Depois de pagar o taxista, Syara respirou fundo antes de encarar Damian. Ele observava o prédio velho como se tentasse decifrar onde havia se metido. Algumas janelas quebradas, tinta descascada, a fachada cansada — tudo parecia falar da vida modesta que Syara levava. Mas o que poderia dizer a respeito? Ele sequer se lembrava de como era sua própria vida.
— Eu sei… não é grande coisa — ela disse, soltando um sorriso sem graça, como se quisesse se desculpar por não poder oferecer mais. — É só por um tempo. Logo você vai se recuperar e… vai seguir em frente.
Damian não respondeu de imediato. A cadeira de rodas parecia ainda menor debaixo dele, as mãos pesadas sobre os joelhos. Por dentro, ele se sentia sufocado — não lembrava sequer de onde vinha, e agora dependia de uma estranha num lugar que parecia tão esquecido quanto suas próprias memórias.
— Estou cansado — disse apenas, desviando o olhar para não prolongar o constrangimento. — E essa cadeira é um inferno.
Syara conteve um suspiro. Não era só ele que estava exausto — ela também. Mas havia algo ali, naquela vulnerabilidade dele, que a fazia querer tentar um pouco mais. Por mais que a assustasse.
O elevador antigo se abriu como uma benção para cortar o silêncio, mas também sentiu-se bastante aliviada por não precisar usar a escada.
— Consertaram o elevador! — Ela sorriu, apontando a plaquinha nova que indicava manutenção recente. Damian arqueou uma sobrancelha, claramente duvidando se aquilo realmente era seguro. Estava tão velho e desgastado.
— Syara! — uma voz a chamou, e uma senhora de meia-idade surgiu no corredor, acenando com entusiasmo. Fazia alguns dias que não a via. — Olha só quem voltou! Pensei que tivesse ido embora de vez, minha menina!
— Senhora Jú! — Syara sorriu, abraçando a mulher de cabelos grisalhos, rosto arredondado e um perfume doce de lavanda. — Estou de volta… por enquanto.
Juliet — ou simplesmente “senhora Jú” — era mais que uma vizinha. Viúva, dona de metade dos apartamentos do prédio, era também o que Syara tinha de mais próximo de uma mãe desde que ficara sozinha.
— E quem é esse moço bonito? — Juliet perguntou, apertando os olhos para Damian como se quisesse memorizar seu rosto perfeitamente desenhado. — É seu namorado?
Syara tossiu, corando.
— Não! É… um amigo. Foi um acidente. Ele… precisava de ajuda.
Juliet arqueou as sobrancelhas, divertida, mas não insistiu. Seus olhos, no entanto, pareciam dizer "sei muito bem o que estou vendo".
— Bom, pelo menos voltou em boa hora. Mandei consertar esse elevador, graças a Deus! — disse, orgulhosa. — Se precisar de alguma coisa, é só bater na minha porta, viu, rapaz? E quem sabe não vira namoro mesmo, hein?
Damian deu um sorriso contido. Havia algo reconfortante naquele ar de matriarca intrometida. Por um instante, ele se imaginou pertencendo àquele prédio velho, como se fosse possível construir ali uma lembrança nova.
Syara despediu-se com um aceno rápido, empurrando a cadeira de rodas para dentro do elevador. O rangido metálico fez Damian prender a respiração.
— Relaxe — ela disse, divertida. — Se ele parar, a gente grita.
O apartamento de Syara era pequeno, mas limpo. Móveis simples, cortinas claras, plantas em vasos improvisados. Tudo tinha a marca de alguém que fazia o melhor que podia com pouco. Damian olhou ao redor com atenção, reparando nos detalhes: as fotos guardadas num porta-retratos virado para a parede, o cheiro de café velho, um tapete gasto mas limpo.
— Onde eu durmo? — perguntou, forçando um sorriso para disfarçar o constrangimento.
— Meu quarto é ali — disse Syara, apontando. — O outro quarto… não está pronto. Então… o sofá. — Ela deu de ombros, tentando parecer prática.
