Meu nome é Hellen. Tenho 20 anos e sou uma lutadora de karatê com habilidades letais.
Desde muito nova, aprendi a me defender. Não foi por escolha — foi necessidade. Crescer em um orfanato onde os mais fracos eram sempre os primeiros a sofrer me forçou a lutar. Lembro bem de como os valentões tentavam se impor, mas eu não deixava barato. Sempre fui ágil, determinada... e brava. Eles aprenderam a não mexer comigo.
Mas há uma noite que nunca consegui apagar — ou melhor, nunca consegui lembrar por completo.
Era tarde. O céu estava coberto de nuvens pesadas, como se pressentisse o que estava por vir. De repente, tudo apagou. A energia caiu e um silêncio estranho tomou conta do orfanato. Não havia risadas, passos apressados nos corredores ou sussurros no dormitório. Só o som do vento passando pelas janelas entreabertas e o estalo distante de madeira cedendo.
Foi então que aconteceu.
Invadiram o orfanato. Lembro da sensação de frio subindo pela espinha, do cheiro de poeira e medo no ar. Levaram minhas irmãs — aquelas com quem cresci, com quem dividia sonhos e histórias antes de dormir. Mas minha mente se apaga ali. Não lembro dos rostos, nem dos gritos. Apenas um buraco em branco.
A próxima lembrança é de mim, de volta ao orfanato, parada no saguão principal. As paredes, antes coloridas com desenhos e cartazes, pareciam mais cinzentas naquele dia. Uma mulher apareceu. Ela tinha cerca de cinquenta e poucos anos, cabelos presos num coque simples e olhos cansados de quem já viveu demais. Disse que era minha tia.
Na época, eu tinha só oito anos. Não entendi tudo que estava acontecendo, só sentia que o mundo como eu conhecia havia desabado.
Hoje, doze anos depois, acabo de completar vinte. E apesar do tempo, aquela noite ainda vive em mim — não pelas memórias que ficaram, mas pelas que me foram arrancadas.
Fui para a casa dela no mesmo dia. Tudo aconteceu tão rápido que mal tive tempo de sentir. Meus pés mal tocavam o chão enquanto era levada pela mão de uma estranha que, de repente, dizia ser da minha família.
A casa dela era silenciosa, organizada demais, quase fria. Havia cheiro de produtos de limpeza, cortinas brancas que nunca se moviam, móveis escuros e reluzentes, como se ninguém realmente vivesse ali. E, de certa forma, ninguém vivia. A casa era habitada, mas não era um lar.
Minha tia — chamava-se rose — era uma mulher de poucas palavras. Nunca foi cruel, mas também nunca soube ser calorosa. Ela me alimentava, me vestia, cuidava de mim... mas era como se eu fosse apenas mais uma responsabilidade que o destino havia jogado no colo dela.
Nunca me perguntou muito sobre o que lembrava do orfanato, nem sobre minhas irmãs. Parecia desconfortável com o assunto. Quando eu insistia, ela desconversava, mudava de assunto ou simplesmente se levantava e saía da sala. Eu aprendi a engolir as perguntas. A aceitar o silêncio como resposta.
Os anos passaram em um ritmo morno. Cresci entre livros que ela me dava — ela era professora aposentada — e tardes longas onde o tédio me fazia companhia. Às vezes, ouvia ela chorando baixinho atrás da porta do quarto. Mas no dia seguinte, agia como se nada tivesse acontecido.
Ela me ensinou a cozinhar, a cuidar da casa, a estudar com disciplina. Mas nunca me abraçou. Nunca disse “vai ficar tudo bem” nos dias em que eu acordava assustada por pesadelos que nem sabia de onde vinham.
Eu me tornei independente cedo. Aos quinze, já fazia pequenos trabalhos para juntar dinheiro. Aos dezoito, quis sair de casa, mas ela pediu que eu esperasse. Não com lágrimas nos olhos, mas com uma voz mais baixa que o normal. Concordei. No fundo, eu sabia que, apesar de tudo, ela havia feito o melhor que pôde.
Hoje, ao completar vinte anos, sinto que há algo dentro de mim que ainda não foi resolvido. Como uma parte da minha história ficou presa naquela noite de apagão. E talvez, só talvez, minha tia saiba mais do que diz.
Não me lembro muito do meu passado — só da dor de terem tirado minhas irmãs de mim. Pelo pouco que consigo lembrar, minha vida nunca foi simples.
