Não gosto desse plano – digo para Julia pela décima quinta vez – a gente devia desistir.
- Shh – faz Julia para mim – estou concentrada aqui. E nada do que você diga vai me fazer desistir.
Bufo, frustrada, me escondendo mais atrás da árvore em que estamos perto.
São quase 13h00, e ainda estamos na escola. Bem, na região da escola. Mais especificamente, na rua atrás dela. Minha escola fica escondida em uma rua atrás de uma avenida movimenta, - que eu pego todos os dias para voltar para casa – e depois dela há quadras e mais quadras com casas bonitas em ruas pacatas.
E é em uma dessas ruas que estamos, escondidas atrás de uma árvore, espionando Eliza se agarrando com um cara, no extremo oposto da onde estamos.
Julia não se enganou no fato de Eliza ter dois namorados. Esse cara com quem ela está agora é uma montanha de tão alto e gordo, e a pele é negra como café. Bem diferente do varapau que ela estava beijando no intervalo hoje.
- Não consigo focar eles direito – reclama Julia, com o celular na mão, apontado para o casalzinho.
O plano da Julia é bem simples; tirar uma foto da loira aguada beijando o montanha, e depois postar no Facebook anonimamente, para todo mundo ver. Inclusive seu outro namoradinho.
O problema, é que estamos muito longe, e não estamos conseguindo tirar fotos muito boas. O zoom da câmera está no máximo, e mesmo assim só conseguimos capturar a imagem borrada de um casal. Não dá para dizer quem são as pessoas na foto.
- Merda – xinga baixinho Julia, olhando para mais uma foto embaçada – não está dando certo.
- Legal, então acho melhor desistimos – tento mais uma vez, pensando por favor, por favor desista!
Quando Julia sugeriu esse plano, primeiro fiquei relutante, depois achei que seria uma boa forma de tirar Eliza do meu pé. Se eu tivesse alguma coisa para jogar contra ela, ela não ia mais me provocar com o lance da “viuvinha”. No entanto, com o plano se mostrando tão falho, minha vontade de seguir com ele se esvaiu. Só quero ir embora e esquecer disso.
- Ainda não – insiste Julia, bloqueando o seu celular e se virando para mim – me empresta o seu celular.
- Para quê!? – gemo, cansada. Estamos debaixo da sombra e mesmo assim estou com calor e suando. A temperatura subiu tanto que tive que tirar minha jaqueta e ficar só com a camiseta da escola. Não consigo entender como a Julia continua usando aquele blusão horroroso nesse calor.
- Eu quero ver se sua câmera é melhor que a minha – ela fala com pressa, olhando para o casalzinho que parece não se cansar de beijar – vamos, rápido, me dá! – ela faz um gesto impaciente de “vem” com os dedos.
Reviro os olhos, mas entrego meu celular para ela. Só vou esperar ela terminar de ver isso e vou me mandar. Cansei da brincadeira.
Julia coloca na câmera do meu celular e foca na direção de Eliza e o peguete.
- Sua câmera é melhor que a minha – diz ela, com a mão estendida, olhando através da câmera – ainda está embaçado, mas, se eu me aproximar um pouquinho, posso conseguir uma boa foto.
Julia sai de trás da árvore, ainda com os braços estendidos, concentrada na tela do celular. Vejo-a saindo do nosso esconderijo e sou tomada pelo pânico. Apanho-a pelo capuz do casaco para detê-la.
- O que você está fazendo!? – sibila ela, com raiva, estancando no lugar e virando a cabeça para mim.
- Ela vai te ver! – falo baixinho, com um tremor na voz, a mão fortemente agarrada ao capuz da Julia.
- Não vai não – ela me garante – eles estão muito ocupados se engolindo – Julia puxa o capuz da minha mão e continua.
Me mantenho no lugar, torcendo para ela estar certa. Consigo ver, da onde estou, a tela do celular, a medida que Julia se aproxima. Um, dois, três passos para frente, esticando o braço o máximo possível e ela consegue um vislumbre perfeito do perfil de Eliza e do namorado. Me permito um segundo de alegria, vendo-a apertar o botão para capturar a imagem.
Então, o flash da câmera acende e dispara um som ensurdecedor, que parece o som de uma sirene de bombeiros na rua silenciosa em que estamos.
Congelamos, vendo o casalzinho se separar e olhar diretamente para nós. Diretamente para Julia, com o celular apontado para eles.
O garoto solta um grito de “ei!”. Não esperamos para ver a reação deles. Julia dispara para fora da rua, e eu a sigo, correndo atrás dela. Corremos, sem pensar, querendo ir para o mais longe possível.
Infelizmente, Julia corre para a rua mais abaixo - que não tem saída - ao invés de ir para a avenida, e eu vou na sua onda. Corremos até o fim da rua, parando em um portão grande de ferro que parece ser de uma fábrica, para recuperar o fôlego.
