O silêncio da manhã estava sempre ali, preenchendo os espaços vazios entre o sol nascendo e os pássaros cantando. Miguel estava no campo novamente, e o peso da enxada nas mãos parecia mais leve do que de costume. Havia algo diferente na maneira como ele enxergava o trabalho: um tom de esperança, uma novidade que Laura havia trazido consigo sem sequer perceber. Desde a primeira conversa com ela, Miguel sentia como se as amarras invisíveis que o prendiam àquela vida começassem a afrouxar, e, apesar disso, ele tentava não se deixar levar por essa esperança. As raízes do passado ainda o puxavam para baixo, como a lama que afundava seus pés a cada passo.
Renato apareceu ao longe, caminhando pelo campo. Seus passos eram rápidos, cheios de energia, e sua expressão carregava a usual mistura de humor e preocupação. Miguel sabia que seu amigo de longa data não gostava de vê-lo se isolando; era como se a solidão de Miguel o inquietasse. Renato era uma lembrança viva dos tempos mais problemáticos, mas também a prova de que o passado, de certa forma, nunca estava tão longe quanto ele gostaria.
— Bom dia, rapaz! — gritou Renato, sorrindo largamente. — Pensei que você tinha sumido no meio da lama!
Miguel sorriu, mas era um sorriso contido, quase inseguro.
— E o que te traz aqui a essa hora? — perguntou ele, fincando a enxada na terra.
— Tava de bobeira, e pensei em te ajudar por aqui... E também soube que temos novidade na cidade — Renato lançou o olhar em direção à estrada onde o carro de Laura havia passado dias antes. — Ouvi dizer que tem uma moça bonita por essas bandas.
— Sim, tem — respondeu Miguel, tentando soar casual, mas sua voz traiu a ansiedade que sentia ao falar dela. — O nome dela é Laura, se mudou pra cuidar das terras da família.
Renato levantou as sobrancelhas, um sorriso divertido surgindo em seu rosto.
— E você já conhece a garota? Que sorte a sua, Miguel! E aí, vai investir?
— Não começa, Renato. Ela só tá tentando entender como as coisas funcionam por aqui. E eu tô ajudando. Só isso.
— Sei... — Renato se aproximou, dando um leve tapa no ombro de Miguel. — Eu te conheço, rapaz. Não esconde nada de mim. Mas fica esperto. O pessoal da cidade gosta de falar, e você sabe como é...
Miguel sabia. Ele sempre soube. Os rumores, os olhares tortos, o julgamento constante. Ser filho da Dona Teresa era uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo; sua mãe tinha uma reputação de mulher forte, mas os problemas de Miguel na juventude tinham manchado o nome da família. A cidade nunca esquecia. A cidade nunca perdoava.
— Não tem nada acontecendo — respondeu Miguel, mais para si mesmo do que para Renato. — E mesmo que tivesse... Você acha que alguém como eu tem chance com alguém como ela?
Renato deu de ombros, uma expressão sincera de amizade surgindo em seu rosto.
— Não sei, cara. Mas nunca foi do seu feitio fugir de um desafio, né?
Miguel riu, mas foi uma risada nervosa. As palavras de Renato ficaram com ele enquanto trabalhavam lado a lado, arrancando ervas daninhas, limpando os sulcos de lama que se acumulavam entre os campos. Eles passaram horas assim, em um ritmo que era ao mesmo tempo exaustivo e reconfortante, como se os problemas fossem menores quando enterrados sob o peso do trabalho duro.
O Sussurro dos Segredos
Mais tarde naquele dia, Miguel se viu na praça central da cidade. Era a hora do intervalo para o almoço, e ele aproveitava para comprar algumas coisas que faltavam em casa. A praça era um ponto de encontro da cidade, sempre movimentada, com crianças brincando, senhoras trocando receitas e homens discutindo sobre a última colheita. Entre as conversas que pairavam pelo ar, os olhares de curiosidade de alguns conhecidos recaíam sobre ele, como se ele fosse sempre alvo de uma atenção que não desejava.