Nunca me importei com o que os outros pensam. Me chamam de arrogante, fria... Talvez seja verdade. Quebrei o braço de um garoto no fundamental por mexer comigo — desde então, virei a garota sem sentimentos.
Nunca fui de abraços ou palavras doces. Sempre vivi assim. Comecei a lutar aos seis anos e, antes mesmo de entender o que era disciplina, já colecionava troféus nas artes marciais.
Não tive muitos amigos. Hoje, moro com minha tia — pelo menos até o dia em que ela não precisar mais de mim. Quando puder me sustentar, pretendo sair e morar sozinha. Perdi meus pais quando tinha dois anos. Fui parar num orfanato, separada das minhas irmãs. Um tempo depois, minha tia me acolheu.
Com o tempo, percebi que não poderia mais viver apenas entre as paredes daquela casa silenciosa. Eu precisava de algo mais. De um lugar onde pudesse liberar tudo o que sentia, tudo o que havia engolido em silêncio por anos.
Foi assim que encontrei as lutas noturnas.
Começou por acaso. Um conhecido da escola técnica comentou sobre um “evento” clandestino que acontecia nos fundos de um galpão abandonado, nos subúrbios da cidade. Curiosa — e impulsiva — fui até lá. O cheiro de suor, metal enferrujado e adrenalina pairava no ar. A plateia era barulhenta, vibrante, viva. Diferente de tudo que eu conhecia.
Naquela primeira noite, alguém desafiou uma garota muito maior que eu. Ela hesitou, e num impulso, levantei a mão. Entrei no ringue improvisado e, pela primeira vez, senti algo que não sentia desde os meus oito anos: controle.
Meus punhos lembravam. Meu corpo se movia com uma precisão quase instintiva. Os golpes que eu aprendera por sobrevivência no orfanato agora me faziam ganhar dinheiro. Ganhei aquela luta em menos de dois minutos. Saí com o rosto arranhado, a respiração pesada e quinhentos reais no bolso.
E voltei na noite seguinte.
Desde então, participo das lutas três vezes por semana. Nunca com o mesmo nome. Eles me chamam de Brasa — uma ironia, já que sempre fui conhecida por minha frieza. Luto com disciplina, sem crueldade, mas com uma intensidade que ninguém espera de alguém do meu tamanho.
Minha tia não sabe. Ela pensa que faço plantões extras em uma biblioteca. Nunca suspeitou, ou talvez prefira não perguntar. Às vezes, chego com hematomas que disfarço com maquiagem ou longas mangas. Digo que tropecei, bati no ônibus, invento qualquer coisa. Ela apenas acena com a cabeça.
Mas as lutas me ajudam a pagar a faculdade, a guardar dinheiro para sair de casa e, mais que tudo, me lembrar de quem sou. Não a menina quieta criada em uma casa de silêncio e obrigações. Mas alguém que sobreviveu.
Alguém que está pronta para descobrir a verdade sobre o que aconteceu naquela noite, doze anos atrás.
As lutas me davam dinheiro rápido, mas não eram confiáveis. Um dia você ganha, no outro sai carregada. E com a saúde da minha tia começando a falhar, eu não podia mais contar apenas com o ringue.
Começou com pequenas crises. Tonturas, esquecimentos, tremores nas mãos. Ela dizia que era só cansaço, “coisa da idade”, mas eu sabia que era mais do que isso. Depois de muito insistir, consegui levá-la ao posto de saúde. O diagnóstico veio como um soco no estômago: hipertensão crônica, início de falência renal, e um histórico de diabetes maltratada.
Os medicamentos não eram baratos. E alguns nem estavam disponíveis pelo SUS com regularidade.
Eu sabia que precisava de um plano B.
Foi então que comecei a procurar um trabalho de meio período. Algo fixo, legalizado — um disfarce perfeito para os dias em que eu não lutava, e uma forma de garantir os remédios da tia sem depender de sorte ou risco.
...Entrei em tudo quanto foi site de empregos. Entreguei currículos em farmácias, mercados, lojas pequenas. Ninguém queria contratar uma universitária sem experiência e com horários limitados. Até que, depois de muita insistência, consegui uma vaga como atendente em uma lanchonete 24h, no centro. Turno noturno. Salário mínimo. Mas era alguma coisa....