Damian arregalou os olhos, incrédulo com o que acabou de escutar. Ela não poderia ser tão malvada.
— O sofá? Eu sou um inválido, Syara. — A voz dele tinha uma pitada de drama, mas também de humor.
— E um inválido que cozinha, limpa e lava suas próprias roupas — retrucou ela, cruzando os braços. — E toma banho sozinho, entendeu? Não vou repetir o que aconteceu no hospital.
Ele soltou uma risada curta, lembrando do enfermeiro que Daniel arranjara de última hora. Se não fosse por ele, Syara teria visto mais do que gostaria.
— Você é cruel — brincou, fingindo-se de ofendido. — Vai me deixar congelar nesse sofá duro.
— Vai sobreviver — rebateu, pegando umas mantas do armário. — Aqui não faz tanto frio assim. E olha, tem comida na geladeira, o micro-ondas é fácil de usar. O banheiro fica em frente ao meu quarto. É isso.
Damian percebeu o tom dela — uma mistura de dona de casa improvisada com cuidadora relutante. Estranhamente, isso o tranquilizava. Não parecia que ela estava com medo dele — mas também não o deixava esquecer que, ali, quem mandava era ela.
Quando Syara pegou a bolsa, ele se alarmou.
— Espera, vai sair?
— Trabalho. Preciso pagar as contas, lembra? — Ela parou perto dele, apontando uma caixinha sobre a mesa. — Se sentir dor, os remédios estão aí. Cada um tem uma etiqueta. E, por favor, não abra a porta para ninguém, só para a senhora Jú ou o Daniel.
Damian assentiu, embora o medo de ficar sozinho fosse quase palpável em seus olhos. Afinal, Syara conseguiu fazê-lo se sentir um pouco desconfortável com sua ausência.
Syara parou na porta, respirou fundo, voltou até ele. Por um instante, achou que fosse dizer algo importante, mas só ajeitou a manta no encosto do sofá, como quem coloca uma criança para dormir.
— Volto antes de escurecer — prometeu.
No térreo, Syara encontrou Juliet prestes a sair.
— Senhora Jú! — chamou, correndo até ela. — Se não for incômodo… o Damian vai ficar sozinho. Poderia dar uma olhada nele mais tarde?
Juliet sorriu, pegando a mão de Syara.
— É claro, meu bem. Vou passar lá, faço um chá, converso com ele. Vai trabalhar em paz.
Syara quis agradecer, mas Juliet não deixou.
— Sabe, Syara… você tem o coração grande demais. Isso pode ser bonito, mas também perigoso. Cuidado com ele, tá bom?
Syara sorriu, mas não respondeu. Parte dela sabia que Juliet tinha razão — outra parte precisava acreditar que não havia perigo algum. Ele não se mostrou ser uma pessoa ruim, mas precisava ficar atenta.
Entraram juntas no carro. Juliet, dirigindo devagar pelas ruas estreitas, lançou-lhe um olhar terno como quem soubesse mais do que aparentava.
— E você, como está? Não me venha com “estou bem”, quero a verdade.
Syara olhou pela janela, deixando o vento fresco tocar seu rosto. Muitas coisas aconteceram em sua vida, às vezes acreditava que tudo era um teste, que logo as coisas voltariam aos eixos, talvez até melhorasse com o passar do tempo.
— Acho que… estou tentando. Perdi tantas coisas. Mas ainda tenho este lugar. Ainda tenho você.
Juliet suspirou, apertando de leve sua mão.
— Enquanto eu respirar, você não vai estar sozinha. — Deu um tapinha em seu braço, sorrindo com doçura. — E quem sabe esse moço perdido aí não seja um recomeço pra você também?
Syara não respondeu. Mas, pela primeira vez em muito tempo, pensou que talvez fosse verdade. Nada acontecia sem um propósito, e ela esperava que esse recomeço fosse algo bom.
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Atualizado até capítulo 36
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