Ponto de Vista: Aurora
Se eu achava que o silêncio era opressor, a quietude que se seguiu ao deslizar do meu bilhete por baixo da porta dele era uma tortura.
Era o silêncio que antecede um contra-ataque.
Passei o resto da noite me punindo por ter respondido. Um mero pedaço de papel. Uma dica trivial sobre café.
Mas, para mim, era como ter acendido um fósforo em meu bunker. Eu havia quebrado a regra do isolamento total.
Na manhã seguinte, me forcei a ignorar a porta 202. Saí para uma corrida rápida, voltando antes das 13h, o horário em que a trégua do barulho de Lucas terminava.
Quando voltei, a cena era diferente.
A bagunça na porta dele havia sumido. Havia uma vassoura e uma pá industriais deitadas no chão, mas a soleira estava limpa.
O cheiro de pó e cimento foi substituído pelo cheiro fraco de um produto de limpeza cítrico
E, na minha soleira – no exato local onde o pão havia estado –, havia um objeto.
Não era outro pão. Não era uma flor.
Era uma chaleira elétrica nova, ainda na caixa.
Meu coração acelerou. Olhei em volta, mas não havia ninguém no corredor. Peguei a caixa pesada e entrei, trancando a porta com um clique ruidoso.
Lá estava. Uma chaleira de aço inoxidável, embalada em um plástico bolha. E, presa ao laço da alça da sacola, havia um novo bilhete.
Desta vez, a letra parecia mais apressada, mas ainda elegante.
"Obrigado pela dica do café. É o melhor que já tomei. Uma boa chaleira faz toda a diferença para um bom blend. Pense nisso como a parte do pagamento pela consultoria. L. Guimarães."
Eu estava prestes a explodir. Pagamento pela consultoria?
Eu havia dado a ele uma dica de três segundos. E ele me devolvia um eletrodoméstico que custava no mínimo duzentos reais.
Era desproporcional. Era… ofensivo. Ele estava tentando me colocar em dívida com ele, me fazer sentir obrigada. Ele estava comprando minha paz.
Corri para o telefone, pronta para ligar para a portaria e exigir o número dele. Mas parei. O que eu diria? "Seu vizinho rico me deu um presente muito caro, e eu exijo devolvê-lo!" Eu soaria louca.
A raiva me impulsionou. Abri a porta do meu bunker e bati na porta dele com a força de dez anos de mágoa.
A porta abriu quase instantaneamente. Lucas estava com uma camiseta suada, poeira de obra no cabelo e um sorriso que ele limpou rapidamente ao me ver.
"Aurora? Aconteceu algo com a chaleira? Eu testei antes de comprar, juro que é de alta qualidade."
"Eu não quero a chaleira, Lucas," eu disse, estendendo a caixa com as duas mãos.
"Eu quero que você entenda uma coisa: eu não aceito presentes."
Ele não pegou a caixa. Seus olhos esquadrinharam a expressão tensa em meu rosto.
"É uma chaleira, Aurora. E foi uma troca justa. Uma dica valiosa por um item prático. Não é um pedido de casamento."
Ele se inclinou na porta, a postura relaxada contrastando com a minha rigidez.
"Eu não pedi por isso! Eu te dei uma informação básica.
O que você quer? Que eu venha te dar uma consultoria de decoração?"
Eu mal conseguia controlar o tom sarcástico da minha voz.
Ele franziu o cenho, e seu rosto perdeu um pouco da calma. Pela primeira vez, vi um vislumbre de confusão em Lucas.
"Eu apenas quis ser gentil e retribuir a ajuda," ele disse, com a voz ligeiramente mais baixa.
"Olha, sei que meu trabalho está sendo inconveniente. Pense na chaleira como uma pequena forma de dizer que valorizo você e sua privacidade."
"Se valorizasse minha privacidade, não estaria me dando presentes caros!" gritei, baixinho, para que ninguém mais ouvisse.
"As pessoas que me dão coisas... elas sempre querem algo de volta. E eu não tenho nada para te dar.
Nada."
Ele olhou para a caixa e depois, com mais intensidade, para mim.
Ele entendeu o peso da minha frase. Não era sobre a chaleira; era sobre o trauma.
"Eu acredito em você," ele disse, surpreendendo-me mais uma vez. Ele ergueu as mãos em um gesto de rendição e respeito.
"Tudo bem. Se te faz sentir melhor... eu aceito a chaleira de volta. Mas não porque você me deve algo. E sim porque eu errei ao invadir seu espaço."
Ele pegou a caixa gentilmente das minhas mãos. Seu toque acidental em meu dedo durou menos de um segundo, mas me fez recuar como se ele tivesse me queimado.
"Ótimo. É só isso," eu disse, virando-me imediatamente, sem lhe dar tempo de replicar.
Voltei para meu apartamento e fechei a porta. Meu coração martelava contra minhas costelas. Eu havia vencido a batalha da chaleira.
Mas a vitória era amarga. Lucas não havia agido como um predador. Ele tinha agido como… alguém que se importava com o meu desconforto.
Olhei para a parede vazia e soube que ele estava ali, do outro lado, pensando em mim. E pela primeira vez em anos, meu bunker parecia menos um refúgio e mais uma prisão.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 47
Comments