...Era cansativo. Eu virava noites servindo hambúrgueres gordurosos e ouvindo conversas de bêbados às três da manhã. Depois ia direto pra casa, tomava um banho rápido e fingia que tinha dormido a noite toda. Às vezes, antes de sair para o trabalho, preparava o jantar da minha tia, deixava os comprimidos separados na mesinha e um bilhete com o horário de cada um....
Ela nunca me agradeceu com palavras — não era do tipo. Mas começou a me esperar acordada. Às vezes deixava uma sopa quente na cozinha ou uma manta estendida no sofá.
Era o jeito dela de dizer que estava vendo. Que, de alguma forma, se importava.
Mas eu sabia... aquilo não podia durar muito. Eu estava me dividindo entre a faculdade, as lutas e agora o trabalho. Meu corpo dava sinais de cansaço. Meus punhos doíam. Meus olhos ardiam.
E mesmo assim, eu não podia parar. Porque havia algo mais forte me guiando: a sensação de que, quando tudo desabasse — e cedo ou tarde, desabaria — eu precisaria estar pronta.
Pronta para proteger o que ainda me restava. E para descobrir, finalmente, o que o passado escondeu de mim por tanto tempo.
Agora, ela está doente. E eu preciso de um emprego.
É a minha terceira tentativa essa semana. Saio de casa com o coração apertado, mas com a mente focada.
Hellen (pensando): Foco, Hellen. Você precisa desse trabalho.
Chego à entrevista com passos firmes e olhar decidido. Respondo às perguntas com clareza, destacando o que sei fazer de melhor: lutar, resistir e não desistir. Ao final, forço um sorriso. Ao sair, deixo escapar uma risada seca — uma mistura de ironia e decepção.
Entrevistador: “Sem experiência, não posso contratar. E, sinceramente, seu histórico... não ajuda. Sinto muito, mas não posso aceitar alguém como você.”
Hellen: “Certo, então.”
Volto pra casa engolindo a frustração. Assim que entro, vou direto pro saco de pancadas. Meus punhos disparam com força, cada golpe descarregando a raiva, cada chute atingindo a imagem daquele entrevistador na minha cabeça.
Respiro fundo. Minha voz falha, mas ainda assim respondo à minha tia:
Tia: “E aí, como foi?”
Hellen: “Não consegui.”
Tia: “Você tem outra entrevista na semana que vem. Vai dar certo.”
Hellen: “Semana que vem, eu vou me sair melhor. Obrigada, tia.”
Tia: “Mas olha... você precisa parar de querer brigar com todo mundo. Assim não vai conseguir manter um emprego.”
Olho pra ela com firmeza.
Hellen: “Eu não procuro briga. Só defendo meus princípios. Vou encontrar um lugar onde valorizem quem eu sou. Se as pessoas não sabem lidar com isso, problema delas.”
Suspiro, pensando nos empregos que perdi.
Hellen: “É... meu histórico realmente não é dos melhores. Tentei, mas as pessoas são insuportáveis. Mesmo assim... eu vou me esforçar. Por você. Por mim.”
Não vejo sentido em implorar por uma vaga. O fim de semana passa e, segunda-feira, acordo determinada. Me visto, pego meu currículo e saio. O céu fecha de repente. Começa a chover.
Hellen (pensando): Sério isso? Chegar encharcada? É piada do destino?
Molhada e irritada, chego à empresa. A recepcionista me recebe com um sorriso mecânico.
Recepcionista: “Bem-vinda. A chefe está lá em cima. Pode subir pelo elevador.”
Respiro fundo. Entro na sala com o máximo de confiança que consigo reunir. Cumprimento a mulher à minha frente com um leve sorriso e um aperto de mão firme.
Chefe: “Sente-se. Então, Hellen... Qual seu interesse em trabalhar aqui? Seu currículo mostra que você foi demitida três vezes só este ano.”
Ajeito minha postura, segura, mas com um leve frio na barriga.
Hellen: “Senhora, é verdade. Enfrentei situações difíceis. Mas aprendi com todas elas. Estou determinada a mostrar meu comprometimento, dedicação e, acima de tudo, que posso evoluir.”
Pauso. Olho nos olhos dela.
Hellen: “Sendo honesta... eu errei. Não fui a profissional que deveria ser. Mas estou aqui porque quero mudar isso. Quero mostrar que posso ser diferente. Responsável. Dedicada.”
Ela me observa em silêncio por alguns segundos.