- Merda! – exclama Julia, o peito subindo e descendo – merda, merda.
- Eu falei que ela ia te ver! – acuso, ofegante, encostada no portão de ferro. Meu coração bate forte, não sei se de pânico ou da corrida. Deve ser dos dois.
- Ei! Ela não teria me visto se não fosse o flash idiota da sua câmera – rebate ela, também encostada no portão.
Merda! Sabia que não devia ter entrado nessa. Ela me viu, e não sei no que isso vai dar.
Julia olha para a tela do meu celular.
- Bem, pelo menos conseguimos uma boa foto – Julia sorri, me mostrando a foto na tela do celular.
Não dou a mínima, encarando ela com uma expressão de descrença.
- Vamos embora – digo, tomando o celular da mão dela e colocando na minha mochila.
Saímos da rua sem saída, subindo a rua lateral que dá para a avenida. Assim que viramos a esquina, nós vemos, lá em cima, a umas duas quadras de distância, Eliza, o peguete e uma comitiva nos esperando, enfileirados lado a lado no meio do asfalto para impedir nossa passagem.
Oh-oh. Nada bom. Paramos aonde estamos, sem saber o que fazer.
- Vamos pelo outro lado – sugere Julia, me puxando pelo braço.
Voltamos para a rua onde estávamos, e saímos pelo outro lado.
Não adianta. A comitiva sacou nossa jogada e já se debandou para lá para nos esperar. Recuamos apenas uns passos para a rua na diagonal, para nos esconder. Estamos num impasse. Qualquer lado que nós pegarmos, vão estar nos esperando. Não temos escolha, teremos que passar por eles.
Uma ao lado da outra, ajeitamos a postura e caminhamos o mais confiante possível, sem demonstrar que estamos nos cagando de medo.
Conforme nos aproximamos, posso ver melhor o rosto dos nossos intimidadores. Além de Eliza, e do peguete brutamontes dela, há uma garota gigante, mais alta e gorda que o peguete de Eliza, outra menina miudinha asiática, com cara de encrenqueira, e um menino de estatura mediana e aparência de bandido. Já os vi antes. São da turma de Eliza. E pelo visto, sua turma de seguranças também.
Estamos a uns dois metros de distância deles, quando a grandalhona nos aborda de forma tranquila.
- Tudo bem, meninas, me passem os celulares – ela gesticula com as mãos. Os outros só ficam parados, de braços cruzados e com cara de mau, atrás dela.
Tremo levemente. Não quero nem imaginar como deve ser levar um soco dessa garota.
Já estou tirando a mochila das costas para pegar meu celular. Julia segura o meu braço. Com um olhar determinado para eles, ela diz:
- Não sei do que vocês estão falando – ela dá de ombros, com a cara mais sínica do mundo.
Fico calada. Eu realmente não sei se essa é a melhor abordagem, só que não tenho nenhuma outra.
- Pode parar – o peguete de Eliza se manifesta, com uma voz grossa que me faz pular – eu vi você com o celular na mão!
- Isso não significa nada. Eu podia estar fazendo qualquer coisa – Julia fala calmamente, e eu quase rio dessa desculpa boba que ela dá.
Todo o grupo ri, também não a levando a sério. Todos exceto Eliza, que só lança um olhar mortal para mim. Não que eu a esteja olhando diretamente.
- Olha aqui, magricela – diz a grandona, com uma voz baixa e ameaçadora – é melhor você dar esse celular por bem, do que por mal.
Julia não se move, cruzando os braços e a encarando com um olhar de desafio.
Essa garota ficou maluca!? Grito em pensamento. Julia não está nem cogitando entregar o celular a eles, e se isso não acontecer, eles vão partir para cima de nós com certeza. Não sei o que ela tem na cabeça. Julia é tão magra que essa garota sozinha pode quebrar ela em duas.
- Tudo bem, tudo bem – finalmente eu tomo coragem de dizer alguma coisa – aqui está meu celular – abro a mochila e entrego meu celular para a grandona, antes que ela decida nos socar.
Ela pega o meu celular e começa a vasculhar. Ela aperta a tela algumas vezes, excluindo a foto que Julia tirou.
- Agora o seu, magricela – ela se dirige a Julia, sem devolver meu celular. Seu cabelo crespo preso em um rabo de cavalo, balançando com uma brisa leve repentina.
Mesmo não tendo nenhuma foto boa no seu celular, Julia ainda reluta em entregá-lo. Ranjo os dentes, com raiva dessa menina. Enfio a mão no bolso do blusão dela e pego seu celular antes que ela consiga me impedir. Entrego-o a grandona. Julia me lança um olhar de fúria.
