A Comandante Mimada
Como isso pôde acontecer?
Às vezes me pergunto se minha mente não está pregando peças. Lembro-me de quando o império em que vivi era belo, vibrante, cheio de música e de vida. As ruas eram iluminadas por risos, os jardins sempre perfumados por flores que pareciam nunca murchar.
Era bom viver ali. Tudo parecia seguro, eterno. E, ainda assim, o que me vem primeiro à memória não são os dias de festa ou as noites nos grandes salões, mas sim a maneira como as pessoas me chamavam:
“A filha mimada do Duque Axen.”
O apelido me fazia rir em segredo. Eu sabia que não passava de um rótulo, um julgamento fácil de quem nada conhecia da minha alma.
No entanto, hoje esse riso soa como ironia amarga. O frio da noite cortou minha pele com a delicadeza de uma lâmina recém-afiada, e a brisa que beija meu rosto me lembra tempos que não voltarão.
É como se o próprio vento tivesse consciência da dor que me habita, acariciando-me com suavidade, quase em um pedido de despedida.
Talvez eu seja, de fato, essa filha mimada. Meu pai, tão rígido e orgulhoso, nunca permitiu que eu participasse das decisões importantes. Eu, que sempre amei observar, estudar, analisar, jamais pude expressar minhas ideias em conselhos de guerra.
Permaneci calada, enquanto meu irmão — o primogênito, o herdeiro, a esperança de nossa casa — marchava para o campo de batalha e não voltava. Minha inteligência foi ignorada, meu coração desprezado. Eu assisti ao colapso de nossa família como uma prisioneira atrás das grades de um palácio dourado.
E agora… o que restou?
Minha casa foi saqueada. Minha mãe, pelo menos, não precisou ver sua família caindo aos pedaços. Meu pai, morto com honra que de nada me consola. Meu irmão, engolido pela lama da guerra.
Tudo — absolutamente tudo — foi arrancado de mim pelas garras gananciosas de um país vizinho que desejava expandir suas fronteiras à custa do sangue de inocentes.
Olho para o céu. O pôr do sol pinta a abóbada celeste de tons alaranjados e rosados, como se zombasse da desgraça que se alastra pelas ruas desertas abaixo de mim. O contraste é cruel: beleza no alto, destruição no chão. As pedras da cidade estão tingidas de vermelho, e o silêncio é quebrado apenas pelo assobio do vento.
Será que minha família está à minha espera, em algum lugar além deste mundo? Será que devo me encontrar com eles agora?
“Posso ser egoísta mais uma vez, papai?”
Pensei, sentindo o peso das lágrimas que ameaçam cair.
Não sou mais Kate Axen. Não sou a filha mimada de ninguém. Sou apenas uma jovem despida de tudo, com as mãos vazias e a alma quebrada. Para quem perdeu tudo, resta apenas a busca pela redenção. E, ainda assim, o medo me paralisa.
O que sei da vida, afinal? Sempre estive protegida por muros, vestida de seda, cercada de sussurros que me bajulam sem conhecer minha dor. Agora, diante do abismo, percebo o quanto sou frágil.
Uma voz suave corta meus pensamentos:
— Jovem dama, afaste-se da janela, poderia se machucar.
Julie.
Minha empregada pessoal, minha confidente, a única alma que permaneceu comigo até o fim. Ela é um anjo em meio ao caos, a única chama de ternura que ainda resiste.
— Julie… esta vista é tão linda — murmurei, com a voz embargada. Uma lágrima escorre e, num impulso, subo na sacada de mármore.
Olho para ela. Seus cabelos negros, presos em uma trança firme, brilham mesmo na penumbra. Seus olhos azuis, vastos como oceanos, refletem preocupação. Sua pele é lisa, sem máculas, como se a guerra tivesse se esquecido de tocá-la. Há nela uma beleza dolorosa, como a de uma flor que desabrocha em meio às cinzas.
— Por favor, jovem dama, não faça isso. Estamos no quinto andar… se cair, morrerá com certeza — sua voz falha. Seus olhos, outrora tão serenos, agora estão turvos de medo e desespero.
Por um instante, penso no quanto sou injusta com ela. Julie é a última que me resta, a única que ainda acredita em mim. E, mesmo assim, estou prestes a feri-la da pior forma. Minhas lágrimas escorrem sem controle, soluços rasgam minha garganta.
— A vida é feita de escolhas… — sussurro para mim mesma — e eu escolho reencontrar minha família, é uma pena que não conseguirei cumprir minha promessa — digo, fitando o céu uma última vez. — Obrigada, Julie… obrigada por permanecer comigo.
— Não… — sua súplica desesperada é a última coisa que ouço antes de cair.
A queda, para mim, não foi rápida. Foi lenta, quase onírica. Não senti o choque contra o chão, nem a dor da morte. Apenas a sensação de ser tragada por águas profundas.
Um oceano escuro e sereno, que me puxava para baixo com suavidade. Era estranho, mas não me afogava. Não havia desespero. Havia conforto.
Quando abri os olhos, já não vestia as roupas ensanguentadas da guerra.
Meu corpo estava envolto em um vestido branco, leve como nuvem. Meus cabelos, antes soltos e desalinhados, agora estavam presos em uma trança delicada. Ao meu redor, um espaço etéreo, suspenso entre sonho e realidade.
Seria este o paraíso? Estaria morta, afinal?
Antes que pudesse me responder, uma figura surgiu diante de mim.
Era eu.
Ou, melhor, uma versão de mim mesma ainda criança. Seus olhos rubros cintilavam sob a luz tênue, e o vestido vermelho que usava parecia feito para destacar a intensidade daquele olhar. Ela me encarava com algo entre compaixão e decepção.
— Estou morta? — perguntei, a voz frágil, quase inaudível. — Finalmente morri?
— Ainda não — respondeu a criança com simplicidade. — Mas por que você morreu?
A pergunta foi como uma adaga.
— Eu queria ver minha família… — murmurei, sentindo um nó na garganta. — Eles sentem minha falta?
A criança suspirou, aproximou-se e pegou minha mão. Seu toque era quente, firme e acolhedor.
— Eles estão chateados.
Guiou-me até uma imensa porta de madeira. Vozes ecoavam do outro lado, como se todos os segredos que eu busquei estivessem ali, aguardando. Meu coração acelerou.
— Minha família está lá? — perguntei, na última esperança de reencontrar aqueles que perdi.
A criança me fitou nos olhos e respondeu com firmeza:
— Salve-os.
As palavras ecoaram como um juramento, enquanto a porta me envolvia em luz. A travessia foi lenta, reconfortante, como caminhar por águas rasas em um verão tranquilo. Ao redor, tudo era turvo, iluminado por brilhos que não indicavam direção alguma.
“Como posso salvá-los?”
O pensamento se repetia, incessante, ao mesmo tempo em que vozes sussurravam, misturando-se aos meus próprios temores.
Poderei, de fato, salvá-los?
— Senhorita, está na hora de levantar. Não deveria dormir tanto assim
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Atualizado até capítulo 35
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