3. AMIZADE

Enquanto Selene se acomodava em meu quarto, colocando algumas peças de suas roupas nos cabides vazios do meu guarda-roupa, eu colocava um esparadrapo no meu pé machucado, mas como nunca tinha feito isso antes, desisti após várias tentativas de abri-lo e o larguei sobre a cama.

— Deixa eu te mostrar como se faz — disse Selene, apanhando o curativo.

Ela tinha uma habilidade incrível. Pôs com facilidade o esparadrapo no meu pé, e isso fez cocegas, além das que ela fez propositalmente.

— Para, Selene.

Atirei um travesseiro nela.

— É assim que agradece uma pessoa que te ajuda?

Ela lançou a almofada de volta, e eu a agarrei como um goleiro de futebol.

— Você é muito ruim de mira, sabia?

— Não tente mudar a conversa.

— Está bem, enfermeira Selene, muito obrigada! Satisfeita?

— Bem melhor do que ficar atirando travesseiro nos outros.

— Desculpa por isso, mas foi você quem começou.

Ela me encarou, mostrando sua língua. Selene estava mais à vontade do que imaginei. Fingimos uma briga e rolamos sobre a cama. Paramos lado a lado e, olhando para o teto forrado de cor branca, recuperamos o ar e sorrimos com a nossa brincadeira.

— Você é tão infantil, Mary.

— Olha quem fala. A garota dos videogames.

— Não tem nada de infantil em gostar de jogos eletrônicos.

— Mas os que você gosta são bem infantis.

— Só porque não têm violência, não significa que sejam infantis. Sabe muito bem que não gosto de sangue ou coisas que contenham violência e terror.

— Ah! — suspirei em tom de desapontamento. — Pensei que íamos assistir “O cão zumbir” esta noite...

— Deus me livre, Mary! Você não vai ver isso, não é?

— Não seja medrosa, Selene. É só um filme inofensivo. Ninguém vai comer sua perna se assisti-lo.

— Não, e não quero. Se insistir, eu vou embora.

— Calma, foi só uma brincadeira. Você nem parece uma mulher de dezoito anos.

— E o que a idade tem a ver com o medo? Não é verdade que até hoje você tem medo do seu pai?

Essa pergunta me pegou desprevenida. Senti uma repentina explosão de emoções no peito. Meus olhos se encheram de lágrimas e por muito pouco não escorreram pelo meu rosto pálido.

— Meninas, o jantar está servido.

A voz da minha mãe rompeu o silêncio pairando sobre mim e Selene. Descemos para jantar. Eu mancava um pouco devido à dor em meu pé.

Minha mãe reclamou novamente a ausência dos meus calçados, e eu justifiquei dizendo que tinha esquecido no quarto, mas que dá próxima vez lembraria de calçá-los. Após o delicioso jantar, voltamos para o quarto.

Selene vestiu seu pijama de dormir. Parecia muito infantil para mim. Cheio de florezinhas e arco-íris. Mostrei a ela o meu pijama escuro de alças finas e com bordas de renda transparente.

— Quando comprou esse vestido, Mary?

— Lembra do nosso último passeio do colegial?

— Sim, mas você não foi, justificando que seus pais não te deram dinheiro para ir.

— Pois é, eu menti para você também.

— Mary, fizemos o juramento da verdade, de nunca mentir uma para a outra — seu tom de voz expressou indignação. — Esqueceu-se disso?

— Desculpa, Selene. Foi só daquela vez, juro que nunca mais menti para você após aquele dia.

— Hum? Vou acreditar em você desta vez, mas só vou te perdoar se me deixar dormir na sua cama.

— Claro. Ela é toda sua esta noite.

— Oba!

Selene ficou tão animada em dormir na minha cama do que no colchão ao lado que saltou sobre o móvel, quebrando as pernas de madeira.

O barulho ecoou pela casa, e minha mãe gritou de susto. Agora tanto eu quanto ela íamos dormir praticamente na mesma altura. Fiquei muito irritada com ela. Começamos a discutir.

— Olha o que fez.

— Desculpa, Mary.

— Selene, você me deve uma cama nova.

— Não te devo nada.

— Me deve sim!

— Não devo!

— Deve sim!

— Para, Mary, ou vou contar a verdade desse seu vestido para sua mãe.

— Que verdade, Selene?

Minha mãe chegou no exato momento em que Selene ameaçou revelar a verdade sobre eu faltar no último passeio do colegial para usar o dinheiro a favor dos meus desejos.

— Posso saber o que está acontecendo aqui? — insistiu minha mãe.

— Selene quebrou minha cama — apontei o móvel quebrado.

— Foi sem querer, senhora.

Selene quase chorou, e isso me fez pensar se não fui grosseira demais com ela.

— Não se preocupe, querida, foi só uma cama.

— Foi a minha cama — murmurei.

— Mary, não seja insensível com a sua amiga — repreendeu minha mãe. — Acidentes acontecem, e o importante é que vocês duas estão bem. Nossa, levei um baita susto na cozinha quando ouvi aquele barulho vindo daqui.

— Obrigada, senhora!

Minha mãe abraçou Selene e a confortou. Além de quebrar a minha cama, ela recebeu carinhos como se nada tivesse acontecido. Talvez eu estivesse sim com ciúmes, além de muito brava, mas e agora quem ia consertar o prejuízo? Meu pai não estava em casa para fazer isso.

Fiquei ainda mais revoltada por esse episódio ter me feito lembrar dele. Ele sempre foi um bom marceneiro, eletricista, pedreiro e diversas outras funções. Ele era bom em um pouco de tudo, exceto no amor, na empatia, na bondade.

Meu pai ficou marcado em minha mente como um monstro, e eu nunca esquecerei que foi ele quem matou o meu Toddy, meu querido Toddy.

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Comments

ARMINDA

ARMINDA

PRONTO CAMA QUEBRADA AS. DUAS DORMINDO NO CHÃO.

2023-10-01

1

Ana Cristina

Ana Cristina

Só não era um bom pai, um bom marido....

2023-08-27

0

Ana Cristina

Ana Cristina

Eu topo 🥰🥰🥰🥰🥰🥰

2023-08-27

0

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