Chefe: “Entendo. Vou considerar o que disse. Dou uma resposta em dois dias.”
Agradeço e saio da sala com uma mistura de esperança e ansiedade. Agora, é esperar. E torcer para que, dessa vez, o mundo finalmente reconheça que eu mereço uma chance.
O céu cinzento cobria a pequena cidade encravada entre as montanhas, como se já pressentir os acontecimentos daquele dia. Hellen caminhava pelas ruas estreitas após uma trilha leve fora do roteiro turístico. Estava distraída com os sons das folhas e o cheiro de terra úmida quando tudo mudou.
Uma mulher surgiu, desesperada, tropeçando em direção a ela.
— Moça, por favor, ajude-me! Tem um homem me seguindo. Eu não o conheço... estou com muito medo — suplicou, ofegante.
O olhar de Hellen percorreu os arredores com rapidez. Um homem de expressão tensa se aproximava, olhando fixamente para as duas.
— Fique calma — disse ela, firme, tomando o controle da situação. — Vamos nos afastar. Rápido!
Apontou para uma loja adiante e puxou a mulher pela mão. Assim que entraram, se encolheram entre os corredores.
— Se ficarmos aqui por um tempo, ele deve ir embora. Mas precisamos ser discretas — sussurrou Hellen.
Alguns minutos depois, a mulher pediu que Hellen a acompanhasse até sua casa, ali perto. Relutante, ela concordou. Olhou discretamente por cima do ombro — não havia sinal do perseguidor.
— Acho que ele desistiu… Mas se ele continuar te seguindo, chame a polícia. Você precisa denunciar isso — aconselhou.
Contudo, mal haviam deixado a loja quando o homem ressurgiu, desta vez andando com passos largos e decididos.
— Ele não desiste! — murmurou Hellen, puxando a mulher. — Vamos por aquele beco!
Atravessaram uma viela estreita, mas era tarde. Alguém agarrou Hellen por trás, com força. O instinto falou mais alto: ela girou o corpo e desferiu um chute preciso na perna do agressor.
— Você não vai me pegar tão fácil! — rosnou.
— Calma… não vou machucar você, só faça o que mandamos — disse o homem, com um sorriso sombrio.
Quando ele avançou, Hellen reagiu sem hesitar. Um golpe certeiro nas partes íntimas o fez cambalear, soltando um gemido abafado de dor. Mas não houve tempo para respirar. Um segundo homem surgiu das sombras e a agarrou pelo pescoço, tentando imobilizá-la.
Com agilidade, Hellen se desvencilhou do aperto, torcendo o corpo em um movimento rápido. Usou o impulso para derrubá-lo com violência. O baque foi seco — e o estalo que veio em seguida denunciou o braço fraturado do homem ao atingir o chão.
Sem perder tempo, ela correu, mergulhando na penumbra do local. Encontrou abrigo em um canto escuro, onde a luz mal tocava. O coração disparado, a respiração controlada. Esperou.
Os dois homens passaram apressados, distraídos, vasculhando o lugar.
Era a oportunidade perfeita.
Silenciosa como uma sombra, Hellen surgiu por trás de um deles. Um golpe preciso na base do pescoço e o corpo tombou sem emitir som. Frio. Rápido. Letal.
Mas a vitória durou pouco.
Uma nova presença emergiu da escuridão. Uma mulher. Inteiramente vestida de preto, os olhos ocultos por uma máscara. Seus movimentos eram calculados, felinos — e seu olhar, mesmo invisível, emanava uma frieza cortante.
Antes que Hellen pudesse reagir, ela atacou.
A luta foi brutal. Golpes trocados com precisão. Hellen defendeu-se com tudo que sabia, cada fibra de seu corpo em alerta, cada reflexo testado ao limite. Mas a oponente era diferente. Mais experiente. Implacável.
Um último golpe — rápido e certeiro — atingiu Hellen na cabeça. A dor foi instantânea, e o mundo ao seu redor se dissolveu em trevas.
Foi então que ela se moveu.
Rápida como uma sombra, se lançou sobre um dos homens, aplicando um golpe silencioso e letal no pescoço. O corpo desabou sem um ruído. Era uma vitória — ou parecia ser.
Mas então, algo mudou.
Do escuro, uma nova presença surgiu. Silenciosa. Precisa. Uma mulher vestida inteiramente de preto, com movimentos que lembravam os de um predador. Seus olhos, ocultos sob a máscara, pareciam analisá-la como quem já conhecia cada um de seus passos.
