Passo o resto da semana em alerta, olhando para os lados e para trás aonde quer que eu vá, - indo para a escola, voltando da escola, andando pelos corredores, na hora do intervalo - temendo o momento em que Eliza e a sua gangue venha me atacar.
E apesar dos olhares ambíguos e as caras feias, nada acontece. Ninguém vem atrás de mim, nem dentro e nem fora da escola.
Na sexta-feira, já respiro aliviada. Concluo que nada vai acontecer afinal. Se elas não fizeram nada até agora, não vão fazer mais. E pensar que eu fiquei neurótica a semana toda por causa da Julia. Não falo com ela desde o dia da confusão, e não estou pretendendo falar nem tão cedo.
Estou na última aula de sexta-feira, que é a de artes. O professor passou um trabalho em sala de aula, e com forme os alunos fossem terminando, eles podiam ir embora. Desse jeito, me vejo sendo a última a ficar na sala, por não ter feito o trabalho.
Faltando dez minutos para acabar a aula, Heitor olha para mim com um olhar apático, e pergunta:
- Não terminou o seu trabalho, Samantha?
Pego meu caderno de desenho, que estava aberto em uma folha em branco em cima da mesa – para fingir que eu estava fazendo alguma coisa – e o fecho e guardo na mochila.
- Na verdade, eu nem comecei – admito, guardando o resto das minhas coisas que estão em cima da mesa.
Heitor parece ficar decepcionado, ainda que não surpreso.
- Não consigo entender – ele fala, tampando uma caneta azul e a destampando outra vez – você costumava ser minha melhor aluna. Nunca deixava de entregar um trabalho e sempre era a primeira a terminar.
- Falou bem, professor, eu era sua melhor aluna. Não sou mais – ponho a mochila nas costas e levanto da carteira, me dirigindo para fora da sala, mesmo sem ter sido dispensada.
Heitor suspira.
- Bem, se você continuar desse jeito, vai ficar com zero nesse semestre – ele me alerta, como um amigo – e tenho certeza que a minha matéria não vai ser a única.
Dou de ombros. Ele está certo. Venho fazendo corpo mole em todas as matérias, não entregando trabalhos, não me esforçando nas provas. É muito provável que eu repita o ano, mas não estou nem aí.
- Samantha – ele me chama, no momento que contorno a carteira da frente e passo pela dele para ir para a porta.
Paro na frente do quadro negro, voltada para ele. Não quero ouvir o que ele tem para dizer, e também não quero ser rude. Heitor ainda é um professor legal.
- Eu me importo com os meus alunos. E me importo com você. Não quero ver você se afundando. Você tem que se esforçar um pouco.
Olho para o Heitor, e por um instante me permito me colocar no lugar dele. Deve ser difícil ver um aluno que era tão bom, tão dedicado, se tornar um aluno ruim e desinteressado. Muitas garotas morrem de amores pela beleza de Heitor. Só que ela vai além da aparência. Por trás dos olhos azuis, da cara de modelo e do porte atlético, há uma pessoa boa e gentil.
De todos os professores, ele é o único com quem me importo de agir como estou agindo. Bem, não o bastante.
- Lamento, não posso fazer nada por você – declaro, dando as costas para ele e saindo da sala.
***
Saio da rua que dá acesso a escola, para a avenida acima dela, no meu caminho habitual para casa. De alguma forma, a conversa com Heitor mexeu comigo, e meu humor ficou péssimo. Sinto o vazio se intensificando e um desânimo me dominando. Preciso de alguma coisa para me animar.
Passo na frente de um supermercado e decido entrar. É o mesmo mercado por onde já passei diversas vezes fazendo esse caminho, e o engraçado é que entrei nele pouquíssimas vezes. Prefiro comprar besteiras no mercado que fica mais perto da minha casa. Hoje, porém, a minha vontade por uma barra de chocolate é tão grande que não consigo esperar. Quero ir comendo o chocolate no caminho.
Deslizo pela entrada do mercado e me encaminho para o corredor mais próximo, antes que o funcionário que está na frente do mercado decida encrencar com a minha mochila e exigir que eu a guarde no guarda-volumes. Dou uma olhada rápida nos produtos de limpeza e sigo para os fundos, indo para o próximo corredor. Massa de macarrão, molhos... nada de chocolate. O corredor depois desse também não tem o que eu quero. Vejo outro funcionário do mercado repondo pacotes de miojo em uma prateleira e decido perguntar a ele aonde fica os bombons e barras de chocolate.
- Com licença, o senhor pode me dizer aonde ficam as barras de chocolate? – pergunto da melhor forma possível ao funcionário.
O cara se vira para mim e por um segundo meus olhos não conseguem acreditar no que estão registrando. Ali, no meio do mercado, está ele de novo.
Eric.
Só pode ser brincadeira!
- Você de novo!? – exclamo, irritada – tá me perseguindo por acaso?
Ele olha para mim de lado.
- Não. Eu por acaso trabalho aqui – ele aponta para o próprio peito, para a camisa azul e vermelha com a logomarca do supermercado.
Fico um pouco sem graça. Acabei falando sem pensar. Mesmo assim, não quero perder a compostura.
- Pensei que você trabalhasse naquela boate – retruco.
- Lá eu só trabalho nos finais de semana – ele explica, pacientemente – de segunda a sexta, eu trabalho aqui, depois da escola. Mas o salário é muito pouco, por isso eu trabalho na boate pra angariar uma renda extra.
Ergo as sobrancelhas. Muitos estudantes com mais de 16 anos trabalham. Só que nunca ouvi falar de um estudante que trabalhasse em dois empregos.
- Seus pais não trabalham? – pergunto antes de me dar conta do que estou falando.
Suas feições se endurecem no mesmo instante.
- Eu moro sozinho – ele meio que resmunga, voltando a colocar os pacotes de miojos da caixa para a prateleira – as barras de chocolate ficam no corredor ao lado – ele fala sem olhar para mim.
Tudo bem, o momento ficou estranho. Que idiota que eu fui! Que tipo de pergunta foi aquela? É claro que ele mora sozinho, eu já vi a casa dele! E mesmo se não tivesse visto, isso não é da minha conta!
Sem dizer nada, me viro e volto o caminho que fiz e vou para o corredor ao lado. Finalmente, no finzinho do corredor, encontro a seção de chocolates.
Enquanto escolho o que vou levar, fico com a sensação ranheta de que Eric está me olhando. Me pego duas vezes olhando para trás, para não ver ninguém além de uma senhora gorda da terceira idade e uma mulher com um bebê de colo.
Escolho três Barras de chocolate, duas de chocolate ao leite e uma de chocolate branco e as levo para o caixa logo a frente, que está vazio. Pago pelo chocolate e saio do supermercado, retomando meu caminho.
No entanto, o garoto não sai do meu pensamento. Não de uma forma romântica, e sim de uma forma chata e irritante.
Antes de vê-lo naquela boate, eu nem sabia da sua existência. Agora, não consigo não notá-lo. Na escola, pelos corredores, no pátio, tocando aquele violão. Juro que posso ouvir o som do seu violão, nem que seja baixinho, mesmo estando na parte mais distante dele do pátio.
E, ao que parece, ele está sempre no meu caminho também. Me encontrando bêbada na balada, e me levando para casa. Aparecendo na rua e evitando que eu me metesse numa briga. E por último, surgindo no mesmo mercado em que estou.
Para ser sincera, essas coincidências estão me enchendo o saco. Não gosto desse garoto, ele me deixa desconfortável, não sei bem por quê. Só sei que não quero ele por perto.
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