A grandona demora um pouco mais com celular dela, selecionando todas as fotos e as excluindo.
Bato o pé no chão, nervosa, temendo que ela não devolva meu celular. Os outros se mantém calados, mas me lançam olhares mortais como se eles tivessem feito alguma coisa. Tenho a impressão que eles só se escondem por trás dessa fachada de encrenqueiros, mas que sozinhos não valem de nada.
- Prontinho. Fotos apagadas – declara ela, com um sorrisinho sinistro – e espero que vocês não tenham outro celular, porque se alguma foto dessas aparecer na internet, vocês estão mortas – ela estende os celulares para nós, um em cada mão.
Julia e eu esticamos as mãos para pegá-los. No minuto que nossos dedos encostam nos celulares, a grandona os afasta e joga os dois com força no chão, as telas viradas para baixo.
Todo o grupinho irrompe em risadas e vão embora. Eliza me lançando um olhar intimidador antes de se virar de costas e ir.
Julia e eu nos abaixamos para pegar os celulares. Viro o meu, e encontro a tela toda trincada. O celular de Julia está igual ao meu. Por sorte, nós duas temos película de vidro. Só torço para que a queda não tenha sido tão forte a ponto de chegar a pegar a tela de verdade do celular.
- Que droga! – Julia fala alto e com ira, se levantando e depois gritando para os valentões: - espero que vocês tenham dinheiro para pagar o conserto do meu celular!
Eles estavam bem longe quando Julia gritou. Todos param ao mesmo tempo e olham para trás.
- Julia! – grito com ela, desesperada. Tínhamos nos livrado deles e agora vai começar tudo de novo!
- Como é, magricela!? – grita a grandona, voltando a passos largos para nós. Os outros vem praticamente correndo.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. De qualquer forma, não temos chance. Somos duas garotas fraquinhas, contra um grupo de cinco briguentos, com duas montanhas de vantagem.
Num piscar de olhos, o grupo está nos cercando mais uma vez. A grandona segurando Julia pelo colarinho, com sangue nos olhos, pronta para atacar.
- Ei, pessoal! – uma voz surge do nada, alta e forte. Levo um segundo para notar que essa voz é de fora do grupo, só me dando conta no momento em que todos entortam a cabeça para ver quem é. Faço o mesmo.
Contornando a rua da escola, a uma quadra de distância de nós, está ele. Isso, ele mesmo; Eric. Com seu violão pendurado num ombro, a mochila no outro, descendo a rua na nossa direção.
- O que está acontecendo aqui? – ele pergunta, chegando perto do nosso grupo.
- Não se mete, mauricinho! – rosna a grandona, segurando firmemente a blusa de Julia, que está lutando para não demonstrar nenhuma emoção, mas noto o suor escorrendo por sua testa.
O resto do grupo se junta a grandona no coro de “não se meta”. O peguete de Eliza lança o corpo na direção de Eric de forma ameaçadora.
Eric levanta as mãos em sinal de rendição, dando um passo para trás.
- Tudo bem, eu não me meto. Mas acho que a polícia vai querer se meter – ele aponta para o final da rua, onde um carro de polícia da ronda escolar está passando lentamente.
O grupo hesita, trocando olhares duvidosos.
- Deixa pra lá, Kelly – diz a baixinha asiática para a grandona – pegamos elas depois.
A grandona, Kelly, dá um último grunhido para Julia e a larga com brutalidade, jogando-a no chão.
- Fica esperta, magricela. Ainda te pego! – ela aponta o dedo enorme para Julia e se vai com o resto do bando, que sai correndo.
Minhas pernas estão trêmulas. Não consigo falar nada, nem gritar com Julia por ser tão imbecil. Se abrir a boca agora vou chorar.
Julia se levanta do chão, limpando a sujeira da bunda. Eric continua parado no mesmo lugar. Penso que devia agradecer pelo o que ele fez. Se não fosse por ele, nesse instante estaríamos arrebentadas.
Julia se adianta e fala na minha frente:
- Por que você está sempre se metendo aonde não é chamado? – ela vocifera, com uma cara raivosa.
Eric arregala os olhos.
- Como é? – Eric e eu falamos ao mesmo tempo. Olho para ele, só para desviar quando nossos olhares se encontram.
Ele continua:
- Se eu não tivesse me metido, eles iam dar uma surra em vocês.
Julia torce o nariz.
- Estava tudo sob controle.
Minha vez de encarar ela com os olhos arregalados.
- Estava mesmo, Julia? – pergunto cética para ela.
Ela dá de ombros, com uma atitude muito infantil.
- De qualquer forma, era problema meu, não dele – ela soa como uma cretina.
Falta um dedinho para eu mesma dar um soco na Julia. Sério.
