Anônimos

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Capítulo 22 - Como NÃO dar o troco

Não gosto desse plano – digo para Julia pela décima quinta vez – a gente devia desistir.

- Shh – faz Julia para mim – estou concentrada aqui. E nada do que você diga vai me fazer desistir.

Bufo, frustrada, me escondendo mais atrás da árvore em que estamos perto.

São quase 13h00, e ainda estamos na escola. Bem, na região da escola. Mais especificamente, na rua atrás dela. Minha escola fica escondida em uma rua atrás de uma avenida movimenta, - que eu pego todos os dias para voltar para casa – e depois dela há quadras e mais quadras com casas bonitas em ruas pacatas.

E é em uma dessas ruas que estamos, escondidas atrás de uma árvore, espionando Eliza se agarrando com um cara, no extremo oposto da onde estamos.

Julia não se enganou no fato de Eliza ter dois namorados. Esse cara com quem ela está agora é uma montanha de tão alto e gordo, e a pele é negra como café. Bem diferente do varapau que ela estava beijando no intervalo hoje.

- Não consigo focar eles direito – reclama Julia, com o celular na mão, apontado para o casalzinho.

O plano da Julia é bem simples; tirar uma foto da loira aguada beijando o montanha, e depois postar no Facebook anonimamente, para todo mundo ver. Inclusive seu outro namoradinho.

O problema, é que estamos muito longe, e não estamos conseguindo tirar fotos muito boas. O zoom da câmera está no máximo, e mesmo assim só conseguimos capturar a imagem borrada de um casal. Não dá para dizer quem são as pessoas na foto.

- Merda – xinga baixinho Julia, olhando para mais uma foto embaçada – não está dando certo.

- Legal, então acho melhor desistimos – tento mais uma vez, pensando por favor, por favor desista!

Quando Julia sugeriu esse plano, primeiro fiquei relutante, depois achei que seria uma boa forma de tirar Eliza do meu pé. Se eu tivesse alguma coisa para jogar contra ela, ela não ia mais me provocar com o lance da “viuvinha”. No entanto, com o plano se mostrando tão falho, minha vontade de seguir com ele se esvaiu. Só quero ir embora e esquecer disso.

- Ainda não – insiste Julia, bloqueando o seu celular e se virando para mim – me empresta o seu celular.

- Para quê!? – gemo, cansada. Estamos debaixo da sombra e mesmo assim estou com calor e suando. A temperatura subiu tanto que tive que tirar minha jaqueta e ficar só com a camiseta da escola. Não consigo entender como a Julia continua usando aquele blusão horroroso nesse calor.

- Eu quero ver se sua câmera é melhor que a minha – ela fala com pressa, olhando para o casalzinho que parece não se cansar de beijar – vamos, rápido, me dá! – ela faz um gesto impaciente de “vem” com os dedos.

Reviro os olhos, mas entrego meu celular para ela. Só vou esperar ela terminar de ver isso e vou me mandar. Cansei da brincadeira.

Julia coloca na câmera do meu celular e foca na direção de Eliza e o peguete.

- Sua câmera é melhor que a minha – diz ela, com a mão estendida, olhando através da câmera – ainda está embaçado, mas, se eu me aproximar um pouquinho, posso conseguir uma boa foto.

Julia sai de trás da árvore, ainda com os braços estendidos, concentrada na tela do celular. Vejo-a saindo do nosso esconderijo e sou tomada pelo pânico. Apanho-a pelo capuz do casaco para detê-la.

- O que você está fazendo!? – sibila ela, com raiva, estancando no lugar e virando a cabeça para mim.

- Ela vai te ver! – falo baixinho, com um tremor na voz, a mão fortemente agarrada ao capuz da Julia.

- Não vai não – ela me garante – eles estão muito ocupados se engolindo – Julia puxa o capuz da minha mão e continua.

Me mantenho no lugar, torcendo para ela estar certa. Consigo ver, da onde estou, a tela do celular, a medida que Julia se aproxima. Um, dois, três passos para frente, esticando o braço o máximo possível e ela consegue um vislumbre perfeito do perfil de Eliza e do namorado. Me permito um segundo de alegria, vendo-a apertar o botão para capturar a imagem.

Então, o flash da câmera acende e dispara um som ensurdecedor, que parece o som de uma sirene de bombeiros na rua silenciosa em que estamos.

Congelamos, vendo o casalzinho se separar e olhar diretamente para nós. Diretamente para Julia, com o celular apontado para eles.

O garoto solta um grito de “ei!”. Não esperamos para ver a reação deles. Julia dispara para fora da rua, e eu a sigo, correndo atrás dela. Corremos, sem pensar, querendo ir para o mais longe possível.

Infelizmente, Julia corre para a rua mais abaixo - que não tem saída - ao invés de ir para a avenida, e eu vou na sua onda. Corremos até o fim da rua, parando em um portão grande de ferro que parece ser de uma fábrica, para recuperar o fôlego.

- Merda! – exclama Julia, o peito subindo e descendo – merda, merda.

