou o olhar, seus olhos procurando os meus, como se buscasse uma resposta para algo que nem mesmo sabia como formular. Havia uma angústia silenciosa ali, algo que me fascinava.
— Eu não sei — ela disse, finalmente. — É como se eu estivesse vivendo uma vida que... não é realmente minha. Como se eu estivesse apenas... passando pelos dias, sem realmente estar presente. Não sei se faz sentido.
Fazia todo o sentido. Mais do que pode imaginar.
— Isso faz muito sentido, Amanda — respondi, dando um passo à frente. — Muitas pessoas passam a vida assim, tentando encontrar um propósito, um motivo para estarem aqui. E quando não encontram, criam uma fachada. Uma vida que não é verdadeira. Talvez seja isso que você esteja sentindo.
Ela me olhou por um longo momento, e pude ver a luta interna que se desenrolava dentro dela. Estava tão perto, tão perto de compreender o que estava acontecendo, mas ainda não conseguia juntar todas as peças.
— Eu só... — ela começou, mas as palavras falharam.
Dei um passo à frente, diminuindo a distância entre nós, até estar próximo o suficiente para sentir sua respiração. Meus olhos não deixaram os seus por um segundo, e quando falei novamente, minha voz era baixa, quase um sussurro.
— Você não está sozinha nisso, Amanda. Todos nós buscamos algo. E às vezes, a resposta está mais perto do que imaginamos.
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Atualizado até capítulo 68
Comments
Joana Sena
Bruno parabéns que escrita perfeita, nos prende, envolve na estória. Tô apaixonada 👏👏💐💐😊
2024-11-08
1
EatYourHeartOut
ameiiii
2024-10-15
1