Perda de Memória

Horas depois, já era madrugada quando o doutor Daniel soube que o paciente acidentado, aquele homem misterioso, finalmente havia acordado completamente. Ele percorreu o corredor do hospital com passos silenciosos, tentando ordenar as perguntas que faria — e as respostas que temia ouvir.

Damian estava semi-sentado, com o olhar perdido no teto branco e sem graça. O curativo na testa contrastava com o lençol impecável. Quando Daniel entrou, ele piscou devagar, como se precisasse de um tempo para focar no rosto à sua frente. Parecia que tudo era novo naquele momento.

— Boa noite. — Daniel disse em tom calmo, estudando sua reação pacientemente. — Sou o doutor Daniel. Você sofreu um acidente de carro algumas horas atrás. Consegue se lembrar do que aconteceu?

Damian apertou os olhos, franzindo o cenho. Um leve tremor percorreu seu maxilar.

— A-acidente? Eu… — Sua voz saiu arranhada, como se fosse a primeira palavra que dizia em anos. — Não… não consigo… Nada faz sentido.

Daniel suspirou, anotando mentalmente o estado do paciente. Pegou uma caneta do bolso e a bateu de leve no prontuário.

— Tudo bem. Você sofreu um trauma na cabeça. — Sua voz era calma, porém direta. — Isso pode afetar suas memórias por um tempo. Consegue me dizer seu nome completo? Família? Endereço? Qualquer coisa que consegue se lembrar?

Damian engoliu em seco, o peito subindo e descendo em uma respiração curta. Se esforçava para lembrar de algo, sem sucesso. E mais uma vez, outra vez. Nada. Tentou uma última vez, seu nome.

— Dami… Damian — murmurou, como se provasse o gosto do próprio nome. — É só isso… Não lembro de mais nada. Tem algo errado na minha cabeça?

Daniel colocou uma mão em seu ombro, solidário.

— Tecnicamente, sim — sorriu de leve, para confortá-lo. — Mas nada irreversível. Você teve algumas fraturas na perna, precisou de uma cirurgia rápida, mas o maior impacto foi na cabeça. É provável que as memórias voltem aos poucos. Vou cuidar para que fique confortável enquanto isso. Não se preocupe, vai melhorar logo, apenas tenha paciência.

Damian olhou ao redor, como se buscasse pistas na cortina, nos aparelhos. Mas tudo parecia estranho demais. A única coisa familiar era a dor que latejava por todo o corpo.

Quando Daniel saiu do quarto, Syara estava encostada no corredor, abraçando os próprios braços. Os olhos vermelhos, a respiração curta. Estava tão preocupada que sequer se importava consigo mesma.

— Syara, deveria estar em repouso — ele disse, num tom mais brando que repreensivo.

— Eu não posso dormir enquanto ele estiver ali, sozinho… — a voz dela saiu num fio. — Ele acordou? Está bem? Por favor, não me dê más notícias.

Daniel se aproximou, abaixando-se até o nível dela. Segurou-lhe as mãos para tentar acalmá-la.

— Ele acordou. Disse que se chama Damian, mas não se lembra de quase nada. É amnésia temporária. — Observou Syara arregalar os olhos, tomada por um misto de culpa e alívio. — Ei, escuta… Você salvou a vida dele. Não esqueça disso.

Ela respirou fundo, como se ainda não acreditasse.

— Salvei… mas também causei o acidente — murmurou, os olhos fixos em um ponto qualquer na parede, lembrava-se perfeitamente daquela cena. — Se eu tivesse revisado o maldito carro… Eu o vi quase queimando vivo, Daniel. Isso…

Ele apertou as mãos dela.

— Se não fosse você, ele estaria morto agora. — Soltou-a, indicando o caminho. — Agora volte para o quarto. Amanhã conversamos com a polícia, tudo ficará bem. Eu prometo.

Na manhã seguinte, Syara acordou ainda sem forças para enfrentar o mundo. Enquanto empurrava o café da manhã para o canto da bandeja, ouvia vozes abafadas no corredor. Daniel entrou, trazendo o cheiro de café fresco e preocupação nos olhos.

— Temos visita — anunciou, sentando-se na beira da cama. — A polícia quer ouvir você. É só rotina. Não se preocupe demais, vai ficar tudo bem.

Syara respirou fundo, tentando conter o tremor nas mãos. Durante o depoimento, repetiu pela centésima vez como o carro falhou, como perdeu o controle, como arrastou Damian para fora antes que o fogo o engolisse. Os policiais ouviram, anotaram, perguntaram de novo — e saíram. Simples assim.

Quando a porta se fechou, Daniel apareceu de novo, um sorriso contido no canto dos lábios. Ele estava certo, não havia com o que se preocupar. Ambos estavam bem, era isso que importava.

— Você fez o que precisava fazer. Está limpa, Syara.

Ela sorriu, mas seus olhos carregavam sombras.

— E ele? Vai me denunciar? O que vou fazer se isso acontecer? Eu…

— Não. Ele não se lembra nem da própria vida — Daniel suspirou, fitando o corredor, como se temesse ser ouvido. — E mais: ele pediu para falar com você.

Syara estacou, apertando os lábios.

— Ele pediu… por mim?

— Vai ver ele quer te agradecer por não deixá-lo virar cinzas. — O tom de Daniel era leve, mas Syara sentiu um arrepio percorrer-lhe a nuca. Ela não imaginava que isso realmente aconteceria, claro, pensou sobre isso inúmeras vezes, mas agora era real.

Minutos depois, Syara entrou no quarto de Damian, batendo de leve na porta. Nenhuma resposta. O som suave da máquina de monitoramento preenchia o ambiente. Ele parecia dormir — o rosto sereno, as pálpebras pesadas. Ela sentou-se na poltrona ao lado, envolvendo os joelhos com os braços, sem coragem de acordá-lo.

Quando Damian abriu os olhos, não entendeu o que viu primeiro: o teto pálido, o cheiro de hospital ou a silhueta feminina à sua frente. Ela dormia encolhida na poltrona, o rosto ainda marcado por arranhões. Era ela… a mulher que causou seu acidente, mas que o salvou também.

Ele a observou em silêncio. Algo naquela presença lhe causava um incômodo familiar — ou seria um alívio? Talvez ambos. Não fazia ideia de quem ela era, mas… não sentia medo. Sentia-se tão confortável que parecia estar em casa, mesmo que não se lembrasse de como realmente era.

No fundo de seus pensamentos confusos, uma pergunta se formou: quem é ela… e por que parecia que precisava dela mais do que deveria? Havia muito mais perguntas, todas sem respostas, nada fazia sentido.

Damian ergueu uma mão, fraca e levemente machucada, tentando chamar por ela — mas o movimento a despertou antes que dissesse qualquer palavra.

Quando Syara abriu os olhos, encontrou o olhar dele preso ao seu. E, por um segundo, esqueceu que eram estranhos presos na mesma tragédia.

Ali, naquele instante, uma nova história começava — silenciosa, delicada e tão perigosa quanto tudo que Damian esquecera.

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