Entre Olhares e Lembranças

O som da enxada cortando a terra era repetitivo e reconfortante. A cada golpe, Miguel deixava escapar um pouco da tensão que se acumulava dentro de si. O sol fraco daquela manhã parecia querer furar o manto de nuvens que cobria o céu, mas a chuva não dava trégua — apenas ameaçava, mas nunca caía. Ele estava sozinho no campo, como sempre. Era assim que gostava, só ele e o trabalho duro. A terra, apesar de molhada, respondia bem, e a enxada se movia como se parte de seu próprio corpo.

No entanto, por mais que tentasse, Miguel não conseguia afastar os pensamentos da mulher que havia conhecido no dia anterior. A lembrança de Laura, com seu vestido claro e o sorriso aberto, parecia cravada em sua mente, como uma imagem que se recusava a desvanecer. E mesmo que ele tentasse afundar seus pensamentos no trabalho, ela insistia em retornar. A suavidade do seu olhar, a forma como ela segurou sua mão, como se não se importasse com a aspereza e a sujeira das mãos de Miguel. Isso o incomodava e, ao mesmo tempo, o fascinava.

O barulho de um carro ao longe trouxe Miguel de volta à realidade. Ele levantou a cabeça, e o mesmo veículo preto do dia anterior se aproximava pela estrada lamacenta, criando um contraste gritante com o cenário rural. Era Laura. Desta vez, ela dirigia sozinha, e o carro se movia lentamente, balançando enquanto passava pelos buracos do caminho.

Ele observou enquanto ela estacionava próximo à cerca do campo. Laura saiu do carro com a mesma elegância casual de antes, mas agora parecia mais preparada para o ambiente, usando calças e botas. Ela acenou para Miguel, e ele sentiu um calor subir pelo pescoço, uma mistura de nervosismo e excitação que não sabia explicar.

— Oi, Miguel! — ela o chamou, com um sorriso que parecia iluminar todo o campo.

Miguel largou a enxada e limpou as mãos na calça, caminhando em sua direção. Cada passo que dava era como se atravessasse uma barreira invisível, que ele não sabia se estava preparado para cruzar.

— Oi, Laura... — ele respondeu, com um tom mais baixo do que pretendia.

Ela riu, um riso que soava como música para ele, uma melodia que destoava do silêncio usual dos campos.

— Espero não estar atrapalhando seu trabalho... É que eu queria te pedir um favor.

Miguel assentiu, sem saber exatamente o que esperar. Ela se aproximou, olhando-o nos olhos de forma direta e sincera, como se estivesse tentando decifrá-lo.

— Estou tentando entender melhor como as coisas funcionam por aqui. Minha família... Bem, eu estou com algumas terras para cuidar, e não faço a menor ideia de como começar. Achei que talvez você pudesse me mostrar, me explicar como as coisas funcionam por aqui.

Ele não sabia o que dizer. A ideia de passar tempo com ela, de tê-la ali ao seu lado, era ao mesmo tempo emocionante e assustadora. Ele se pegou desejando recusar, encontrar alguma desculpa para fugir daquela situação. Mas a forma como ela o olhava, como se realmente acreditasse que ele fosse a pessoa certa para ajudá-la, o impediu de dizer não.

— Claro... Posso te mostrar como a gente faz as coisas por aqui. Não é muita coisa, mas... — Miguel deixou as palavras desaparecerem, sentindo-se envergonhado de sua própria simplicidade.

— Vai ser mais do que o suficiente, eu garanto — respondeu ela, com um sorriso reconfortante. — E eu prometo que vou tentar não atrapalhar.

Miguel sentiu uma onda de calma passar por ele. Talvez não fosse tão difícil assim. Talvez pudesse mostrar a ela como plantar, como cuidar da terra, como respeitar o ritmo de uma vida mais simples. Talvez, só talvez, isso fosse trazer algo bom para ambos.

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Ao final do dia, Miguel se despedia de Laura com um aceno tímido, enquanto ela entrava em seu carro e partia. Ele a observou desaparecer pela estrada de lama, o coração batendo rápido demais para seu próprio gosto. Aquela tarde ao lado dela havia sido surpreendentemente agradável. Laura fazia perguntas inteligentes, ouvia com atenção, e, embora soubesse que aquilo era novo para ela, não reclamava do esforço. Pelo contrário, parecia encontrar uma espécie de prazer em aprender algo tão diferente de sua realidade.

A noite chegou, e ele se viu sentado à mesa com Dona Teresa e Mariana. O jantar era simples: feijão, arroz e carne seca. A conversa estava dispersa, como sempre, com Mariana falando de suas provas e Teresa reclamando de algum detalhe da casa. Mas algo na atmosfera havia mudado para Miguel, mesmo que ele não soubesse dizer o que era. Talvez fosse a presença de Laura que, mesmo ausente, parecia pairar sobre ele, trazendo uma sensação de esperança.

— Você está calado hoje, Miguel — Dona Teresa comentou, seus olhos afiados o estudando.

Ele deu de ombros, tentando parecer despreocupado.

— Só cansado, mãe. Nada de mais.

— Cansado de mais o quê? De novo com esses pensamentos aí? — ela insistiu, sem saber ao certo o que Miguel escondia, mas percebendo que algo diferente estava acontecendo.

Mariana olhou de relance para o irmão, com uma curiosidade mista de preocupação e interesse. Ela sabia ler Miguel como ninguém, mas optou por não pressionar. A rotina deles já era cheia de silêncio, e ela sabia que, quando ele quisesse, falaria.

Após o jantar, Miguel se retirou para o quarto, o corpo cansado do trabalho e a mente vagando para o encontro com Laura. Havia algo na maneira como ela falava com ele, como se enxergasse além da casca dura e dos erros do passado. Era uma sensação assustadora, mas também confortante, como se, de repente, houvesse alguém que acreditava que ele pudesse ser mais do que o que a cidade falava.

Ele pegou uma pequena foto que guardava escondida sob o colchão, uma lembrança do pai que não via há anos. Sempre que se sentia perdido, ele a segurava, como se buscasse algum tipo de força naquele homem que havia partido cedo demais. E naquela noite, ao olhar para a foto, Miguel sentiu algo diferente. Não era tristeza, não era raiva. Era esperança. Algo que há muito tempo ele não sentia.

E então ele se deitou, fechou os olhos, e pela primeira vez em muito tempo, a imagem que surgiu em sua mente antes de adormecer não foi do passado, mas do futuro. Um futuro incerto, é verdade, mas cheio de possibilidades. Um futuro onde ele podia ser mais do que a lama que o prendia.

E foi com esse pensamento que Miguel adormeceu, sem saber que aquela mulher, Laura, era a faísca que acenderia a chama de sua mudança.

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