Capítulo 4

Lawrence ouviu que havia alguns demônios que conseguiam criar ilusões, logo esta não era uma decisão que ele poderia fazer facilmente. Holo pareceu se antecipar a isto e falou novamente.

“Bom, eu tenho boa intuição para pessoas e animais. Você é um homem que mantém sua palavra, eu posso afirmar.”

Lawrence ainda não conseguia encontrar espaço entre as perniciosas palavras de Holo. Ele certamente poderia voltar com a sua palavra. Estava percebendo cada vez mais que ela estava brincando com ele, mas não havia nada que ele pudesse fazer.

“Então vou te mostrar um pouco. Uma transformação completa é complicada. Me perdoe se eu transformar apenas o meu braço,” disse Holo, alcançando o fundo da carroça.

Por um momento Lawrence pensou que era um tipo de pose que ela precisava assumir, mas ele logo percebeu o que ela estava fazendo. Estava pegando um grão de trigo do feixe no canto da carroça.

“O que vai fazer com isso?” perguntou Lawrence sem pensar

Antes que pudesse terminar de perguntar, Holo pôs o grão de trigo em sua boca e, fechando os olhos, engoliu como se fosse uma pílula. A casca do caroço não é comestível. Lawrence franziu a testa ao pensar no gosto amargo em sua boca, mas esse pensamento logo desapareceu com a visão que apareceu em seguida.

“Uh, uughh...” Holo gemeu, agarrando seu braço esquerdo e caindo na pilha de peles.

Lawrence estava quase dizendo alguma coisa — isto não pode ser fingimento — quando um som estranho alcançou os seus ouvidos.

Sh-sh-sh-sh. Era como o som de ratos correndo pela floresta. Isto continuou por um tempo e então encerrou com um baque abafado, como alguém pisando em solo macio.

Lawrence estava tão surpreso que não pode fazer nada.

No instante seguinte, o antigo braço fino de Holo se transformou na pata dianteira de uma grande fera que destoava completamente do restante do seu corpo.

“Mm... bom. Realmente não parece muito bom.”

O membro se tornou tão grande que ela parecia ter problemas para suportá-lo. Ela o repousou na pilha de peles e se ajustou para acomodá-lo.

“Então? Acredita em mim agora?” Ela observou Lawrence.

“Uh... er...” Lawrence estava incapaz de responder, esfregando seus olhos e balançando sua cabeça enquanto encara e voltava a encarar a visão diante dele.

A pata era magnífica e revestida de pelo marrom escuro. Dado seu tamanho, o animal inteiro deveria ser enorme, aproximadamente do tamanho de um cavalo. A pata termina em enormes garras em forma de foice.

E tudo isso vinha do delicado ombro da garota. Seria estranho não pensar que isto era uma ilusão.

Incapaz de acreditar, Lawrence finalmente pegou um pouco de água e jogou em seu próprio rosto.

“Você é bem desconfiado, hein. Se ainda pensa que é uma ilusão, vá em frente e toque,” provocou Holo, sorrindo, fazendo um gesto com sua pata indicando para se aproximar.

Lawrence se percebeu irritado, mas ainda hesitando. Até porque, dado o tamanho do membro, ele dava uma indescritível sensação de perigo.

É a pata de um lobo. Já lidei com itens chamados de Pata de Dragão, Lawrence pensou consigo, aborrecido com sua covardia. E pouco antes da sua mão conseguir tocá-la...

“Oh —” disse Holo, parecendo se lembrar de algo. Lawrence puxou sua mão de volta.

“O qu—! O que foi?”

“Mm, oh, nada. Não fique tão surpreso!” disse Holo, parecendo entediada. Adicionando constrangimento ao medo, Lawrence teve cada vez mais raiva do que ele via ser sua falha como homem. Se controlando, ele esticou a mão novamente.

“Então, o que foi?”

“Mm,” disse Holo calmamente, observando Lawrence. “Seja gentil, pode ser?”

Lawrence não pode evitar de parar a sua mão, dado o repentino comportamento amável da garota.

Ele a olhou e ela olhou de volta, sorrido.

“Você é bastante encantador, não é mesmo?” ela disse.