Hellen mal teve tempo de reagir. O ataque veio como uma onda — feroz, calculado, impiedoso.
A luta foi violenta. Hellen resistiu, bloqueou, atacou, mas cada golpe parecia ser previsto pela adversária. E quando por fim foi atingida na cabeça, tudo escureceu num segundo.
Antes de perder os sentidos, ouviu apenas uma voz baixa, cortante, próxima ao seu ouvido:
— Isso é pelo que você nos deve, Hellen. Já passou da hora de pagar.
Espera... não era pra machucar ela desse jeito!
Hellen tentou focar, tentou entender. Mas tudo já estava se desfazendo.
A última coisa que sentiu foi o som distante de passos e uma mão tocando seu rosto com delicadeza inesperada.
Depois, o vazio.
E então, o mundo desapareceu.
Ela caiu. E tudo ficou em silêncio.
O mundo mergulhou em trevas.
Quando recobrou os sentidos, estava sendo carregada nos braços de um homem desconhecido. A visão ainda embaçada, a cabeça latejando.
— O que aconteceu...? E aquelas pessoas...? — murmurou.
— Fugiram — disse ele, colocando-a no chão. — Você está segura agora.
Antes que ela pudesse questionar mais, o homem desapareceu tão misteriosamente quanto havia aparecido.
Confusa e exausta, Hellen reuniu forças para voltar para casa. Sua tia a esperava, inconsciente do que acabara de acontecer.
No caminho, um pensamento insistente a assombrava:
— Espero que aquela mulher que ajudei esteja bem…
Quando recobrou os sentidos, Hellen sentiu o balanço suave de um corpo em movimento. Estava sendo carregada — nos braços de um homem que não reconhecia. Sua visão ainda estava turva, e a cabeça latejava como se tivesse sido atingida por uma marreta.
— O... que aconteceu...? E aquelas pessoas...? — murmurou, a voz fraca, como se tivesse sido arrancada do fundo do peito.
— Fugiram — respondeu ele, com calma. A voz era grave, mas gentil. — Você está segura agora.
Ele a colocou no chão com cuidado, evitando fazer barulho, como se temesse chamar atenção. Hellen tentou fixar os olhos em seu rosto, mas a escuridão e o torpor a impediam. Antes que pudesse fazer qualquer pergunta, o homem deu um passo para trás... e desapareceu nas sombras.
Como se nunca tivesse estado ali.
Atordoada e ainda fraca, Hellen precisou reunir tudo o que lhe restava de força para caminhar de volta para casa. Cada passo era uma luta contra a dor, contra o frio que agora parecia vir de dentro dela. Quando finalmente cruzou a porta, sua tia dormia no sofá, respirando devagar, alheia ao caos da noite.
Enquanto trocava de roupa e se deitava, um pensamento incômodo se infiltrava em sua mente:
“Espero que aquela mulher que eu ajudei esteja bem…”
Ela não conseguia lembrar exatamente por que, nem quem era. Apenas a sensação persistente de que algo estava fora do lugar. Como uma peça solta que, cedo ou tarde, cobraria seu lugar.
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Na manhã seguinte, Hellen forçou-se a levantar. Precisava seguir em frente, mesmo que o corpo gritasse o contrário. Tinha uma entrevista de emprego. Um passo importante para ajudar sua tia... e talvez se afastar daquela vida dupla que começava a pesar.
Vestiu-se com cuidado, disfarçando os hematomas com maquiagem e mangas longas. Amarrou os cabelos de um jeito que cobrisse o corte na testa. Olhou-se no espelho e tentou encontrar ali uma versão de si mesma que parecesse normal. Confiável.
Mas a entrevista, que deveria representar um recomeço, transformou-se em outra ferida aberta.
A entrevistadora, uma mulher de fala firme e olhos atentos, examinava o currículo de Hellen com mais frieza do que ela esperava. Depois de algumas perguntas protocolares, soltou uma frase que a fez congelar na cadeira:
— Você acha que, com o seu histórico, alguém vai confiar em você?
Hellen engoliu em seco.
— Do que está falando?
— Dossiês são mais fáceis de acessar do que você imagina. — A mulher pousou os papéis sobre a mesa com firmeza. — Você pode dizer que mudou, mas o que fez continua lá. Registrado.
