“P-por que isso é tão engraçado?”
“Oh, é engraçado sim, ah se é! Com certeza esta é a primeira vez que sou chamada de demônio.”
Ainda rindo consigo mesma, a garota pegou novamente o pedaço de carne e o mastigou.
Ela de fato tinha presas. Adicione suas orelhas e seria óbvio que ela não era uma simples humana.
“O que você é?”
“Eu?”
“De quem mais eu estaria falando?”
“Do cavalo, talvez.”
“...”
Quando Lawrence puxou sua adaga, o sorriso da garota desapareceu. Seus olhos cor de âmbar se estreitaram.
“Quem é você que eu quero saber!”
“Apontando uma faca para mim agora? Que falta de educação.”
“Quê?!”
“Mm. Ah, entendo. Minha fuga foi um sucesso. Minhas desculpas! Eu me esqueci,” disse a garota com um sorriso — um sorriso completamente inocente e encantador.
O sorriso não o abalou particularmente, mesmo assim Lawrence sentiu que apontar uma lâmina para uma garota era algo impróprio para um homem, então ele a guardou.
“Me chamo Holo. Faz algum tempo desde que assumi esta forma, mas, bem, é bastante agradável.”
Enquanto a garota se observava em aprovação, Lawrence estava tão concentrado na primeira parte do que ela falou que ele não ouviu o restante.
“Holo?”
“Mm, Holo. Um bom nome, não?”
Lawrence viajou por todos os lados e por várias terras, mas havia apenas um local onde ele ouviu este nome. Ninguém além do deus da colheita da vila de Pasloe.
“Que coincidência. Eu também conheço alguém que se chama Holo.”
Foi audácia da parte dela usar o nome de um deus, mas pelo menos isso confirmou que ela era de fato uma garota da vila. Talvez a tivessem escondido, sua família a criou em segredo por causa das suas orelhas e presas. Isso se encaixaria com sua afirmação de que a “fuga foi um sucesso.”
Lawrence ouviu falar do nascimento de crianças anormais como esta. Elas eram chamadas de crianças-demônio, e se pensava que um demônio ou espírito as possuíram ao nascer. Se a Igreja as descobrisse elas seriam — junto com suas famílias — seriam queimadas na fogueira por adoração ao demônio. Sendo assim, tais crianças eram abandonadas nas montanhas ou criadas em segredo.
Mas esta era a primeira vez que Lawrence se encontrava com uma destas crianças. Ele sempre assumiu que elas seriam repugnantemente bestiais, mas julgando apenas pela aparência, esta era divina.
“Oh, ho, nunca encontrei outro Holo. De onde ele é?” Enquanto a garota mastigava a carne, era difícil a imaginar enganando alguém. Parecia possível que, como foi criada em confinamento por tanto tempo, ela de fato acreditava ser uma deusa.
“É o nome do deus da colheita desta região. Você é uma deusa?”
Com isso, o rosto da garota, banhado pelo luar, se mostrou levemente consternado por um momento antes de rir.
“Há muito tempo fiquei confinada a este lugar e fui chamada de deusa. Mas não sou nada tão grandioso quanto uma deidade. Sou meramente Holo.”
Lawrence supôs que isso significava que ela esteve presa em sua casa desde que nasceu. Ele sentiu uma certa simpatia pela garota.
“Por ‘muito tempo’, você quer dizer desde que nasceu?”
“Oh, não.”
Esta era uma resposta inesperada.
“Eu nasci bem mais ao norte.”
“Ao norte?”
“Certamente. Os verões por lá são curtos e os invernos são longos. Um mundo em prata.”
Os olhos de Holo se estreitaram enquanto ela parecia contemplar algo distante, e foi difícil imaginar que estaria mentindo. Seu comportamento ao relembrar as terras ao norte foi natural demais para ser uma atuação.
“Você já esteve lá?”
Lawrence se perguntou se ela estava contra-atacando, mas se Holo estava mentindo ou simplesmente repetindo coisas que ouviu de outros, ele teria sido capaz de identificar imediatamente.
Suas viagens, enquanto mercador, de fato já o haviam levado ao distante norte anteriormente.
“Já estive tão longe quanto Arohitostok. Neve durante o ano inteiro é aterrorizante.”