Lawrence não respondeu enquanto se certificava do que sua mão estava sentindo. Ele estava irritado com o comportamento meio provocante dela, mas havia outro motivo que o deixou incapaz de responder. Obviamente era por causa do que ele estava tocando.

A pata da fera que saia do ombro de Holo tinha ossos tão sólidos quanto um tronco de árvore, envolto por músculos que dariam inveja a qualquer soldado, e cobrindo tudo isso, uma pele marrom escura magnífica, da base do ombro até o fim do membro. Cada almofada da pata era do tamanho de um pão. Para além dos macios dedos rosados havia algo mais espesso — as garras em forma de foice.

A pata era sólida o suficiente, mas aquelas garras eram qualquer coisa menos uma ilusão. Além da sensação nem quente nem fria das garras de um animal, Lawrence sentiu um arrepio da sensação de que isto não era algo que ele deveria estar tocando.

Ele engoliu em seco. “Você é mesmo uma deusa...?” murmurou.

“Não sou nenhuma deusa. Como pode ver pelo tamanho da minha pata, sou apenas maior que meus companheiros — maior e mais esperta. Eu sou Holo, a Sábia Loba!”

A garota que confiantemente se chamou de “sábia” olhava para Lawrence orgulhosamente. Cada pedaço da garota era esperteza — mas a aura que o membro de fera emanava não era algo que um simples animal seria capaz. Não tinha nada a ver com o tamanho da coisa.

“Então, o que acha?”

Lawrence assentiu vagamente à pergunta. “Mas... a verdadeira Holo deveria estar em Yarei agora. A loba reside em quem colhe o último feixe de trigo, eles dizem...”

“Heh-heh-heh. Eu sou Holo a Sábia Loba! Eu sei bem as minhas limitações. É verdade que vivo no trigo. Sem isso, não posso viver. E também é verdade que durante a colheita eu estava no último trigo a ser colhido e, normalmente, não posso escapar de lá. Não enquanto alguém estiver olhando. Entretanto, há uma exceção.”

Lawrence ouviu a explicação, impressionado com a resposta imediata.

“Se nas redondezas houver um feixe de trigo maior que o último colhido, posso me mover despercebida para este trigo. É por isso que eles dizem, sabe, os aldeões. ‘Se você colher com ganância, não vai pegar o deus da colheita, ele vai escapar’.”

Lawrence encarou sua carroça e subitamente percebeu. Havia um feixe de trigo — o trigo que recebeu da vila na montanha.

“E foi assim que aconteceu. Suponho que poderiam chama-lo de meu salvador. Se você não estivesse lá, eu jamais teria escapado.”

Embora Lawrence não conseguisse realmente acreditar nessas palavras, seu poder de persuasão cresceu quando Holo engoliu mais alguns grãos de trigo e voltou seu braço ao normal.

Porém, Holo falou “salvador” com certo desgosto, então Lawrence decidiu se acertar com ela.

“Talvez eu devesse levar este trigo de volta à vila. Eles terão problemas sem sua deusa da colheita. Sou amigo de Yarei e de outros em Pasloe faz bastante tempo. Não gostaria de vê-los sofrer.”

Ele inventou esta desculpa na hora, mas quanto mais pensava nisso, mais verdadeiro se tornava. Se esta Holo for a verdadeira Holo, a vila não começaria a sofrer com pobres colheitas?

Em pouco tempo, seus questionamentos se encerraram.

Holo olhava para ele como se estivesse abalada.

“Você... você só pode estar brincando, certeza,” ela disse.

Sua resposta subitamente frágil deixou o mercador indefeso.

“Difícil dizer,” Lawrence disse vagamente, tentando esconder seu conflito interno e ganhar algum tempo.

Mesmo que sua cabeça se enchesse com outras preocupações, a melhor saída seria leva-la de volta à vila. Fazia negócios com Pasloe há tempos. Ele não os desejava nenhum mal.

Contudo, quando olhava de volta para Holo, sua recente exaltação havia desaparecido completamente — agora estava cabisbaixa, apreensiva como qualquer princesa em nos antigos contos de cavaleiro.

