3 - Perfume e café

Acordei estranha na manhã seguinte, depois de não dormir bem e ficar tentando ouvir Selena voltar para a casa – algo que não consegui.

Ainda era muito cedo, e eu não conhecia os hábitos da minha irmã em uma terça-feira, então me levantei para ir até a cozinha pegar pelo menos um café forte. Eu duvidava que, saindo quase meia noite, Selena estivesse em pé antes das seis horas da manhã como eu.

A casa continuava silenciosa, ainda sem Clara e Regina trabalhando. Nicolas também deveria estar dormindo, assim como seus pais. Eu teria alguns minutos a sós.

Porém, assim que passei pela porta, notei que eu não estava sozinha.

A pessoa que eu mais temia encontrar estava de costas para mim, concentrado em sua cafeteira moderna. Enquanto o cheiro de café inundava o ambiente, cogitei sair lentamente e voltar depois.

Donatello era um homem muito alto, ombros largos e um corte de cabelo degradê, com o topo de um tamanho generoso meticulosamente penteado para o lado. Eu conseguia ver suas tatuagens escapando pela gola e pelas mangas da camisa branca.

Ele se virou antes que eu conseguisse escapar, a testa franzida entregando que estava absorto em seus próprios pensamentos. Seus olhos escuros me encontraram um instante depois e sua expressão se tornou neutra imediatamente.

- Bom dia. - disse educadamente\, em uma voz grave e levemente rouca.

- Bom dia. - respondi baixinho – Eu não queria incomodar o senhor...

- Pelo amor de Deus\, não me chame de senhor. - ele pediu\, levando a xícara de café aos lábios. Reparei em sua barba baixa e bem-feita. - Me chame de Don\, Elora. Eu insisto.

Continuei parada, intimidada demais para pegar café, mas tímida demais para só lhe dar as costas e voltar para o quarto.

- Quer café? - Don ofereceu\, notando que eu continuava parada na porta.

- É\, eu... - gesticulei\, sem graça\, para a cafeteira.

Ele se virou e colocou outra xícara para preparar.

- Clara e Regina começam seus turnos às 7h. - explicou – Quando precisar de algo antes desse horário\, pode vir pegar sem problema algum. Sinta-se à vontade.

Don pegou a xícara de café e andou até mim. Precisei olhar para o alto para encarar seu rosto.

- Certo? - perguntou diante do meu silêncio\, esticando a xícara na minha direção.

- Sim. - concordei\, pegando a xícara com as duas mãos – Eu agradeço por permitir que eu...

- Não agradeça por isso. - ele me cortou – Eu vou acordar o Nic.

Quando Don passou por mim, seu perfume veio em minha direção. Era forte e profundo, remetendo a madeira escura e especiarias secas. Não era doce, era quente. Uma fragrância que tomava espaço, como uma assinatura olfativa.

Engoli meu café rapidamente, sentindo meus sentidos despertando, e voltei para o quarto para me trocar.

- Ai\, não... - gemi ao me olhar no espelho.

Eu estava com o cabelo todo bagunçado. Não sei como Don conseguiu olhar para mim e manter a expressão tão vazia. Eu teria rido se alguém nessas condições estivesse na minha frente.

- Tia Elora! Tia Elora! - escutei Nic chamando.

- Oi\, Nic. - respondi\, saindo do banheiro.

O menino estava gracioso, usando um pijama azul e completamente descabelado.

- Tia\, hoje eu chego mais cedo da escola. Meu pai disse que eu posso assistir um filme depois do almoço. Quer ver comigo?

- Claro que quero. - respondi\, sorrindo – Estarei aqui.

- Isso! - ele comemorou e saiu correndo.

Eu ri baixinho, percebendo que eu já estava me apaixonando por aquele menino. Quando eu fosse embora, certamente sentiria muitas saudades dele.

- Elora...

Me assustei com a voz e me virei, o coração acelerado. Abafei um grito cobrindo a boca com as mãos.

- Desculpe. - Don pediu\, parado na minha porta – Eu só queria dizer que\, se estiver ocupada ou tiver planos\, Nic vai entender. Ele só...

- Eu quero passar esse tempo com ele. - me apressei em dizer.

A expressão de Don vacilou por um instante, tão rápido que fiquei na dúvida se tinha sido real.

- Tudo bem. - ele disse apenas\, se afastando.

Algum tempo depois, quando eu estava sentada na escrivaninha ligando meu notebook, Clara apareceu.

- Bom dia\, senhorita. - me cumprimentou antes de entrar no closet.

- Bom dia. - respondi\, mas ela já havia desaparecido.

Era um pouco desconfortável ter uma pessoa arrumando minhas coisas pessoais desse jeito. Será que esse serviço seria feito sempre desse modo, todos os dias?

Minutos depois, Clara saiu com as sacolas de compras do dia anterior vazias e as roupas sujas que eu havia deixado no cesto. Ela se movimentava com velocidade e eficiência, algo que deveria deixar minha irmã bem satisfeita.

Naveguei um pouco pela internet, consultando as opções de vagas de trabalho.

Eu havia feito a graduação em Secretariado Executivo e me mantido atualizada com cursos de especialização. Meu último emprego fora um desafio, consistia em manter três agendas de diretores simultaneamente. Eram três pessoas difíceis de lidar com rotinas complexas.

Depois de todo o empenho que coloquei, quando um dos diretores faleceu e a filha assumiu, seu marido começou a frequentar a empresa mesmo sem ter cargo algum por lá. Ele começou a inventar desculpas para me procurar e ficar puxando conversas inadequadas, que eu sempre tentava cortar.

No fim, é claro, a nova diretora achou que eu era o problema. A desculpa foi uma restruturação na empresa, mas eu sabia que não era nada disso.

- Aposto que você está fazendo algo chato por aí.

Ergui os olhos para Selena, que estava parada na porta do meu quarto com um sorriso de canto. Ela estava com um roupão elegante envolto no corpo, provavelmente cobrindo uma camisola de renda por baixo.

- Acordou agora? - perguntei\, sondando seu rosto.

- Sim. - ela cruzou os braços na frente do peito – E você não precisa ir de cara para outro emprego chato. Eu sei que tem boas economias e que recebeu dinheiro quando foi demitida\, então só relaxe um pouco e fique perto da sua irmã mais velha.

Não pude deixar de sorrir.

- Tudo bem. Um tempinho sem trabalhar. - concordei.

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