Os primeiros raios do sol mal haviam tocado a terra, e Miguel já estava acordado. Ele precisava trabalhar cedo, antes que o calor tomasse conta dos campos, mas aquela manhã estava diferente. Seus pensamentos giravam em torno de Laura, de sua presença tranquila, e do confronto com Gabriel no dia anterior. A figura de Gabriel sempre foi uma sombra persistente, mas a forma como ele se aproximou de Laura despertou algo novo em Miguel — uma necessidade urgente de protegê-la, e talvez uma centelha de medo. Medo de que Gabriel pudesse, de alguma forma, usar seu passado contra ele, ou pior, contra ela.
Enquanto Miguel percorria o campo com a enxada, tentando manter a mente ocupada, ele não conseguiu evitar pensar em como sua vida era uma constante batalha. As árvores ao redor balançavam suavemente ao vento, e o barulho dos pássaros deveria ser reconfortante, mas tudo parecia carregado. Cada passo que dava na lama era um lembrete de que ele nunca podia se desvencilhar completamente do peso do passado.
O som de passos suaves fez com que ele levantasse a cabeça, e lá estava Laura, de novo. Desta vez, ela caminhava até ele com um olhar sério, como se estivesse decidida a resolver algo. Ela usava calças jeans gastas e uma camisa branca simples, mas seu cabelo estava solto, e o vento brincava com os fios enquanto ela se aproximava.
— Miguel, eu... — Ela parou, como se procurasse as palavras certas. — Preciso falar com você.
Ele largou a enxada, percebendo a preocupação nos olhos dela. Ela não parecia apenas inquieta; ela parecia assustada, como se estivesse carregando algo que não conseguia conter por mais tempo.
— Claro, Laura. O que houve? — Ele tentou manter a voz calma, mas o nervosismo crescia dentro dele.
Ela olhou ao redor, certificando-se de que estavam sozinhos. Era uma manhã tranquila, e o campo estava vazio. Apenas o som do vento e os ecos distantes da cidade enchiam o silêncio.
— Eu... eu queria saber o que Gabriel quis dizer ontem — começou ela, e Miguel podia ver o conflito interno em seus olhos. — Quando ele falou sobre você, sobre o seu passado... O que ele quis dizer? Eu... eu preciso saber, Miguel.
Miguel sentiu o chão se abrir sob seus pés. Era isso que ele mais temia. Aquele passado que ele tentava enterrar, que ele escondia para proteger não apenas a si mesmo, mas qualquer chance de construir algo novo. Agora ele estava ali, exposto, sendo confrontado pelos olhos sinceros de Laura. E ele não sabia se conseguia se abrir dessa forma, não sabia se ela seria capaz de olhar para ele da mesma maneira depois de conhecer toda a verdade.
— Laura, eu... — Ele hesitou, desviando o olhar para o chão. — É complicado. E... eu não queria que você se envolvesse nisso.
— Miguel, por favor. Eu não quero ouvir isso de Gabriel, não quero ouvir rumores pela cidade. Eu quero ouvir de você. Quero entender o que aconteceu. — Sua voz estava firme, mas havia uma ternura que o desarmou. Ela estava ali, realmente tentando conhecê-lo, querendo vê-lo por completo, e não como um amontoado de boatos e segredos.
Miguel respirou fundo, sentindo o ar frio preencher seus pulmões. Aquelas eram as palavras mais difíceis que ele já teve que dizer, mas sabia que precisava contar.
— Quando eu era mais jovem... — começou ele, as palavras saindo lentamente, como se cada uma fosse uma faca afiada. — Eu me meti em muita confusão. Você sabe, minha família sempre foi simples, e meu pai morreu quando eu era pequeno. Então, eu... cresci revoltado, com raiva do mundo. Me envolvi com gente errada. Bebida, brigas, roubos. Eu achava que era invencível, que podia fazer o que quisesse.
Ele parou, tentando avaliar a expressão de Laura. Ela o ouvia atentamente, sem desviar os olhos, mas ele podia ver o impacto de suas palavras nela. Sentia como se estivesse destruindo algo frágil entre os dois.
— Uma noite... eu estava com alguns amigos, e a coisa saiu do controle. Havia uma briga... Eu não sei ao certo o que aconteceu, mas alguém acabou se machucando feio. E a culpa caiu sobre mim. Passei um tempo preso, e minha mãe... ela sofreu muito por minha causa. A cidade inteira sabe disso, e, até hoje, todo mundo me vê como aquele moleque rebelde que estragou a vida de todo mundo.
