Ponto de Vista: Aurora
A derrota da chaleira me deu três dias de paz. Três dias para me convencer de que Lucas era apenas um vizinho estranho com dinheiro demais e um complexo de salvador. Três dias para respirar e voltar ao meu isolamento.
Eu estava terminando um logo complicado para uma startup de tecnologia – o tipo de trabalho que pagava minhas contas e exigia foco absoluto. Minhas mãos estavam suadas no mouse, e a tela do computador era a única coisa no mundo que importava
E foi aí que o mundo acabou.
Não com um barulho, mas com um silêncio opressor. O computador desligou. O ar-condicionado parou. O no-break que eu mantinha para emergências deu um clique irritado e se calou.
Queda de energia.
Não era a primeira vez no prédio antigo, mas era a primeira vez em meses. E justamente no dia da entrega do projeto. Eu tinha vinte minutos para enviar o arquivo final, ou eu perderia o pagamento e, pior, a reputação.
Corri para a janela e olhei para fora. Os semáforos da Avenida Getúlio Vargas estavam acesos. A farmácia na esquina estava iluminada.
A queda era local. Era no meu prédio.
Meu coração acelerou. Não era medo; era pânico. Pânico de perder o controle. Pânico de ser vulnerável. Pânico de falhar e ter que pedir ajuda.
Peguei o celular, liguei para o zelador do prédio, o Sr. José. A caixa de mensagem estava cheia. Liguei para a companhia de energia. A linha estava congestionada. O tempo estava passando. Meu prazo se esgotava.
Eu teria tentado a sorte descendo, mas o elevador estava parado. As escadas eram estreitas e escuras.
Meus olhos voaram para a parede, a divisa silenciosa entre o meu bunker e o mundo de Lucas.
O apartamento dele estava reformando. Era lógico que, para uma obra desse porte, ele teria algum tipo de gerador. Algum tipo de conhecimento sobre a rede elétrica do prédio. Ou, na pior das hipóteses, o telefone do eletricista.
Engoli o pânico. A muralha era importante, mas a sobrevivência vinha primeiro.
Minhas mãos tremiam quando bati na porta 202. Não com a raiva da semana passada, mas com a urgência desesperada.
Lucas abriu a porta. Ele estava de volta ao traje de "engenheiro amador": jeans sujo e uma regata cinza que revelava a força dos braços.
Ele segurava uma garrafa de água e tinha um óculos de proteção na testa.
"Aurora? Aconteceu algo? Você está pálida," ele perguntou, imediatamente focado em mim.
"A luz. Ela... ela caiu. Só no meu andar, ou no prédio todo? Eu não consigo descobrir e—" Eu tive que parar, respirando fundo para não engasgar com as palavras.
Ele olhou para o corredor escuro. "Aqui está tudo certo. Estamos usando o gerador da obra. Mas a energia do prédio é um pesadelo.
O Sr. José vive reclamando."
"Eu tenho vinte minutos," eu disse, sem rodeios. "Vinte minutos para enviar um projeto importante. Preciso de um ponto de energia.
Preciso do número do seu eletricista. Qualquer coisa. Eu... eu não consigo me dar ao luxo de perder este cliente."
Cliente."
Eu esperava que ele ficasse satisfeito com a minha vulnerabilidade. Que ele cobrasse o preço da chaleira devolvida naquele momento.
Mas o rosto de Lucas não expressou triunfo. Expressou foco prático.
"Vinte minutos," ele repetiu, como um plano de missão. "Tudo bem. Entre."
Eu hesitei. Entrar? Na toca do invasor?
"Não, eu não posso—"
"Aurora," ele me interrompeu, com uma autoridade surpreendente, mas sem perder a gentileza.
"Você precisa de energia. Eu tenho. Não vamos perder tempo. Traga seu notebook e carregador."
Eu me senti paralisada. Era contra todas as minhas regras.
"Eu não vou te pagar com favores," eu disparei, garantindo que ele soubesse dos meus limites.
Lucas me deu um olhar que não era de flerte, nem de ofensa. Era de pura paciência.
"Eu sei. Eu só quero que você consiga enviar seu trabalho, vizinha. É só isso."
Eu corri de volta, peguei meu laptop e o carregador. Quando voltei, ele estava parado na porta, esperando.
O apartamento dele era uma bagunça de obra, mas no canto da sala, perto de uma janela enorme que dava para a cidade, havia uma mesa improvisada com uma luminária acesa.
"Conecte aqui. É o gerador," ele instruiu, apontando para uma extensão.
Eu me sentei na cadeira de plástico desconfortável. O monitor acendeu e eu quase chorei de alívio. Comecei a anexar o arquivo, meus dedos voando no teclado.
Lucas se afastou, voltando para os pedreiros e falando com eles em voz baixa sobre o conserto de um encanamento.
Ele não me olhou. Ele não me pressionou. Ele estava ali, o invasor, o homem da classe alta, apenas... me deixando trabalhar.
Quinze minutos. Arquivo enviado.
Confirmação do cliente.
O alívio me atingiu com a força de uma onda. Respirei fundo e fechei o laptop.
"Lucas," eu chamei.
Ele se virou. O óculos de proteção ainda estava na testa.
"Está pronto. O trabalho foi enviado.
Obrigada," eu disse, forçando a palavra "obrigada" a sair. Era a primeira vez que eu a dirigia a ele.
"Perfeito. Fico feliz," ele sorriu, o sorriso dele era cansado, mas genuíno.
"Qual é o preço?" perguntei, ainda esperando a pegadinha. "O que você quer? Dinheiro?
Que eu te dê uma consultoria de decoração?"
Lucas apoiou-se na moldura da porta, e a luz do gerador brilhou em seus olhos.
"Eu não quero o seu dinheiro, Aurora. E não, não quero que você se sinta obrigada. Mas..."
Ele hesitou, e meu corpo enrijeceu, esperando o golpe.
"... mas você me deve um café. Não como encontro. Apenas como uma trégua de vinte minutos para você me dizer qual o café moído vale a pena na tal 'A Esquina'."
Ele não pediu um encontro. Pediu uma consultoria em público, sob a fachada da dívida trivial que ele mesmo havia criado.
"É só isso?" eu perguntei, desconfiada.
"Só isso. Uma trégua civilizada. Pense bem," ele disse, com a calma dele.
Peguei meu laptop e o encarei. Eu tinha sobrevivido a uma crise por causa dele. Ele tinha o poder de me ferrar, mas escolheu apenas pedir uma conversa com o meu tema.
"Tudo bem," eu disse. "Mas só se for em um lugar barulhento."
Aurora
Lucas
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 47
Comments