Mesmo com uma promessa vaga de “reconsideração futura”, Hellen saiu da sala como se tivesse sido empurrada para fora de um abismo.
Andou pelas ruas em silêncio, cada passo carregando mais dúvidas do que o anterior.
E ali, entre ruídos da cidade, buzinas e passos apressados, crescia dentro dela uma certeza inevitável:
“Nada mais será como antes.”
Antes de chegar em casa, Hellen sentiu aquele incômodo familiar — um arrepio na nuca, como se algo invisível a tocasse. Seus passos desaceleraram. Olhou discretamente ao redor, tentando identificar a origem da sensação. Nada.
“Vou me misturar à multidão... preciso despistar. Não posso ser descoberta.”
Tentou afastar o pensamento, racionalizar.
“Que estranho... eu realmente senti que alguém me observava. Deve ser coisa da minha cabeça. Preciso chegar em casa logo.”
Ao atravessar o portão de casa, foi recebida pela voz preocupada da tia, que a esperava na sala.
— Querida, onde você estava? Fiquei preocupada. Nem me avisou para onde ia!
— Desculpa, tia. Eu estava... ajudando uma pessoa. Por isso demorei.
Sem prolongar o assunto, Hellen subiu direto para o quarto.
“Preciso de um banho... Hoje foi um dia estressante. Ainda não consegui um emprego, e semana que vem tem outra entrevista. Que saco! Não vejo sentido nenhum em implorar para alguém me contratar.”
O fim de semana passou rápido. Na segunda-feira, Hellen se arrumou cedo, escolhendo uma roupa sóbria e tentando manter os cabelos controlados — como se pudesse disfarçar o turbilhão interno com aparência de calma.
No caminho para a entrevista, começou a chover. Ela resmungou, puxando a jaqueta para cobrir a cabeça.
— Que droga... Vou ficar encharcada. Começar a chover agora? Só pode ser piada.
Ao chegar à empresa, foi recebida por uma recepcionista sorridente.
— Seja bem-vinda! A chefe está no andar de cima. É só pegar o elevador.
Hellen agradeceu com um leve aceno e seguiu. Quando entrou na sala, cumprimentou a chefe com um sorriso contido e um aperto de mão firme, tentando demonstrar confiança.
— Sente-se — disse a mulher. — Qual o seu interesse em trabalhar aqui? Pelo que vi no seu currículo, você foi demitida três vezes só este ano.
Hellen ajeitou a postura. A pergunta doía, mas ela decidiu encarar de frente.
— Senhora, é verdade que passei por momentos difíceis. Mas aprendi muito com cada experiência. Estou determinada a mostrar meu comprometimento, minha dedicação e as habilidades que adquiri.
Ela respirou fundo.
— Para ser franca, eu não me comportei como uma profissional adequada antes. Mas agora quero aprender, assumir minhas responsabilidades e evoluir. Tenho experiências que podem ser úteis para sua empresa.
A chefe a observou por alguns segundos silenciosos.
— Eu posso acreditar em você. Darei uma resposta dentro de dois dias.
Hellen agradeceu, e ao sair da sala, pela primeira vez em muito tempo, sentiu um fio de esperança acender dentro do peito.
Mas a sensação durou pouco.
Ao virar a esquina de casa, viu o carro da polícia estacionado em frente ao portão. O estômago se revirou.
— O quê...? O que está acontecendo...? Melhor não entrar agora...
Recuou, rápida, e se virou para correr — mas um dos policiais notou. Começou a segui-la.
Ela acelerou, o coração disparado, desviando de pessoas e obstáculos pelas ruas molhadas.
— Vou ter que me esconder... — murmurou, ofegante. — Que nojo... mas não tenho opção.
Jogou-se atrás de uma lixeira num beco estreito. Tapou o nariz com a manga do casaco. O cheiro era insuportável, mas o silêncio salvava. Esperou ali até os passos sumirem.
Quando julgou seguro, saiu com cuidado. Mal deu dois passos e uma mão firme a agarrou pelo braço.
— Me solta! — gritou, virando-se para reagir — mas parou ao ver o rosto do homem.
— Por aqui — disse ele, guiando-a com urgência. — Este lugar está abandonado. Você pode se esconder ali.
— Espera... é você! O cara que me carregou naquele dia! Por que está me segurando assim?