Foi então que ele avistou Laura novamente. Ela estava parada em frente à igreja, conversando com Padre Olavo. Sua postura era elegante, mas seu rosto parecia carregado por uma preocupação. Miguel hesitou por um momento. Não queria interromper, mas algo o atraía a se aproximar. Era como se o simples ato de estar perto dela trouxesse uma espécie de calma que ele não experimentava há muito tempo.
Padre Olavo notou Miguel e acenou com um sorriso caloroso, como se estivesse esperando que ele se aproximasse.
— Ah, Miguel! Venha, venha! — chamou o padre, a voz ecoando pelo ambiente. — Laura estava me contando sobre a ajuda que você está dando a ela. Fico feliz em saber que está ajudando a nossa nova moradora a se adaptar.
Laura virou-se e sorriu para Miguel. Ela parecia diferente ali, na praça, longe dos campos. Havia uma certa vulnerabilidade em seus olhos que ele não havia percebido antes, como se ela estivesse tentando encontrar seu próprio lugar naquele mundo novo.
— Eu estava dizendo ao padre que você é muito gentil em me mostrar como as coisas funcionam por aqui — disse Laura, seus olhos fixos nos de Miguel.
— Só faço o que posso — respondeu ele, tentando não parecer nervoso. — E como estão indo as coisas? Tá se adaptando?
— Sim... Aos poucos. É bem diferente do que eu imaginava. Mas acho que vou gostar daqui.
Padre Olavo observou os dois, os olhos sábios estudando a interação silenciosa entre eles. Ele sabia reconhecer quando algo especial estava surgindo, mas também sabia que precisava ser cuidadoso. Miguel era como um filho para ele, alguém que ele viu crescer e lutar contra seus próprios demônios. E Laura, a jovem que havia voltado à cidade por um motivo que ainda não tinha sido completamente revelado, também parecia carregar seus próprios mistérios.
— Bem, se precisarem de alguma coisa, estarei por aqui — disse o padre, se afastando com um sorriso complacente. — Fiquem à vontade.
Laura e Miguel ficaram ali, sozinhos por um instante, enquanto a praça fervilhava ao redor deles. Miguel podia ouvir o murmúrio das vozes, o vento soprando pelas árvores e o som distante de crianças brincando. Era como se o mundo tivesse desacelerado apenas para eles.
— Queria te agradecer, Miguel — disse ela, com uma sinceridade que o desarmou. — Você tem sido muito paciente comigo, mesmo sem me conhecer direito.
— Não precisa agradecer, Laura. Só... acho que todos merecem uma chance de conhecer como a vida realmente é aqui.
Ela assentiu, mas havia algo a mais em seus olhos, algo que Miguel não conseguia decifrar. Uma sombra, talvez, ou um segredo escondido atrás daquele sorriso gentil. Ele quis perguntar, quis entender o que a trazia ali e por que ela parecia tão sozinha, mesmo cercada por pessoas. Mas se conteve. Não era o momento certo.
— Talvez um dia você me conte mais sobre você, Miguel — disse ela, quase como se estivesse lendo seus pensamentos. — Eu sinto que há muito sobre você que ainda não sei.
Ele sorriu, mas foi um sorriso que não chegou aos olhos.
— Talvez, um dia — respondeu ele, tentando manter o tom leve. — Mas até lá, acho que temos muito trabalho nos campos para fazer.
Eles riram juntos, uma risada que soava como um alívio, uma trégua no meio do caos silencioso de suas próprias vidas. E naquele instante, sob o céu cinzento e as nuvens que prometiam chuva, Miguel sentiu que, talvez, estava tudo bem se deixar sonhar.
Se, através da lama, ele pudesse encontrar uma nova estrada, Laura poderia ser o primeiro passo.
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Atualizado até capítulo 44
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