- Obrigada, Julia. É assim que se diz – falo para ela, olhando de relance para Eric, esperando que ele tenha entendido que eu estava agradecendo a ele também.
Julia não responde nada, apenas pega sua bolsa que havia caído no chão no meio da briga, põe a alça no ombro, e sai andando com o nariz empinado.
Tanto eu, quanto Eric, ficamos encarando a sua silhueta se afastando, embasbacados. Minha raiva de Julia subindo cada vez mais. Ela quase matou a gente e mesmo assim age como se não fosse nada demais.
Alguns segundos se passam e então fica estranho estar ali parada ao lado do Eric, sem dizer nada. Penso em fazer um comentário de como a Julia é inconsequente, ou agradecer pelo o que ele fez. Abro a boca e não sai nada. Então simplesmente murmuro um obrigado e saio andando cabisbaixa, tomando um caminho diferente daquele que Julia pegou.
Passo o resto da semana em alerta, olhando para os lados e para trás aonde quer que eu vá, - indo para a escola, voltando da escola, andando pelos corredores, na hora do intervalo - temendo o momento em que Eliza e a sua gangue venha me atacar.
E apesar dos olhares ambíguos e as caras feias, nada acontece. Ninguém vem atrás de mim, nem dentro e nem fora da escola.
Na sexta-feira, já respiro aliviada. Concluo que nada vai acontecer afinal. Se elas não fizeram nada até agora, não vão fazer mais. E pensar que eu fiquei neurótica a semana toda por causa da Julia. Não falo com ela desde o dia da confusão, e não estou pretendendo falar nem tão cedo.
Estou na última aula de sexta-feira, que é a de artes. O professor passou um trabalho em sala de aula, e com forme os alunos fossem terminando, eles podiam ir embora. Desse jeito, me vejo sendo a última a ficar na sala, por não ter feito o trabalho.
Faltando dez minutos para acabar a aula, Heitor olha para mim com um olhar apático, e pergunta:
- Não terminou o seu trabalho, Samantha?
Pego meu caderno de desenho, que estava aberto em uma folha em branco em cima da mesa – para fingir que eu estava fazendo alguma coisa – e o fecho e guardo na mochila.
- Na verdade, eu nem comecei – admito, guardando o resto das minhas coisas que estão em cima da mesa.
Heitor parece ficar decepcionado, ainda que não surpreso.
- Não consigo entender – ele fala, tampando uma caneta azul e a destampando outra vez – você costumava ser minha melhor aluna. Nunca deixava de entregar um trabalho e sempre era a primeira a terminar.
- Falou bem, professor, eu era sua melhor aluna. Não sou mais – ponho a mochila nas costas e levanto da carteira, me dirigindo para fora da sala, mesmo sem ter sido dispensada.
Heitor suspira.
- Bem, se você continuar desse jeito, vai ficar com zero nesse semestre – ele me alerta, como um amigo – e tenho certeza que a minha matéria não vai ser a única.
Dou de ombros. Ele está certo. Venho fazendo corpo mole em todas as matérias, não entregando trabalhos, não me esforçando nas provas. É muito provável que eu repita o ano, mas não estou nem aí.
- Samantha – ele me chama, no momento que contorno a carteira da frente e passo pela dele para ir para a porta.
Paro na frente do quadro negro, voltada para ele. Não quero ouvir o que ele tem para dizer, e também não quero ser rude. Heitor ainda é um professor legal.
- Eu me importo com os meus alunos. E me importo com você. Não quero ver você se afundando. Você tem que se esforçar um pouco.
Olho para o Heitor, e por um instante me permito me colocar no lugar dele. Deve ser difícil ver um aluno que era tão bom, tão dedicado, se tornar um aluno ruim e desinteressado. Muitas garotas morrem de amores pela beleza de Heitor. Só que ela vai além da aparência. Por trás dos olhos azuis, da cara de modelo e do porte atlético, há uma pessoa boa e gentil.
De todos os professores, ele é o único com quem me importo de agir como estou agindo. Bem, não o bastante.
- Lamento, não posso fazer nada por você – declaro, dando as costas para ele e saindo da sala.
***
Saio da rua que dá acesso a escola, para a avenida acima dela, no meu caminho habitual para casa. De alguma forma, a conversa com Heitor mexeu comigo, e meu humor ficou péssimo. Sinto o vazio se intensificando e um desânimo me dominando. Preciso de alguma coisa para me animar.
Passo na frente de um supermercado e decido entrar. É o mesmo mercado por onde já passei diversas vezes fazendo esse caminho, e o engraçado é que entrei nele pouquíssimas vezes. Prefiro comprar besteiras no mercado que fica mais perto da minha casa. Hoje, porém, a minha vontade por uma barra de chocolate é tão grande que não consigo esperar. Quero ir comendo o chocolate no caminho.