“Hm. Nunca ouvi falar sobre isso,” respondeu Holo, inclinando sua cabeça levemente.
Ele esperava que ela fingisse ter conhecimento. Isto estava estranho.
“Que lugares você conhece?”
“Um lugar chamado Yoitsu.”
Lawrence se forçou a dizer, “Não conheço,” para silenciar a incerteza que crescia dentro dele. Ele de fato conhecia de um lugar chamado Yoitsu, conhecia de uma velha história que ouviu em uma pousada no norte.
“Você nasceu por lá?” Ele perguntou.
“Nasci. Como está Yoitsu hoje em dia? Está todo mundo bem?” Holo perguntou, se encolhendo vagarosamente. Foi um gesto tão efêmero que não poderia ser fingimento.
Mesmo assim, Lawrence não poderia acreditar. Até porque, de acordo com a história, a cidade de Yoitsu foi destruída por monstros com aparência de urso seiscentos anos atrás.
“Se lembra de algum outro lugar?”
“Mmm... faz tantos séculos... ah, Nyohhira, havia uma cidade chamada Nyohhira. Era uma cidade estranha, com fontes termais. Eu ia me banhar com frequência por lá.”
Ainda havia fontes termais ao norte, em Nyohhira, onde nobreza e realeza visitavam frequentemente. Mas quantas pessoas desta área sequer sabiam da sua existência?
Ignorando o confuso devaneio de Lawrence, Holo como se ela estivesse relaxando em uma fonte termal neste exato momento, e então ela espirrou.
“Mm. Não me importo de assumir a forma humana, mas é inevitavelmente frio. Sem pelo o suficiente,” disse Holo, rindo e se escondendo novamente na pilha de peles de marta.
Lawrence não conseguiu se segurar e riu da sua aparência. No entanto, ainda havia algo que o incomodava, então falou com Holo enquanto ela se aconchegava na pilha de peles.
“Você disse algo sobre mudar de forma mais cedo — do que se trata exatamente?”
Com a pergunta, Holo pôs sua cabeça para fora da pilha.
“Se trata exatamente disso. Não assumo a forma humana já tem um tempo. Encantadora, não?” ela disse com um sorriso. Lawrence não teve opção se não concordar, mas manteve um rosto sério ao replicar. A garota poderia fazê-lo perder sua compostura, isto era certo.
“Deixando de lado alguns detalhes, você é humana. Ou então é o quê? Um cachorro em forma humana, como aquelas histórias de cavalos que se tornam pessoas?”
Holo se levantou com a provocação. Dando as costas para ele, o encarou por sobre os ombros e respondeu firmemente.
“Pelas minhas orelhas e cauda, sem dúvida você consegue dizer que uma orgulhosa loba! Meus companheiros lobos, os animais da floresta e as pessoas da vila, todos reconhecem isso. E é da ponta branca da minha cauda que eu mais me orgulho. Minhas orelhas antecipam cada adversidade e escutam cada mentira, eu já salvei muitos amigos de muitos perigos. Quando alguém fala da Sábia Loba de Yoitsu, eles se referem a mim e a mais ninguém!”
Holo ofegou orgulhosamente, mas logo se lembrou do frio e mergulhou de volta às peles. A cauda na base de suas costas estava de fato se movendo.
Então, não apenas orelhas — ela também tinha uma cauda.
Lawrence voltou a pensar no uivo. Aquilo foi um verdadeiro uivo de lobo, sem dúvida. Esta era realmente Holo, a deusa-loba da colheita?
“Não, não pode ser,” Lawrence murmurou para si mesmo enquanto reconsiderava. Ela parecia não se preocupa com ele enquanto estreitava seus olhos nas peles quentinhas. Vendo por esse lado, ela era bastante felina, embora este não seja o problema do momento. Holo era humana ou não? Esta era a questão.
Pessoas que foram efetivamente possuídas por demônios não temiam a Igreja por sua aparência ser diferente — temiam por saber que o demônio dentro delas poderia causar alguma calamidade para qual a Igreja fez questão de divulgar que puniria com morte na fogueira. Mas se ao invés disso, Holo fosse algo como um animal das histórias antigas, ela poderia trazer boa sorte e realizar milagres.
De fato, se ela era a Holo, deusa da colheita, um comerciante de trigo não poderia desejar melhor acompanhante.