- Eu falei que ela ia te ver! – acuso, ofegante, encostada no portão de ferro. Meu coração bate forte, não sei se de pânico ou da corrida. Deve ser dos dois.

- Ei! Ela não teria me visto se não fosse o flash idiota da sua câmera – rebate ela, também encostada no portão.

Merda! Sabia que não devia ter entrado nessa. Ela me viu, e não sei no que isso vai dar.

Julia olha para a tela do meu celular.

- Bem, pelo menos conseguimos uma boa foto – Julia sorri, me mostrando a foto na tela do celular.

Não dou a mínima, encarando ela com uma expressão de descrença.

- Vamos embora – digo, tomando o celular da mão dela e colocando na minha mochila.

Saímos da rua sem saída, subindo a rua lateral que dá para a avenida. Assim que viramos a esquina, nós vemos, lá em cima, a umas duas quadras de distância, Eliza, o peguete e uma comitiva nos esperando, enfileirados lado a lado no meio do asfalto para impedir nossa passagem.

Oh-oh. Nada bom. Paramos aonde estamos, sem saber o que fazer.

- Vamos pelo outro lado – sugere Julia, me puxando pelo braço.

Voltamos para a rua onde estávamos, e saímos pelo outro lado.

Não adianta. A comitiva sacou nossa jogada e já se debandou para lá para nos esperar. Recuamos apenas uns passos para a rua na diagonal, para nos esconder. Estamos num impasse. Qualquer lado que nós pegarmos, vão estar nos esperando. Não temos escolha, teremos que passar por eles.

Uma ao lado da outra, ajeitamos a postura e caminhamos o mais confiante possível, sem demonstrar que estamos nos cagando de medo.

Conforme nos aproximamos, posso ver melhor o rosto dos nossos intimidadores. Além de Eliza, e do peguete brutamontes dela, há uma garota gigante, mais alta e gorda que o peguete de Eliza, outra menina miudinha asiática, com cara de encrenqueira, e um menino de estatura mediana e aparência de bandido. Já os vi antes. São da turma de Eliza. E pelo visto, sua turma de seguranças também.

Estamos a uns dois metros de distância deles, quando a grandalhona nos aborda de forma tranquila.

- Tudo bem, meninas, me passem os celulares – ela gesticula com as mãos. Os outros só ficam parados, de braços cruzados e com cara de mau, atrás dela.

Tremo levemente. Não quero nem imaginar como deve ser levar um soco dessa garota.

Já estou tirando a mochila das costas para pegar meu celular. Julia segura o meu braço. Com um olhar determinado para eles, ela diz:

- Não sei do que vocês estão falando – ela dá de ombros, com a cara mais sínica do mundo.

Fico calada. Eu realmente não sei se essa é a melhor abordagem, só que não tenho nenhuma outra.

- Pode parar – o peguete de Eliza se manifesta, com uma voz grossa que me faz pular – eu vi você com o celular na mão!

- Isso não significa nada. Eu podia estar fazendo qualquer coisa – Julia fala calmamente, e eu quase rio dessa desculpa boba que ela dá.

Todo o grupo ri, também não a levando a sério. Todos exceto Eliza, que só lança um olhar mortal para mim. Não que eu a esteja olhando diretamente.

- Olha aqui, magricela – diz a grandona, com uma voz baixa e ameaçadora – é melhor você dar esse celular por bem, do que por mal.

Julia não se move, cruzando os braços e a encarando com um olhar de desafio.

Essa garota ficou maluca!? Grito em pensamento. Julia não está nem cogitando entregar o celular a eles, e se isso não acontecer, eles vão partir para cima de nós com certeza. Não sei o que ela tem na cabeça. Julia é tão magra que essa garota sozinha pode quebrar ela em duas.

- Tudo bem, tudo bem – finalmente eu tomo coragem de dizer alguma coisa – aqui está meu celular – abro a mochila e entrego meu celular para a grandona, antes que ela decida nos socar.

Ela pega o meu celular e começa a vasculhar. Ela aperta a tela algumas vezes, excluindo a foto que Julia tirou.

- Agora o seu, magricela – ela se dirige a Julia, sem devolver meu celular. Seu cabelo crespo preso em um rabo de cavalo, balançando com uma brisa leve repentina.

Mesmo não tendo nenhuma foto boa no seu celular, Julia ainda reluta em entregá-lo. Ranjo os dentes, com raiva dessa menina. Enfio a mão no bolso do blusão dela e pego seu celular antes que ela consiga me impedir. Entrego-o a grandona. Julia me lança um olhar de fúria.

A grandona demora um pouco mais com celular dela, selecionando todas as fotos e as excluindo.

Bato o pé no chão, nervosa, temendo que ela não devolva meu celular. Os outros se mantém calados, mas me lançam olhares mortais como se eles tivessem feito alguma coisa. Tenho a impressão que eles só se escondem por trás dessa fachada de encrenqueiros, mas que sozinhos não valem de nada.

- Prontinho. Fotos apagadas – declara ela, com um sorrisinho sinistro – e espero que vocês não tenham outro celular, porque se alguma foto dessas aparecer na internet, vocês estão mortas – ela estende os celulares para nós, um em cada mão.