Deslizo pela entrada do mercado e me encaminho para o corredor mais próximo, antes que o funcionário que está na frente do mercado decida encrencar com a minha mochila e exigir que eu a guarde no guarda-volumes. Dou uma olhada rápida nos produtos de limpeza e sigo para os fundos, indo para o próximo corredor. Massa de macarrão, molhos... nada de chocolate. O corredor depois desse também não tem o que eu quero. Vejo outro funcionário do mercado repondo pacotes de miojo em uma prateleira e decido perguntar a ele aonde fica os bombons e barras de chocolate.
- Com licença, o senhor pode me dizer aonde ficam as barras de chocolate? – pergunto da melhor forma possível ao funcionário.
O cara se vira para mim e por um segundo meus olhos não conseguem acreditar no que estão registrando. Ali, no meio do mercado, está ele de novo.
Eric.
Só pode ser brincadeira!
- Você de novo!? – exclamo, irritada – tá me perseguindo por acaso?
Ele olha para mim de lado.
- Não. Eu por acaso trabalho aqui – ele aponta para o próprio peito, para a camisa azul e vermelha com a logomarca do supermercado.
Fico um pouco sem graça. Acabei falando sem pensar. Mesmo assim, não quero perder a compostura.
- Pensei que você trabalhasse naquela boate – retruco.
- Lá eu só trabalho nos finais de semana – ele explica, pacientemente – de segunda a sexta, eu trabalho aqui, depois da escola. Mas o salário é muito pouco, por isso eu trabalho na boate pra angariar uma renda extra.
Ergo as sobrancelhas. Muitos estudantes com mais de 16 anos trabalham. Só que nunca ouvi falar de um estudante que trabalhasse em dois empregos.
- Seus pais não trabalham? – pergunto antes de me dar conta do que estou falando.
Suas feições se endurecem no mesmo instante.
- Eu moro sozinho – ele meio que resmunga, voltando a colocar os pacotes de miojos da caixa para a prateleira – as barras de chocolate ficam no corredor ao lado – ele fala sem olhar para mim.
Tudo bem, o momento ficou estranho. Que idiota que eu fui! Que tipo de pergunta foi aquela? É claro que ele mora sozinho, eu já vi a casa dele! E mesmo se não tivesse visto, isso não é da minha conta!
Sem dizer nada, me viro e volto o caminho que fiz e vou para o corredor ao lado. Finalmente, no finzinho do corredor, encontro a seção de chocolates.
Enquanto escolho o que vou levar, fico com a sensação ranheta de que Eric está me olhando. Me pego duas vezes olhando para trás, para não ver ninguém além de uma senhora gorda da terceira idade e uma mulher com um bebê de colo.
Escolho três Barras de chocolate, duas de chocolate ao leite e uma de chocolate branco e as levo para o caixa logo a frente, que está vazio. Pago pelo chocolate e saio do supermercado, retomando meu caminho.
No entanto, o garoto não sai do meu pensamento. Não de uma forma romântica, e sim de uma forma chata e irritante.
Antes de vê-lo naquela boate, eu nem sabia da sua existência. Agora, não consigo não notá-lo. Na escola, pelos corredores, no pátio, tocando aquele violão. Juro que posso ouvir o som do seu violão, nem que seja baixinho, mesmo estando na parte mais distante dele do pátio.
E, ao que parece, ele está sempre no meu caminho também. Me encontrando bêbada na balada, e me levando para casa. Aparecendo na rua e evitando que eu me metesse numa briga. E por último, surgindo no mesmo mercado em que estou.
Para ser sincera, essas coincidências estão me enchendo o saco. Não gosto desse garoto, ele me deixa desconfortável, não sei bem por quê. Só sei que não quero ele por perto.
Distraída, com os fones nos ouvidos, ouvindo Three Days Grace no volume máximo, mal noto qualquer coisa ao meu redor. Por isso, sou pega de surpresa quando me puxam com força para o lado e me derrubam no chão.
Bato o quadril no chão, sentindo minhas mãos arderem ao ralarem no concreto. Um gemido baixo escapa da minha boca e antes que eu consiga me levantar, sou cercada por um bando de garotas que me seguram pelos pés e pelas mãos.
- Ei! – eu grito, com mais desespero na voz do que eu queria. Vejo um borrão de rostos em cima de mim, tampando a luz do dia e rindo com maldade.
- Olha, ela está assustada! – uma delas diz.
- Ela quer chorar! – diz outra.
- Aposto que vai fazer xixi nas calças de medo! – solta uma terceira, fazendo todos caírem na gargalhada.
Demora para que minha visão se focalize, e possa identificar quem são. Enquanto luto para me soltar, olho para a cara de cada uma. Lá está a grandona de pele morena e cabelo crespo, Kelly. A asiática baixinha de aparelho nos dentes, e mais duas garotas que já vi de relance com Eliza, uma negra de trancinhas coloridas e uma ruiva de farmácia. Todas elas rindo da minha cara.
