Perigoso Amor
Meu nome é Hellen. Tenho 20 anos e sou uma lutadora de karatê com habilidades letais.
Desde muito nova, aprendi a me defender. Não foi por escolha — foi necessidade. Crescer em um orfanato onde os mais fracos eram sempre os primeiros a sofrer me forçou a lutar. Lembro bem de como os valentões tentavam se impor, mas eu não deixava barato. Sempre fui ágil, determinada... e brava. Eles aprenderam a não mexer comigo.
Mas há uma noite que nunca consegui apagar — ou melhor, nunca consegui lembrar por completo.
Era tarde. O céu estava coberto de nuvens pesadas, como se pressentisse o que estava por vir. De repente, tudo apagou. A energia caiu e um silêncio estranho tomou conta do orfanato. Não havia risadas, passos apressados nos corredores ou sussurros no dormitório. Só o som do vento passando pelas janelas entreabertas e o estalo distante de madeira cedendo.
Foi então que aconteceu.
Invadiram o orfanato. Lembro da sensação de frio subindo pela espinha, do cheiro de poeira e medo no ar. Levaram minhas irmãs — aquelas com quem cresci, com quem dividia sonhos e histórias antes de dormir. Mas minha mente se apaga ali. Não lembro dos rostos, nem dos gritos. Apenas um buraco em branco.
A próxima lembrança é de mim, de volta ao orfanato, parada no saguão principal. As paredes, antes coloridas com desenhos e cartazes, pareciam mais cinzentas naquele dia. Uma mulher apareceu. Ela tinha cerca de cinquenta e poucos anos, cabelos presos num coque simples e olhos cansados de quem já viveu demais. Disse que era minha tia.
Na época, eu tinha só oito anos. Não entendi tudo que estava acontecendo, só sentia que o mundo como eu conhecia havia desabado.
Hoje, doze anos depois, acabo de completar vinte. E apesar do tempo, aquela noite ainda vive em mim — não pelas memórias que ficaram, mas pelas que me foram arrancadas.
Fui para a casa dela no mesmo dia. Tudo aconteceu tão rápido que mal tive tempo de sentir. Meus pés mal tocavam o chão enquanto era levada pela mão de uma estranha que, de repente, dizia ser da minha família.
A casa dela era silenciosa, organizada demais, quase fria. Havia cheiro de produtos de limpeza, cortinas brancas que nunca se moviam, móveis escuros e reluzentes, como se ninguém realmente vivesse ali. E, de certa forma, ninguém vivia. A casa era habitada, mas não era um lar.
Minha tia — chamava-se rose — era uma mulher de poucas palavras. Nunca foi cruel, mas também nunca soube ser calorosa. Ela me alimentava, me vestia, cuidava de mim... mas era como se eu fosse apenas mais uma responsabilidade que o destino havia jogado no colo dela.
Nunca me perguntou muito sobre o que lembrava do orfanato, nem sobre minhas irmãs. Parecia desconfortável com o assunto. Quando eu insistia, ela desconversava, mudava de assunto ou simplesmente se levantava e saía da sala. Eu aprendi a engolir as perguntas. A aceitar o silêncio como resposta.
Os anos passaram em um ritmo morno. Cresci entre livros que ela me dava — ela era professora aposentada — e tardes longas onde o tédio me fazia companhia. Às vezes, ouvia ela chorando baixinho atrás da porta do quarto. Mas no dia seguinte, agia como se nada tivesse acontecido.
Ela me ensinou a cozinhar, a cuidar da casa, a estudar com disciplina. Mas nunca me abraçou. Nunca disse “vai ficar tudo bem” nos dias em que eu acordava assustada por pesadelos que nem sabia de onde vinham.
Eu me tornei independente cedo. Aos quinze, já fazia pequenos trabalhos para juntar dinheiro. Aos dezoito, quis sair de casa, mas ela pediu que eu esperasse. Não com lágrimas nos olhos, mas com uma voz mais baixa que o normal. Concordei. No fundo, eu sabia que, apesar de tudo, ela havia feito o melhor que pôde.
Hoje, ao completar vinte anos, sinto que há algo dentro de mim que ainda não foi resolvido. Como uma parte da minha história ficou presa naquela noite de apagão. E talvez, só talvez, minha tia saiba mais do que diz.
Não me lembro muito do meu passado — só da dor de terem tirado minhas irmãs de mim. Pelo pouco que consigo lembrar, minha vida nunca foi simples.