Julia e eu esticamos as mãos para pegá-los. No minuto que nossos dedos encostam nos celulares, a grandona os afasta e joga os dois com força no chão, as telas viradas para baixo.

Todo o grupinho irrompe em risadas e vão embora. Eliza me lançando um olhar intimidador antes de se virar de costas e ir.

Julia e eu nos abaixamos para pegar os celulares. Viro o meu, e encontro a tela toda trincada. O celular de Julia está igual ao meu. Por sorte, nós duas temos película de vidro. Só torço para que a queda não tenha sido tão forte a ponto de chegar a pegar a tela de verdade do celular.

- Que droga! – Julia fala alto e com ira, se levantando e depois gritando para os valentões: - espero que vocês tenham dinheiro para pagar o conserto do meu celular!

Eles estavam bem longe quando Julia gritou. Todos param ao mesmo tempo e olham para trás.

- Julia! – grito com ela, desesperada. Tínhamos nos livrado deles e agora vai começar tudo de novo!

- Como é, magricela!? – grita a grandona, voltando a passos largos para nós. Os outros vem praticamente correndo.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. De qualquer forma, não temos chance. Somos duas garotas fraquinhas, contra um grupo de cinco briguentos, com duas montanhas de vantagem.

Num piscar de olhos, o grupo está nos cercando mais uma vez. A grandona segurando Julia pelo colarinho, com sangue nos olhos, pronta para atacar.

- Ei, pessoal! – uma voz surge do nada, alta e forte. Levo um segundo para notar que essa voz é de fora do grupo, só me dando conta no momento em que todos entortam a cabeça para ver quem é. Faço o mesmo.

Contornando a rua da escola, a uma quadra de distância de nós, está ele. Isso, ele mesmo; Eric. Com seu violão pendurado num ombro, a mochila no outro, descendo a rua na nossa direção.

- O que está acontecendo aqui? – ele pergunta, chegando perto do nosso grupo.

- Não se mete, mauricinho! – rosna a grandona, segurando firmemente a blusa de Julia, que está lutando para não demonstrar nenhuma emoção, mas noto o suor escorrendo por sua testa.

O resto do grupo se junta a grandona no coro de “não se meta”. O peguete de Eliza lança o corpo na direção de Eric de forma ameaçadora.

Eric levanta as mãos em sinal de rendição, dando um passo para trás.

- Tudo bem, eu não me meto. Mas acho que a polícia vai querer se meter – ele aponta para o final da rua, onde um carro de polícia da ronda escolar está passando lentamente.

O grupo hesita, trocando olhares duvidosos.

- Deixa pra lá, Kelly – diz a baixinha asiática para a grandona – pegamos elas depois.

A grandona, Kelly, dá um último grunhido para Julia e a larga com brutalidade, jogando-a no chão.

- Fica esperta, magricela. Ainda te pego! – ela aponta o dedo enorme para Julia e se vai com o resto do bando, que sai correndo.

Minhas pernas estão trêmulas. Não consigo falar nada, nem gritar com Julia por ser tão imbecil. Se abrir a boca agora vou chorar.

Julia se levanta do chão, limpando a sujeira da bunda. Eric continua parado no mesmo lugar. Penso que devia agradecer pelo o que ele fez. Se não fosse por ele, nesse instante estaríamos arrebentadas.

Julia se adianta e fala na minha frente:

- Por que você está sempre se metendo aonde não é chamado? – ela vocifera, com uma cara raivosa.

Eric arregala os olhos.

- Como é? – Eric e eu falamos ao mesmo tempo. Olho para ele, só para desviar quando nossos olhares se encontram.

Ele continua:

- Se eu não tivesse me metido, eles iam dar uma surra em vocês.

Julia torce o nariz.

- Estava tudo sob controle.

Minha vez de encarar ela com os olhos arregalados.

- Estava mesmo, Julia? – pergunto cética para ela.

Ela dá de ombros, com uma atitude muito infantil.

- De qualquer forma, era problema meu, não dele – ela soa como uma cretina.

Falta um dedinho para eu mesma dar um soco na Julia. Sério.

- Obrigada, Julia. É assim que se diz – falo para ela, olhando de relance para Eric, esperando que ele tenha entendido que eu estava agradecendo a ele também.

Julia não responde nada, apenas pega sua bolsa que havia caído no chão no meio da briga, põe a alça no ombro, e sai andando com o nariz empinado.

Tanto eu, quanto Eric, ficamos encarando a sua silhueta se afastando, embasbacados. Minha raiva de Julia subindo cada vez mais. Ela quase matou a gente e mesmo assim age como se não fosse nada demais.

Alguns segundos se passam e então fica estranho estar ali parada ao lado do Eric, sem dizer nada. Penso em fazer um comentário de como a Julia é inconsequente, ou agradecer pelo o que ele fez. Abro a boca e não sai nada. Então simplesmente murmuro um obrigado e saio andando cabisbaixa, tomando um caminho diferente daquele que Julia pegou.

 

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