Me contorço com toda a força que tenho, mas ela são mais fortes e apertam meus braços e minhas pernas com intensão de me machucar.
- Calma, viuvinha! – elas dizem, apertando os corpos no meu para diminuir o meu espaço e minhas chances de me libertar.
Grunho com raiva. Tentar me soltar não está dando certo, então eu grito.
- Nada de gritos! – a grandona me repreende, colocando a mãozona suja na minha boca. Ela consegue apertar meu braço com um dos seus braços e tapar minha boca com o outro sem esforço.
Tento gritar mesmo assim e minha voz sai abafada e baixa. Não desisto, e continuo gritando, me contorcendo e virando a cabeça de um lado para o outro. Se o medo me paralisa, pelo menos o desespero pode me fazer agir.
- Fica quieta! – a grandona me repreende mais uma vez. Alguém dá um puxão no meu cabelo para me calar.
- Vamos acabar com isso – ouço uma voz nova surgindo atrás de mim. Outro puxão no meu cabelo. Dessa vez ele é mantido, fazendo minha cabeça tombar para trás e meus olhos encontrarem a cara horrorosa de Eliza, sorrindo diabolicamente para mim.
- Achou que iria fazer aquela brincadeirinha idiota comigo e sair impune, viuvinha? – ela rosna para mim, dando um puxão tão forte no meu cabelo que sinto meus olhos arderem – chegou a hora de você pagar!
Com um sorriso sinistro, ela me mostra um canivete com uma lâmina reluzente e um cabo preto. As outras garotas riem e uivam de forma assustadora. Eliza encosta a ponta do canivete no meu rosto e isso as deixam mais excitadas. Elas me puxam e me balançam de um lado para o outro sem dó nem piedade.
Mais uma vez tento me libertar e não consigo. Tenho consciência de que é inútil - elas estão em cinco e eu sou só uma - mas não posso me entregar, não posso me abandonar, isso seria muito pior.
A grandona aperta a mão com tanta força na minha boca que sinto meus dentes afrouxando, ao mesmo tempo que Eliza puxa tanto os meus cabelos, presos por sua mão numa espécie de rabo de cavalo, que meu pescoço está rígido e dolorido pelo esforço.
Eliza brinca com o canivete, passeado com ele pelo meu rosto, fazendo contornos por minha testa e meu queixo, pressionando-o perto do meu olho, me torturando de forma perversa com sua risada e de suas companheiras, que é tudo o que eu posso ouvir, obstruindo meus pensamentos.
- Como será que a viuvinha vai ficar depois que eu retalhar a cara dela? – ela me provoca, dando um beijo molhado na minha testa.
Esse gesto me causa tanto asco que tenho um acesso de adrenalina que quase me liberta. A garota que está segurando minha perna esquerda a deixa escapar e eu dou um chute cego nela. Impulsiono o corpo para frente, e minhas agressoras afrouxam um pouco os apertos.
No entanto, não demora para elas recuperarem o controle sobre mim, me apertando ainda mais do que antes, se é que isso é possível.
- Alguém está impaciente! – diz Eliza, o canivete retornando para a minha bochecha – não se preocupe, vou acelerar as coisas.
Com isso, ela arrasta a lâmina da faça por minha bochecha. Solto um grito abafado pelo mão da grandona, virando o rosto e sentindo uma ardência no local.
O tempo todo eu estive com os olhos abertos. Nessa hora, eu os fecho, com força, prometendo a mim mesma que não vou chorar. Meu corpo está tremendo, não tenho mais forças. Estou me segurando por um fio mais fino do que um fio de cabelo. E, quando ele se partir, já era.
- Ei, vocês! Soltem ela! – ouço uma voz a distância, mas não tenho certeza se é real. Acho que estou perdendo a consciência, e não consigo reagir.
De repente, as mãos que me seguravam me soltam, e eu caio como um tijolo no chão. Um grito sufocado na garganta. Minha cabeça se choca com tanta força no chão que meu corpo inteiro formiga. Me envolvo em posição fetal, esperando a dor passar.
Registro vagamente o som de gritos e as passadas pesadas de gente correndo. E aí, silêncio.
Não abro os olhos, não tenho coragem. Elas podem estar aqui ainda. Podem ter ficado quietas, esperando que eu abra os olhos para eles poderem ter um prazer sanguinário de furar meu olho aberto.
- Oi, Samantha – uma voz de homem me chama e sinto uma mão no meu ombro. Me debato, com medo de quem quer que seja. Seria muita sorte sair das mãos das psicopatas, para cair nas de um estuprador.
