Capítulo 02

O tempo passou de forma estranha após a primeira visita de Amanda à livraria. A noite, que antes parecia silenciosa e acolhedora, tornou-se inquieta. As sombras que habitavam os cantos mais profundos das prateleiras pareciam mais pesadas, quase vivas. Eu sabia que isso era um reflexo de você, Amanda. De como sua presença mudou tudo, inclusive a mim. E, claro, eu não estava surpreso.

A cada dia, eu sentia a expectativa crescendo. A sensação de que ela voltaria. Sabia que aquele livro que escolhi para ela estava moldando algo dentro da sua mente, plantando sementes de curiosidade e dúvida. A leveza existencial que ela acreditava ter se evaporaria logo.

Foi na tarde de uma terça-feira que ela voltou. O sol já havia se despedido há algumas horas, e o ritmo da cidade estava morrendo, como uma respiração lenta antes do sono profundo. Eu estava organizando livros velhos, algo que sempre me trouxe uma espécie de conforto, uma repetição mecânica que me permitia pensar sem ser distraído. E foi nesse momento, enquanto organizava os volumes de Nietzsche e Camus, que ouvi o som da campainha da porta tocando.

Levantei os olhos e vi ela parada na entrada, hesitante. Era interessante como ela nunca entrava de forma decidida, como se sempre esperasse algo ou alguém te guiar. De certa forma, ela já sabia que pertencia a esse lugar, que sua ligação comigo era inescapável. Mas não parecia pronta para admitir isso.

— Olá — ela disse, sua voz baixa, quase um sussurro no silêncio da livraria. Sua expressão estava fechada, indecifrável, mas havia algo diferente. Algo nos seus olhos que não estava ali antes. Uma centelha de inquietação.

— Amanda — respondi, inclinando a cabeça levemente, como se sua visita fosse uma agradável surpresa, embora eu já esperasse por isso. — Como foi a leitura?

Seu sorriso tímido não escondeu a verdade, e eu pude ver em seus olhos que ela ainda estava processando o impacto do livro. A Insustentável Leveza do Ser não era uma leitura leve, e eu sabia que, à medida que ela folheava suas páginas, o conceito de leveza e peso estava se entrelaçando com suas próprias questões internas. Perguntas que ela evitava há muito tempo.

— Eu... Acho que não entendi tudo. Quer dizer, algumas partes me pegaram de surpresa, outras... me fizeram pensar. — ela parou por um momento, olhando ao redor, como se o ambiente pudesse fornecer respostas que ela não conseguia verbalizar. — Acho que é mais denso do que eu esperava.

Sorri, observando cada nuance da sua reação. Claro que é denso, Amanda. Esse é o ponto. Kundera nunca foi um autor fácil, e eu sabia que ele traria à tona questões sobre você que você estava tentando evitar.

— Isso é o que faz dele um livro especial — comentei, cruzando os braços e me apoiando no balcão. — Livros assim te confrontam, te fazem encarar realidades que você normalmente evitaria. E quando menos espera, você está refletindo sobre coisas que achava que estavam resolvidas.

Seus olhos encontraram os meus, por um breve instante, mas foi o suficiente para eu perceber o peso de suas palavras não ditas. Havia algo além da confusão literária. Algo que ela carregava consigo e que, aos poucos, estava sendo exposto.

— Talvez seja isso... — ela murmurou, desviando o olhar para os livros nas prateleiras, como se buscasse refúgio entre as lombadas enfileiradas.

— Acho que ele me fez questionar coisas sobre mim mesma que eu não queria questionar.

E foi nesse momento que soube que ela estava mais envolvida do que imaginava. Ela ainda não tinha a plena consciência disso, mas o livro que eu te entreguei tinha cumprido seu propósito: abrir uma porta dentro dela. E agora que essa porta estava entreaberta, só restava saber o quão fundo ela estava disposta a ir.

— Isso é bom — eu disse, suavemente. — A leitura deve nos transformar, de alguma maneira. Caso contrário, de que serve?

Ela assentiu, mas o desconforto era claro. Era claro que ela não estava acostumada com mudanças. Algo na sua postura, nas suas palavras, me dizia que ela tinha passado muito tempo tentando manter o controle. Talvez essa mudança, esse convite para o desconhecido, fosse mais assustador do que ela gostaria de admitir.

— Eu estava pensando... — ela começou, quebrando o silêncio que havia se instaurado entre nós. — Se você tiver alguma outra recomendação, eu adoraria ouvir.

Senti uma leve pontada de satisfação. Claro que ela voltaria para isso. Estava atraída, inevitavelmente, pelo que eu oferecia.

— Tenho várias sugestões — respondi, caminhando em direção a uma estante no fundo da loja. — Mas acho que devemos seguir por etapas. Não adianta mergulhar tão fundo de uma vez só. Algumas leituras precisam ser digeridas com calma.

Ela me seguiu, seus passos hesitantes, mas curiosos. O som de seus sapatos ecoava levemente no piso de madeira da livraria, criando um ritmo que parecia marcar cada momento dessa nossa nova conexão. Parei diante de uma seção menos iluminada, onde as obras filosóficas e existenciais dominavam. Escolhi um livro cuidadosamente, não só pela profundidade da obra, mas pelo que ela despertaria nela.

— Que tal O Estrangeiro, de Albert Camus? — perguntei, entregando o livro a ela. — É uma leitura mais direta, mas com um impacto profundo. Acho que pode te ajudar a entender melhor o que você está começando a sentir.

Ela pegou o livro, mas desta vez não havia hesitação. Seus dedos correram pela capa com mais confiança do que antes, como se estivesse pronta para enfrentar o que viesse. Era curioso como, em tão pouco tempo, ela havia mudado. Não a ponto de reconhecer completamente o que estava acontecendo, mas o suficiente para começar a aceitar a transformação que eu sabia que estava em curso.

— Parece bom — ela disse, com um leve sorriso, e algo nos seus olhos me fez perceber que ela estava se entregando. Não completamente, mas começando a aceitar o caminho que havíamos traçado juntos.

Ela caminhou de volta para o balcão, e eu a segui, observando cada movimento dela. Era fascinante como ela ainda tentava manter uma certa distância, uma espécie de controle sobre a situação, mas eu sabia que, a cada novo livro, a cada nova conversa, essa distância diminuía. A linha entre ela e eu estava ficando mais tênue.

Depois que ela pagou pelo livro, houve um silêncio que se alongou entre nós. Aquele tipo de silêncio que carrega mais do que palavras poderiam expressar. Eu sabia que ela estava prestes a sair, mas havia algo que ainda a segurava ali, algo que ela não conseguia definir.

— Acho que voltarei mais vezes — ela disse, sua voz baixa, quase como uma confissão. — Há algo aqui... nessa livraria... que me faz querer voltar.

Sorri, satisfeito, mas não disse nada. Não precisava. As palavras já haviam sido ditas. Ela estava envolvida demais para perceber, mas eu já sabia. A cada nova visita, a cada novo livro, ela se tornava parte de algo maior.

— Estarei aqui quando você voltar — murmurei, observando ela sair pela porta, mais uma vez deixando um vazio atrás de si.

Quando a porta finalmente se fechou, senti a escuridão ao meu redor se intensificar. As sombras nas prateleiras se movendo levemente, como se estivessem ansiosas, à espera do próximo passo. E eu sabia que não teríamos que esperar muito.

Ela voltaria...

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Comments

ahok wijaya

ahok wijaya

😍💔😭 (Emoji de coração, de partir o coração e chorando)

2024-10-15

1

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