Lawrence voltou sua atenção para Holo mais uma vez.
“Holo, não é mesmo?”
Sim?”
Você disse ser um lobo.”
“Disse.”
“Mas tudo o que você tem são orelhas e cauda de lobo. Se você é de fato um lobo transformado, você deve ser capaz de assumir a forma de lobo.”
Holo se distraiu por um momento com as palavras de Lawrence antes de lhe ocorrer uma ideia.
“Oh, está me dizendo para te mostrar minha forma de loba?”
Lawrence assentiu para confirmar, mas na verdade estava levemente surpreso. Esperava que ela se frustrasse ou mentisse. Mas não fez nenhum dos dois, ela apenas se mostrava irritada. Esta expressão de irritação era bem mais convincente — a garantia de que ela poderia se transformar — do que qualquer mentira apressada que ele havia esperado.
“Eu não quero,” disse francamente.
“Porque não?”
“Por que você quer que eu me transforme?” ela mandou de volta.
Lawrence estremeceu com a represália, mas a questão sobre Holo ser humana ou não era importante para ele. Se recuperando do deslize, Lawrence pôs tanta confiança quanto conseguiu em sua voz, tentando recobrar a iniciativa da conversa.
“De você fosse uma pessoa, eu consideraria te entregar para a Igreja. Afinal, demônios trazem desgraça. Mas se você for de fato Holo, a deusa da colheita, em forma humana, então não precisarei te entregar.”
Se ela for autêntica, claro — contos de animais que se transformam e agem como emissários de boa ventura ainda existiam. Longe de denunciá-la como demônio, ele alegremente a ofereceria pão e vinho. Caso contrário, a situação seria bem diferente.
Enquanto Lawrence falava, Holo enrugou seu nariz, sua expressão ficava cada vez mais sombria.
“Pelo que eu ouvi, esses animais podem mudar sua forma original. Se estiver dizendo a verdade, você deveria ser capaz de se transformar, certo?”
Holo escutou com a mesma expressão irritada. Enquanto isso ela suspirou suavemente e lentamente se levantou da pilha de peles.
“Eu sofri muitas vezes nas mãos da Igreja. Não serei entregue a eles. Mesmo assi—”
Ela suspirou de novo, afagando sua cauda enquanto continuava. “Nenhum animal consegue mudar sua forma sem uma retribuição. Mesmo vocês humanos precisam de cosméticos para mudar sua aparência. Da mesma forma, eu exijo comida.”
“Que tipo de comida?”
“Apenas um pouco de trigo.”
Isso parecia de certa forma razoável para a deusa da colheita, Lawrence teve que admitir, mas a próxima declaração o pegou desprevenido.
“Isso ou sangue fresco.”
“Sangue... fresco?”
“Mas é só um pouco.”
O tom casual fez Lawrence perceber que ela não estava mentindo; com sua respiração presa, ele olhou para sua boca. Um pouco antes, ele viu presas por trás destes lábios morderem a carne que ele deixou cair.
“O quê, está com medo?” falou ao ver a perturbação de Lawrence e riu pesarosamente. Lawrence teria dito “Claro que não,” mas Holo claramente antecipou sua reação.
Mas assim que o sorriso desapareceu da sua face, ela desviou o olhar. “Se estiver, é mais um motivo para eu recusar.”
“Por quê?” Lawrence perguntou, pondo mais força em sua voz, vendo que estava sendo ridicularizado.
“Porque certamente você vai tremer de medo. Todos, seja humano ou animal, olham para a minha forma e se afastam com temor, me tratam diferente. Me cansei desse tratamento.”
“Está me dizendo que eu teria medo da sua verdadeira forma?”
“Se pretende fingir ser forte, primeiro esconda esta mão tremendo!” Holo falou exasperada.
Ele olhou para as mãos, mas quando percebeu o erro já era tarde.
“Heh. Você é do tipo honesto,” disse uma Holo contente, mas antes que Lawrence pudesse oferecer uma desculpa, ela ficou séria novamente e continuou, rápida como uma flecha. “Entretanto, só porque é honesto não quer dizer que mostrarei minha forma. O que você disse antes era verdade?”
“Antes?”
“Aquilo de que, se eu for mesmo uma loba, não vai me entregar para a Igreja.”
“Mm...”
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Atualizado até capítulo 118
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