Dou cotoveladas e bicadas do melhor jeito possível no estado em que estou, sem forças.
- Espera! Calma! Sou eu! – a pessoa fala, segurando meus braços para me deter.
Enfim tomo coragem de abrir os olhos e encontro os olhos castanhos de Eric fitando-me diretamente.
O alívio toma conta do meu ser. Diferente daquela primeira vez em que o vi e pensei que ele representava perigo, dessa vez eu fico verdadeiramente feliz de encontrá-lo ali. Agarro o seu pescoço com os braços, me pendurando nele. Na verdade, o meu gesto acaba por trazer ele para o chão.
- Tudo bem, tudo bem – ele me tranquiliza, voltando a se levantar, sem que meus braços desgrudem dele – está tudo bem. Elas se foram.
Ele afaga as minhas costas, me sentando no chão. Permito que ele faça isso, ainda que meu corpo estremeça com seu toque.
Ficamos um tempo desse jeito, esperando que eu recupere o fôlego e as forças.
- Você consegue levantar? – ele me pergunta de forma gentil.
Abro a boca para responder, e só o que sai é um guincho estridente que precede uma choradeira descontrolada.
Não quero chorar.
Aperto os olhos e assinto.
Eric me levanta e eu cambaleio, minhas pernas trêmulas vacilando. Ele me segura pela cintura para que eu não caia.
- Vem, vamos entrar no mercado para você tomar um copo de água – ele fala, passando a mão levemente por meu rosto.
Olho em volta, sendo levada aos tropeços pelo Eric para a entrada dos fundos do supermercado. Não tinha reparado que esse tempo todo eu estava no beco sem saída atrás do supermercado.
Eric empurra uma porta de correr para o lado e a fecha depois que entramos. Passamos por um cômodo grande com várias caixas de tamanhos variados. Alguns funcionários andam por ali, ocupados demais para nos notarem. Saímos por uma porta do outro lado com uma cortina de plástico dividida ao meio e caímos nos fundos do mercado, onde ficam os pacotes de arroz, feijão e outros alimentos não perecíveis.
- Fica aqui, eu vou pegar água para você – Eric me coloca sentada em um banquinho de plástico branco que está a venda no mercado e entra novamente pela porta com cortina de plástico, que farfalha com o movimento.
Uns segundos mais tarde, ele volta com um copo de vidro contendo água com açúcar, para me acalmar. Aceito a água, mesmo sabendo que água com açúcar é um verdadeiro placebo.
- Obrigado – agradeço com a voz fininha, bebendo um gole de água.
Bebo a água de uma vez só, um gole atrás do outro. O tempo todo ignorando que Eric olha para mim.
- Então... O que estava acontecendo lá fora? – ele me pergunta, ao me ver terminar de beber a água.
Finjo mais um pouquinho que estou bebendo, sem ter nada no copo. Placebo ou não, consegui me acalmar. Meu corpo parou de tremer e o bolo na minha garganta diminuiu.
- Não... – minha voz falha e eu pigarreio para ela voltar – não pareceu óbvio? Elas estavam me atacando.
- Sim. O que eu quero dizer é, por que elas estavam te atacando?
Não digo nada. As imagens do que acabara de acontecer reprisando em minha mente e me fazendo estremecer.
- Eram as mesmas garotas que queriam bater na Julia e em você naquele dia? – ele conclui sem que eu precise dizer nada.
Assinto vagarosamente.
- Elas vieram terminar o que começaram – digo, segurando firmemente o copo nas mãos, olhando para baixo.
- E quase conseguiram – ele acrescenta.
Se não fosse por você, penso, e não tenho coragem de dizer. Mais uma vez vejo as imagens delas em cima de mim e meu corpo todo se arrepia com o que poderia ter acontecido.
- Elas fizeram isso com você? – ergo a cabeça e o vejo apontando para o meu rosto.
Toco a minha bochecha, sentindo-a arder e latejar no local aonde Eliza me cortou. Tinha me esquecido desse corte.
- Foi – respondo e faço uma careta para a dorzinha chata do machucado.
- Deixa eu ver – Eric tira a minha mão do rosto e ergue meu queixo para avaliar o corte. Espero que ele não note minhas bochechas corando, seu toque me causando um arrepio que não sei explicar.
- Não precisa se preocupar. O corte foi superficial. Vai desaparecer em alguns dias – declara ele, tirando a mão do meu queixo – você devia denunciar essas meninas.
- Eu não vou fazer isso! – disparo, com a voz esganiçada.
- Você precisa. O que elas fizeram é muito grave – ele fala com intensidade.
Sei que ele está certo. Mas não posso fazer isso. Denuncia-las só as deixariam mais furiosas. Se uma brincadeirinha inocente fez com quem que elas quase retalhassem a minha cara, o que uma denuncia séria poderia desencadear? Um tiro? Não duvido de mais nada.