Miguel engoliu em seco, sentindo o gosto amargo da lembrança. Era uma confissão que ele evitava fazer, uma ferida aberta que ele preferia esconder. E ali estava ele, expondo essa parte de si para Laura, sem saber o que esperar dela.
Laura ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo tudo o que ele havia dito. Ela parecia surpresa, sim, mas não havia julgamento em seus olhos. Apenas uma compreensão silenciosa, uma empatia que o desconcertou. Ela deu um passo à frente, colocando a mão suavemente no ombro dele.
— Miguel... eu sinto muito por tudo que você passou. Eu... eu não te vejo como eles veem. — Sua voz era suave, e Miguel sentiu um calor invadir seu peito. — Sei que você deve carregar essa culpa, mas... todo mundo merece uma segunda chance. E pelo que eu vejo, você é alguém que tenta, todos os dias, ser melhor.
As palavras dela eram um alívio que ele não sabia que precisava. Como se, por um instante, o peso que ele carregava nos ombros tivesse sido dividido. Ela não havia fugido, não havia o rejeitado. Pelo contrário, parecia mais próxima, mais conectada a ele do que antes.
— Obrigado, Laura — disse ele, finalmente, deixando escapar um sorriso tímido. — Você não sabe o quanto isso significa para mim.
Ela sorriu de volta, e ali, naquele pequeno instante, parecia que o mundo ao redor desaparecia. Eles eram apenas duas pessoas tentando se entender, tentando encontrar um caminho para deixar o passado para trás. Miguel queria agarrar-se àquele momento, queria deixar-se perder no olhar dela, mas a presença de Gabriel ainda pairava sobre eles, como uma sombra que não poderia ser ignorada.
— Eu quero te ajudar, Miguel — disse Laura, com a voz cheia de determinação. — Eu sei que não posso mudar o que aconteceu, mas... estou aqui. E se precisar de alguém para estar ao seu lado, eu vou estar.
Miguel não sabia como responder. Aquilo era algo que ele nunca imaginou que ouviria. Uma promessa de apoio, de compreensão, que ele nunca se permitiu acreditar que poderia ter.
Mas o mundo sempre parecia ter outras intenções. Um grito soou ao longe, vindo da direção da cidade, interrompendo o momento entre eles. Miguel se virou rapidamente, seu corpo todo em alerta. Laura fez o mesmo, os olhos arregalados de surpresa e medo.
— O que foi isso? — perguntou ela, enquanto eles começavam a caminhar rapidamente na direção do som.
— Não sei, mas... parece que está vindo do mercado — respondeu Miguel, o coração batendo acelerado no peito.
Eles correram juntos pela estrada de lama, deixando para trás o campo e o silêncio reconfortante. Quando se aproximaram da praça central, viram uma pequena multidão reunida, e a cena que os aguardava foi um choque para ambos.
Gabriel estava lá, no meio da confusão, segurando um homem pelo colarinho. Era Renato. Ele estava com o rosto inchado e um corte no supercílio, como se tivesse sido jogado contra o chão. O rosto de Gabriel estava vermelho de raiva, e ele gritava algo incompreensível para todos à sua volta.
Miguel sentiu o sangue ferver. Sem pensar, avançou pela multidão, puxando Gabriel para longe de Renato.
— O que você está fazendo, seu desgraçado?! — gritou Miguel, os punhos cerrados, pronto para atacar.
Gabriel se virou para ele, com um sorriso sarcástico e olhos cheios de desprezo.
— Ah, veja só, o herói chegou para salvar o amigo delinquente. — Ele soltou Renato com um empurrão, deixando-o cair no chão. — Seu amigo aqui... resolveu encher a cara e falar demais. Acho que ele esqueceu que certas coisas é melhor deixar enterradas.
Miguel ajudou Renato a se levantar, olhando ao redor para a multidão que assistia à cena, os olhares cheios de expectativa, como se esperassem ver mais um espetáculo. Ele queria gritar, queria socar Gabriel até ele se calar, mas sabia que qualquer coisa que fizesse só pioraria a situação.
Laura o segurou pelo braço, tentando acalmá-lo. Ela olhou para Gabriel com uma fúria silenciosa, mas contida.
— Vamos embora daqui, Miguel — disse ela, a voz trêmula de nervosismo, mas firme em sua determinação.
Miguel assentiu, puxando Renato consigo enquanto eles se afastavam da praça. Mas ele sabia que aquela história estava longe de acabar. A presença de Gabriel e o conflito que ele trazia não seriam resolvidos tão facilmente.
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Atualizado até capítulo 44
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