Lawrence fez uma careta e se preguntou: Eu deveria devolver a garota para a vila, mesmo que ela claramente não queira retornar?

E se ela for a verdadeira Holo?

Ele ponderou a questão a sangue frio, as duas alternativas lutando em sua cabeça.

Logo ele percebeu alguém olhando para ele. Ele seguiu o olhar de volta e viu Holo o encarando em súplica.

“Por favor, você não pode... me ajudar?”

 Incapaz de suportar a visão de uma Holo tão mansa baixando sua cabeça, Lawrence deu de costas. Tudo o que via, dia após dia, era as costas de um cavalo. Esta vida o deixou totalmente incapaz de resistir a uma garota como Holo o encarando assim.

Agonizando, ele fez uma decisão.

Se virou vagarosamente em direção a Holo e a fez uma única pergunta.

“Devo te perguntar uma coisa.”

“... tudo bem.”

“Se você deixar a vila, eles conseguirão cultivar trigo?”

Ele não esperava que Holo respondesse de forma a prejudica-la nesta situação, mas ele era um mercador. Já havia lidado com várias pessoas desonestas até aqui. Ele acreditava que perceberia se Holo tentasse mentir.

Lawrence se preparou para perceber o deslize que tinha certeza que ela faria, mas não houve nada.

Quando a observou, ela tinha uma expressão completamente diferente do que havia visto até agora; ela parecia furiosa e quase em lágrimas enquanto olhava para o canto da carroça.

“Er... qual o problema?” Lawrence teve que perguntar.

“As colheitas abundantes da aldeia vão continuar sem mim”, ela disparou, sua voz exalava fúria.

“É mesmo?” perguntou Lawrence, esmagado pela raiva perfurante que emanava de Holo.

Ela assentiu, os ombros rígidos. Ela apertava as peles com tanta força que seus dedos ficaram brancos com o esforço.

“Por muito tempo fiquei naquela vila; tantos anos quanto os pelos na minha cauda. Eventualmente, eu queria ir embora, mas por causa do trigo da aldeia, eu fiquei. Há muito tempo, sabe, fiz uma promessa com um jovem da vila, que eu garantiria a colheita da vila. E assim mantive a promessa.”

Talvez porque não suportava falar disso, ela não olhava para Lawrence enquanto falava.

Mais cedo, ela falava rápida e claramente, agora ela hesitava incerta.

“Eu... Eu sou a loba que vive no trigo. Meu conhecimento do trigo, de coisas que crescem do solo, não perde para ninguém. É por isso que fiz com que os campos da aldeia fossem tão magníficos, como prometido. Mas, para isso, vez ou outra a colheita deve ser fraca. Forçar a terra para produzir exige compensação. Mas sempre que a safra era ruim, os moradores atribuíam isso aos meus caprichos, e só tem piorado nos últimos anos. Tenho desejado ir embora. Não aguento mais. Já cumpri minha promessa há muito tempo.”

Lawrence entendeu a raiva de Holo. Alguns anos atrás, Pasloe passou a ficar sob os cuidados do Conde Ehrendott, e desde então novas técnicas agrícolas foram importadas do sul, aumentando a produção.

Holo então sentiu que sua presença não era mais necessária.

De fato, havia um boato se espalhando de que nem mesmo o deus da Igreja existia. Não era impossível que a deusa da colheita de um povoado rural fosse envolvida em tal conversa.

“As boas colheitas da vila vão continuar. Haverá uma ruim de vez em quando, mas a culpa será deles. E vão superar isso por conta própria. A terra não precisa de mim, e certamente as pessoas também não.”

Pondo tudo isso para fora de uma só vez, Holo suspirou profundamente e caiu na pilha de peles mais uma vez. Ela se enrolou, puxando as peles ao redor dela e escondendo seu rosto.

Ele não podia ver o rosto para ter certeza, mas não era improvável que ela estivesse chorando. Lawrence coçou a cabeça, incerto sobre o que dizer.

Ele olhou impotente para os ombros esguios e orelhas de lobo.

Talvez fosse assim que os verdadeiros deuses se comportassem: as vezes cheios de arrogância e bravura, as vezes com esperteza e as vezes mostrando um temperamento infantil.

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