Balanço a cabeça em negativa.
Eric suspira, desanimado, não querendo iniciar uma discussão.
Uma mulher rechonchuda com um carrinho grande entra no corredor em que estamos e para perto da seção do arroz. Não tinha reparado até então que o corredor estava vazio.
Levanto do banquinho e entrego o copo para Eric.
- Obrigada pela água – ajeito a mochila nas costas, pensando banalmente que minhas barras de chocolate devem estar em migalhas a essa altura.
Contorno ele e uma mesa com vários utensílios de cozinha e aí paro. Daqui posso ver a entrada, com sua rua movimentada do lado de fora onde um carro passa atrás do outro.
E se elas estiverem lá fora, em algum lugar, esperando por outra oportunidade de me pegar? Talvez em uma rua mais erma, onde ninguém apareça do nada para me salvar.
Nunca tive medo de andar sozinha. Neste momento, não posso nem sair do lugar de tão apavorada que estou.
- Você gostaria que eu te acompanhasse até sua casa? – Eric se oferece atrás de mim – você mora perto daqui?
Me viro, e aperto os lábios. Estava pensando nisso. E que sorte que ele se ofereceu, porque eu não teria coragem de pedir.
- Sim, minha casa fica a uns 10 minutos daqui.
- Tudo bem, eu vou com você – ele põe as mãos nos bolsos na calça jeans e começa a andar.
- Espera, você não tem que trabalhar? – eu o lembro andando ao seu lado, tentando acompanhar seu passo, porque me esforçar muito dói.
- Eu vou tirar uma pausa – ele fala simplesmente.
Atravessamos o mercado. Chegando perto da entrada, Eric para num balcão, onde uma mulher com cabelos curtos e cacheados e pele bronzeada, está mexendo em alguns papéis.
- Ângela! – ele chama a atenção da mulher, que veste um camisa do mercado semelhante a dele.
Ângela ergue os olhos dos papéis para Eric, e sorri. Um sorriso autenticamente simpático.
- Oi, Eric. Algum problema?
- Então, a minha amiga aqui, foi assaltada aqui no beco de trás e está com muito medo de ir para casa sozinha. E eu queria saber se posso tirar uma pausa para acompanhá-la até lá – ele dá um sorrisinho que é uma mistura de respeito e humildade.
Ângela arregala os olhos, com essa notícia
- Ai, meu Deus! Ela foi assaltada? Você está bem? – ela se dirige a mim, segurando no meu ombro por cima do balcão com ternura e uma preocupação evidente em sua voz.
- S-sim – gaguejo, não sabendo bem o que falar. Não sabia que Eric iria inventar essa mentira, e não sou muito boa em improvisar. De qualquer forma, isso pode demonstrar que estou abalada por ter sido assaltada, o que é praticamente a verdade.
- Ela está bem – Eric vem em meu socorro - só levaram o celular dela. Já lhe dei um copo de água com açúcar. Ela só precisa de alguém para acompanhá-la. Posso ir?
Ângela pondera, batucando a caneta que está na sua mão no balcão e torcendo a boca pintada de rosa fúcsia.
- Tudo bem. Pode tirar uma pausa – ela concede – mas é só dessa vez, e só porque sua amiga foi assaltada. Não se acostuma – ela aponta um dedo pra ele, para não perder sua autoridade – e volte rápido!
- Valeu, Ângela – ele se inclina sobre o balcão e dá um beijo na bochecha dela, com um sorriso enorme na cara – pode deixar. Volto já.
Ele põe a mão nas minhas costas e me conduz para fora do mercado.
- Vai ficar tudo bem, querida – ela me garante, com doçura.
- Obrigado – digo, contagiada por sua simpatia. Dou tchau para ela antes de sair.
Fora da região do mercado, me afasto da mão do Eric.
Percorremos o caminho para minha casa em silêncio. Lado a lado, porém, a uma certa distância um do outro. 10 minutos se assemelham a uma hora.
Entramos na minha rua e eu paro a meio caminho de chegar na minha casa.
- Ali fica a minha casa – aponto para a casa no final da rua sem saída – vou ficar bem a partir daqui. Pode voltar para o seu trabalho. E... Obrigada por... Me salvar – minha voz sai meio grossa, como se eu estivesse com raiva do que ele fez ao invés de agradecida.
Ele assente, com as mãos no bolso.
- Não foi nada – ele chuta uma pedrinha no chão, meio acanhado – tchau.
Eric acena e se vira de costas, refazendo o caminho para o supermercado.
- Tchau – falo com a voz baixinha, seguindo adiante.
Falta pouco para chegar em casa. Mais uns passos. Mais uns passos e posso me jogar na minha cama e desatar a chorar.
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