Despedida

Mariana entrou em casa com o peito em chamas, cada lágrima um corte que ardia mais que o anterior. Subiu as escadas como quem foge de um incêndio, mas o fogo vinha de dentro. No quarto, enfim sozinha, desabou contra a parede — e ali, abraçada a si mesma, percebeu que havia acabado de se partir em dois.

O perfume amadeirado de Romeu ainda impregnava sua pele, lembrança cruel da noite que não saía da memória. Cada toque, cada olhar, cada beijo queimava como ferro em brasa, e, mesmo tentando se convencer de que fizera o certo, sabia que tinha perdido algo que não voltaria mais.

Deitou-se na cama sem trocar de roupa, encarando o teto, mas só conseguiu reviver a expressão dele ao partir. Os olhos faiscantes, a voz embargada, a dor contida que refletia a dela. Tapou o rosto com as mãos, mas as lágrimas continuaram escorrendo, teimosas, denunciando o vazio que agora a consumia.

 

Na estrada, Romeu apertava o volante com força, o maxilar travado. A caminhonete rugia sob seus pés, mas por dentro reinava o silêncio mais cruel. O vento da janela aberta batia contra o rosto, tentando levar embora o gosto amargo da despedida, sem sucesso.

A cada quilômetro, sentia como se estivesse se afastando de algo que nunca deveria ter deixado. Mariana. O nome dela latejava como uma ferida aberta. Ele tentava se convencer de que precisava ir, de que não havia espaço para ele naquele mundo de aparências e convenções, mas o coração insistia em contradizê-lo.

Quando avistou as luzes do porto, uma pontada de dor atravessou o peito. A balsa já esperava, pronta para levá-lo de volta à Ilha da Feitoria. Seu refúgio. Seu cárcere. Talvez, pensou, o único lugar onde poderia sufocar o fogo que Mariana acendera dentro dele.

Engoliu o nó na garganta e estacionou. Ficou um instante imóvel, respirando fundo, como se buscasse forças no próprio vazio. Então ligou o motor novamente, conduziu o carro até a fila da balsa e deixou que o destino o levasse de volta para a ilha — mas não havia oceano capaz de afogar o que ele carregava no peito.

Na mansão, Mariana lavou o rosto, trocou de roupa e encarou o espelho como quem encara uma adversária. A maquiagem escondia o inchaço dos olhos, mas não o peso que se instalara no olhar. Precisava descer. Precisava enfrentar o pai.

O salão de jantar estava silencioso quando entrou. Otávio já estava à cabeceira, o copo de vinho entre os dedos, a expressão atenta. Mariana sentou-se ao lado, tentando recompor a postura, mas o corpo ainda tremia; cada passo que dera até ali parecia ecoar como uma denúncia.

— Está atrasada — disse o pai, sem levantar a voz, mas com aquele tom que sempre a fazia encolher por dentro.

— Tive dor de cabeça… — murmurou, evitando o olhar dele.

Otávio ergueu a sobrancelha, estudando a filha com perspicácia. Não comentou nada. Apenas serviu o prato, como se desse tempo para que ela se entregasse sozinha.

Mariana mexeu na comida sem fome, ciente de que Otávio não perderia uma mudança sequer em sua expressão. O silêncio da mesa amplificava cada batida do coração, cada respiração entrecortada. Ela sabia que não podia se deixar fragilizar — não diante dele.

Otávio tomou um gole de vinho, pousou a taça e inclinou-se levemente.

— Então… sobre a proposta de Romeu Félix — disse com calma, mas firmeza. — Não acho que ele vá desistir tão fácil.

Mariana congelou. O garfo quase caiu de sua mão. O coração disparou de novo, como se fosse arrancado do peito.

E naquele instante, percebeu: Romeu podia ter ido embora, mas não estava, nem de longe, fora de sua vida.

_ Não sei porque o senhor diz isso, ele já até foi embora.

_Você está sabendo bastante para quem diz que não sabe nada dele.

Mariana resolveu ficar nervosa e mostrar que não sentia nada, mesmo estando despedaçada por dentro.

_O senhor é quem fica falando desse homem a todo momento, eu só quero esquecer.

Otávio ergueu as mãos em rendição.

_Ok, já entendi. Este assunto se encerrou aqui.

 

A balsa atracou lentamente no porto da Ilha da Feitoria, o barulho metálico das correntes se soltando e ecoando pela madrugada. Romeu saiu da caminhonete assim que a rampa baixou, o olhar duro, a mandíbula travada. O vento salgado do mar bateu contra o rosto dele, mas não trouxe alívio algum.

A ilha, normalmente seu refúgio, parecia agora uma prisão. O silêncio das ruas adormecidas só fazia ecoar ainda mais alto o vazio que carregava no peito.

Quando estacionou diante da casa de madeira que sempre chamara de lar, a luz da varanda já estava acesa. Dona Lurdes esperava, braços cruzados, avental ainda amarrado na cintura. Era como se soubesse que o filho não voltaria no mesmo estado em que saíra.

— Chegou cedo pra quem disse que ia demorar uns dias na cidade — comentou, sem disfarçar o olhar afiado.

Romeu tentou sorrir, mas o cansaço venceu. Passou a mão pelos cabelos, suspirando pesado. — A viagem não saiu como eu planejei.

Ela se aproximou, estudando o rosto dele, como as só mães sabem fazer. — O que foi que aconteceu, Romeu?

Ele desviou o olhar, tirando o chapéu da cabeça e jogando-o sobre a cadeira da varanda. — Nada demais, mãe. Só… um mal-entendido. Conheci alguém que não devia, só isso.

O silêncio de Lurdes foi pior que qualquer sermão. Ela ergueu uma sobrancelha, esperando que ele continuasse.

Romeu respirou fundo, apoiou-se no corrimão de madeira. — É a filha do Otávio Marcondes. Aconteceu… uma noite. Só que ela deixou claro que não vai dar em nada. Que eu não faço parte do mundo dela. — A voz saiu embargada, mas firme. — Então acabou. E não quero que a senhora se preocupe com isso.

Dona Lurdes estreitou os olhos, como se pudesse atravessar o coração do filho com o olhar. Ficou alguns segundos em silêncio, até soltar um suspiro carregado de significado.

— Será? — murmurou, inclinando a cabeça. — Porque eu conheço o brilho nos olhos de um homem marcado por uma mulher. E, pelo que vejo, meu filho… isso ainda está longe de acabar.

Romeu tentou rir, mas o som morreu na garganta. Encarou o chão, os punhos fechados. No fundo, sabia que a mãe tinha razão.

Porque quando uma mulher marca um homem como Mariana o marcou, não existe ilha, nem mar, nem distância capaz de apagar essa cicatriz.

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