— Desculpa — respondeu ele, soltando-a. O olhar era sereno, mas alerta.
Ela hesitou, desconfiada, mas o seguiu para dentro do prédio velho.
— Não vou te machucar — disse ele. — Eu sei que você sabe se defender. Eu vi quando bateu naqueles caras.
— Então... você estava me seguindo?
— Não. Só passei por ali. Eles estavam te agredindo.
Hellen cruzou os braços, sem disfarçar o ceticismo.
— Suspeito. Vou ficar de olho em você. Agora me diga: o que está fazendo aqui?
Antes que ele respondesse, ele sussurrou:
— Silêncio. Alguém está vindo.
Ambos se calaram e subiram com cuidado por uma escada lateral. Logo, um casal entrou no prédio, rindo e trocando carícias.
— Sério isso? — murmurou Hellen, revirando os olhos.
Um feixe de luz atravessou a janela quebrada e iluminou o rosto do desconhecido. Ela o observou por um momento mais longo do que gostaria. Havia algo no olhar dele… força contida e algo quebrado. Beleza, sim. Mas também dor.
Desviou o olhar, desconcertada.
“Estranho... nem o conheço.”
— Desculpa por isso — murmurou ele.
Ambos ficaram em silêncio por alguns segundos. Hellen quebrou o clima:
— Desculpa pelo susto.
— Tudo bem. Mas... a polícia está atrás de você? Por quê?
Ela o encarou, firme. Depois de um instante de hesitação:
— Isso não importa agora. Temos que sair daqui.
— Não podemos sair assim. Você precisa de um disfarce — disse ele, tirando o chapéu e o moletom. — Vista isso. Se quiser segurança… venha comigo.
Hellen segurou o moletom por alguns segundos, sem vesti-lo. Seus olhos ainda avaliavam o desconhecido à sua frente. Cada detalhe — o jeito como ele mantinha a voz baixa, os olhos atentos aos sons do ambiente, a postura firme, mas não ameaçadora.
“Por que ele me ajudaria? Por que estaria ali... justo naquele momento?”
Ela inspirou fundo. Estava cansada de fugir sozinha.
— Tá bom — disse, finalmente. — Mas só por agora.
Vestiu o moletom e puxou o capuz sobre os cabelos. Ele a observava em silêncio, como se respeitasse o tempo dela.
— Você não me disse seu nome — comentou ela, ainda cautelosa.
— Luke — respondeu, direto. — E você?
— Hellen.
— Eu sei.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Claro que sabe. Estava me espionando.
Ele sorriu, pela primeira vez. Foi breve, mas real. Um tipo de sorriso que não servia como charme, mas como alívio — como quem se permite abaixar a guarda por um segundo.
— Estava protegendo — corrigiu ele. — Alguém precisava fazer isso.
Hellen cruzou os braços, cética.
— Você sempre salva garotas em beco sem saída?
— Só quando parecem perigosas.
Ela riu, de leve, e pela primeira vez sentiu o peso do dia diminuir. Mesmo assim, os olhos dela voltaram ao alerta.
— Luke… se vai me ajudar, preciso saber no que estou me metendo. Quem eram aqueles homens? E por que a polícia está na minha porta?
Ele hesitou. Caminhou até a janela quebrada e olhou para a rua, avaliando o movimento.
— Não é seguro aqui. Mas eu prometo... vou te contar tudo o que sei. Só preciso que confie em mim por um pouco mais de tempo.
— Confiança não é meu forte — murmurou ela.
— Também não era o meu — disse Luke, sem virar o rosto. — Até conhecer alguém que me salvou... e desapareceu antes que eu pudesse agradecer.
Hellen o olhou, surpresa. Ele ainda encarava a rua, mas ela percebia: havia mais naquela história.
— Foi você? — ela perguntou, de repente. — A mulher que eu ajudei… era ela importante pra você?
Luke assentiu, sem dizer nada.
O silêncio entre os dois ficou mais denso. Não era vazio — era um pacto silencioso, nascido da dor e da sobrevivência.
Hellen respirou fundo.
— Tá. Eu vou com você. Mas se mentir pra mim… eu acabo com você.
Luke olhou para ela. O sorriso voltou, agora com algo entre respeito e admiração.
— Combinado.
E então, lado a lado, eles deixaram o prédio abandonado. Hellen não sabia para onde estavam indo. Mas pela primeira vez em dias, sentia que não estava sozinha.
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