Nunca me importei com o que os outros pensam. Me chamam de arrogante, fria... Talvez seja verdade. Quebrei o braço de um garoto no fundamental por mexer comigo — desde então, virei a garota sem sentimentos.
Nunca fui de abraços ou palavras doces. Sempre vivi assim. Comecei a lutar aos seis anos e, antes mesmo de entender o que era disciplina, já colecionava troféus nas artes marciais.
Não tive muitos amigos. Hoje, moro com minha tia — pelo menos até o dia em que ela não precisar mais de mim. Quando puder me sustentar, pretendo sair e morar sozinha. Perdi meus pais quando tinha dois anos. Fui parar num orfanato, separada das minhas irmãs. Um tempo depois, minha tia me acolheu.
Com o tempo, percebi que não poderia mais viver apenas entre as paredes daquela casa silenciosa. Eu precisava de algo mais. De um lugar onde pudesse liberar tudo o que sentia, tudo o que havia engolido em silêncio por anos.
Foi assim que encontrei as lutas noturnas.
Começou por acaso. Um conhecido da escola técnica comentou sobre um “evento” clandestino que acontecia nos fundos de um galpão abandonado, nos subúrbios da cidade. Curiosa — e impulsiva — fui até lá. O cheiro de suor, metal enferrujado e adrenalina pairava no ar. A plateia era barulhenta, vibrante, viva. Diferente de tudo que eu conhecia.
Naquela primeira noite, alguém desafiou uma garota muito maior que eu. Ela hesitou, e num impulso, levantei a mão. Entrei no ringue improvisado e, pela primeira vez, senti algo que não sentia desde os meus oito anos: controle.
Meus punhos lembravam. Meu corpo se movia com uma precisão quase instintiva. Os golpes que eu aprendera por sobrevivência no orfanato agora me faziam ganhar dinheiro. Ganhei aquela luta em menos de dois minutos. Saí com o rosto arranhado, a respiração pesada e quinhentos reais no bolso.
E voltei na noite seguinte.
Desde então, participo das lutas três vezes por semana. Nunca com o mesmo nome. Eles me chamam de Brasa — uma ironia, já que sempre fui conhecida por minha frieza. Luto com disciplina, sem crueldade, mas com uma intensidade que ninguém espera de alguém do meu tamanho.
Minha tia não sabe. Ela pensa que faço plantões extras em uma biblioteca. Nunca suspeitou, ou talvez prefira não perguntar. Às vezes, chego com hematomas que disfarço com maquiagem ou longas mangas. Digo que tropecei, bati no ônibus, invento qualquer coisa. Ela apenas acena com a cabeça.
Mas as lutas me ajudam a pagar a faculdade, a guardar dinheiro para sair de casa e, mais que tudo, me lembrar de quem sou. Não a menina quieta criada em uma casa de silêncio e obrigações. Mas alguém que sobreviveu.
Alguém que está pronta para descobrir a verdade sobre o que aconteceu naquela noite, doze anos atrás.
As lutas me davam dinheiro rápido, mas não eram confiáveis. Um dia você ganha, no outro sai carregada. E com a saúde da minha tia começando a falhar, eu não podia mais contar apenas com o ringue.
Começou com pequenas crises. Tonturas, esquecimentos, tremores nas mãos. Ela dizia que era só cansaço, “coisa da idade”, mas eu sabia que era mais do que isso. Depois de muito insistir, consegui levá-la ao posto de saúde. O diagnóstico veio como um soco no estômago: hipertensão crônica, início de falência renal, e um histórico de diabetes maltratada.
Os medicamentos não eram baratos. E alguns nem estavam disponíveis pelo SUS com regularidade.
Eu sabia que precisava de um plano B.
Foi então que comecei a procurar um trabalho de meio período. Algo fixo, legalizado — um disfarce perfeito para os dias em que eu não lutava, e uma forma de garantir os remédios da tia sem depender de sorte ou risco.
...Entrei em tudo quanto foi site de empregos. Entreguei currículos em farmácias, mercados, lojas pequenas. Ninguém queria contratar uma universitária sem experiência e com horários limitados. Até que, depois de muita insistência, consegui uma vaga como atendente em uma lanchonete 24h, no centro. Turno noturno. Salário mínimo. Mas era alguma coisa....
...Era cansativo. Eu virava noites servindo hambúrgueres gordurosos e ouvindo conversas de bêbados às três da manhã. Depois ia direto pra casa, tomava um banho rápido e fingia que tinha dormido a noite toda. Às vezes, antes de sair para o trabalho, preparava o jantar da minha tia, deixava os comprimidos separados na mesinha e um bilhete com o horário de cada um....
Ela nunca me agradeceu com palavras — não era do tipo. Mas começou a me esperar acordada. Às vezes deixava uma sopa quente na cozinha ou uma manta estendida no sofá.
Era o jeito dela de dizer que estava vendo. Que, de alguma forma, se importava.
Mas eu sabia... aquilo não podia durar muito. Eu estava me dividindo entre a faculdade, as lutas e agora o trabalho. Meu corpo dava sinais de cansaço. Meus punhos doíam. Meus olhos ardiam.
E mesmo assim, eu não podia parar. Porque havia algo mais forte me guiando: a sensação de que, quando tudo desabasse — e cedo ou tarde, desabaria — eu precisaria estar pronta.
Pronta para proteger o que ainda me restava. E para descobrir, finalmente, o que o passado escondeu de mim por tanto tempo.
Agora, ela está doente. E eu preciso de um emprego.
É a minha terceira tentativa essa semana. Saio de casa com o coração apertado, mas com a mente focada.
Hellen (pensando): Foco, Hellen. Você precisa desse trabalho.
Chego à entrevista com passos firmes e olhar decidido. Respondo às perguntas com clareza, destacando o que sei fazer de melhor: lutar, resistir e não desistir. Ao final, forço um sorriso. Ao sair, deixo escapar uma risada seca — uma mistura de ironia e decepção.
Entrevistador: “Sem experiência, não posso contratar. E, sinceramente, seu histórico... não ajuda. Sinto muito, mas não posso aceitar alguém como você.”
Hellen: “Certo, então.”
Volto pra casa engolindo a frustração. Assim que entro, vou direto pro saco de pancadas. Meus punhos disparam com força, cada golpe descarregando a raiva, cada chute atingindo a imagem daquele entrevistador na minha cabeça.
Respiro fundo. Minha voz falha, mas ainda assim respondo à minha tia:
Tia: “E aí, como foi?”
Hellen: “Não consegui.”
Tia: “Você tem outra entrevista na semana que vem. Vai dar certo.”
Hellen: “Semana que vem, eu vou me sair melhor. Obrigada, tia.”
Tia: “Mas olha... você precisa parar de querer brigar com todo mundo. Assim não vai conseguir manter um emprego.”
Olho pra ela com firmeza.
Hellen: “Eu não procuro briga. Só defendo meus princípios. Vou encontrar um lugar onde valorizem quem eu sou. Se as pessoas não sabem lidar com isso, problema delas.”
Suspiro, pensando nos empregos que perdi.
Hellen: “É... meu histórico realmente não é dos melhores. Tentei, mas as pessoas são insuportáveis. Mesmo assim... eu vou me esforçar. Por você. Por mim.”
Não vejo sentido em implorar por uma vaga. O fim de semana passa e, segunda-feira, acordo determinada. Me visto, pego meu currículo e saio. O céu fecha de repente. Começa a chover.
Hellen (pensando): Sério isso? Chegar encharcada? É piada do destino?
Molhada e irritada, chego à empresa. A recepcionista me recebe com um sorriso mecânico.
Recepcionista: “Bem-vinda. A chefe está lá em cima. Pode subir pelo elevador.”
Respiro fundo. Entro na sala com o máximo de confiança que consigo reunir. Cumprimento a mulher à minha frente com um leve sorriso e um aperto de mão firme.
Chefe: “Sente-se. Então, Hellen... Qual seu interesse em trabalhar aqui? Seu currículo mostra que você foi demitida três vezes só este ano.”
Ajeito minha postura, segura, mas com um leve frio na barriga.
Hellen: “Senhora, é verdade. Enfrentei situações difíceis. Mas aprendi com todas elas. Estou determinada a mostrar meu comprometimento, dedicação e, acima de tudo, que posso evoluir.”
Pauso. Olho nos olhos dela.
Hellen: “Sendo honesta... eu errei. Não fui a profissional que deveria ser. Mas estou aqui porque quero mudar isso. Quero mostrar que posso ser diferente. Responsável. Dedicada.”
Ela me observa em silêncio por alguns segundos.
Chefe: “Entendo. Vou considerar o que disse. Dou uma resposta em dois dias.”
Agradeço e saio da sala com uma mistura de esperança e ansiedade. Agora, é esperar. E torcer para que, dessa vez, o mundo finalmente reconheça que eu mereço uma chance.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 57
Comments
Vanessa Brunner Milantonio Silva
fotos
2025-06-15
0
Celia Aparecida
interessante
2025-06-11
0