Como isso pôde acontecer?
Às vezes me pergunto se minha mente não está pregando peças. Lembro-me de quando o império em que vivi era belo, vibrante, cheio de música e de vida. As ruas eram iluminadas por risos, os jardins sempre perfumados por flores que pareciam nunca murchar.
Era bom viver ali. Tudo parecia seguro, eterno. E, ainda assim, o que me vem primeiro à memória não são os dias de festa ou as noites nos grandes salões, mas sim a maneira como as pessoas me chamavam:
“A filha mimada do Duque Axen.”
O apelido me fazia rir em segredo. Eu sabia que não passava de um rótulo, um julgamento fácil de quem nada conhecia da minha alma.
No entanto, hoje esse riso soa como ironia amarga. O frio da noite cortou minha pele com a delicadeza de uma lâmina recém-afiada, e a brisa que beija meu rosto me lembra tempos que não voltarão.
É como se o próprio vento tivesse consciência da dor que me habita, acariciando-me com suavidade, quase em um pedido de despedida.
Talvez eu seja, de fato, essa filha mimada. Meu pai, tão rígido e orgulhoso, nunca permitiu que eu participasse das decisões importantes. Eu, que sempre amei observar, estudar, analisar, jamais pude expressar minhas ideias em conselhos de guerra.
Permaneci calada, enquanto meu irmão — o primogênito, o herdeiro, a esperança de nossa casa — marchava para o campo de batalha e não voltava. Minha inteligência foi ignorada, meu coração desprezado. Eu assisti ao colapso de nossa família como uma prisioneira atrás das grades de um palácio dourado.
E agora… o que restou?
Minha casa foi saqueada. Minha mãe, pelo menos, não precisou ver sua família caindo aos pedaços. Meu pai, morto com honra que de nada me consola. Meu irmão, engolido pela lama da guerra.
Tudo — absolutamente tudo — foi arrancado de mim pelas garras gananciosas de um país vizinho que desejava expandir suas fronteiras à custa do sangue de inocentes.
Olho para o céu. O pôr do sol pinta a abóbada celeste de tons alaranjados e rosados, como se zombasse da desgraça que se alastra pelas ruas desertas abaixo de mim. O contraste é cruel: beleza no alto, destruição no chão. As pedras da cidade estão tingidas de vermelho, e o silêncio é quebrado apenas pelo assobio do vento.
Será que minha família está à minha espera, em algum lugar além deste mundo? Será que devo me encontrar com eles agora?
“Posso ser egoísta mais uma vez, papai?”
Pensei, sentindo o peso das lágrimas que ameaçam cair.
Não sou mais Kate Axen. Não sou a filha mimada de ninguém. Sou apenas uma jovem despida de tudo, com as mãos vazias e a alma quebrada. Para quem perdeu tudo, resta apenas a busca pela redenção. E, ainda assim, o medo me paralisa.
O que sei da vida, afinal? Sempre estive protegida por muros, vestida de seda, cercada de sussurros que me bajulam sem conhecer minha dor. Agora, diante do abismo, percebo o quanto sou frágil.
Uma voz suave corta meus pensamentos:
— Jovem dama, afaste-se da janela, poderia se machucar.
Julie.
Minha empregada pessoal, minha confidente, a única alma que permaneceu comigo até o fim. Ela é um anjo em meio ao caos, a única chama de ternura que ainda resiste.
— Julie… esta vista é tão linda — murmurei, com a voz embargada. Uma lágrima escorre e, num impulso, subo na sacada de mármore.
Olho para ela. Seus cabelos negros, presos em uma trança firme, brilham mesmo na penumbra. Seus olhos azuis, vastos como oceanos, refletem preocupação. Sua pele é lisa, sem máculas, como se a guerra tivesse se esquecido de tocá-la. Há nela uma beleza dolorosa, como a de uma flor que desabrocha em meio às cinzas.
— Por favor, jovem dama, não faça isso. Estamos no quinto andar… se cair, morrerá com certeza — sua voz falha. Seus olhos, outrora tão serenos, agora estão turvos de medo e desespero.
Por um instante, penso no quanto sou injusta com ela. Julie é a última que me resta, a única que ainda acredita em mim. E, mesmo assim, estou prestes a feri-la da pior forma. Minhas lágrimas escorrem sem controle, soluços rasgam minha garganta.
— A vida é feita de escolhas… — sussurro para mim mesma — e eu escolho reencontrar minha família, é uma pena que não conseguirei cumprir minha promessa — digo, fitando o céu uma última vez. — Obrigada, Julie… obrigada por permanecer comigo.
— Não… — sua súplica desesperada é a última coisa que ouço antes de cair.
A queda, para mim, não foi rápida. Foi lenta, quase onírica. Não senti o choque contra o chão, nem a dor da morte. Apenas a sensação de ser tragada por águas profundas.
Um oceano escuro e sereno, que me puxava para baixo com suavidade. Era estranho, mas não me afogava. Não havia desespero. Havia conforto.
Quando abri os olhos, já não vestia as roupas ensanguentadas da guerra.
Meu corpo estava envolto em um vestido branco, leve como nuvem. Meus cabelos, antes soltos e desalinhados, agora estavam presos em uma trança delicada. Ao meu redor, um espaço etéreo, suspenso entre sonho e realidade.
Seria este o paraíso? Estaria morta, afinal?
Antes que pudesse me responder, uma figura surgiu diante de mim.
Era eu.
Ou, melhor, uma versão de mim mesma ainda criança. Seus olhos rubros cintilavam sob a luz tênue, e o vestido vermelho que usava parecia feito para destacar a intensidade daquele olhar. Ela me encarava com algo entre compaixão e decepção.
— Estou morta? — perguntei, a voz frágil, quase inaudível. — Finalmente morri?
— Ainda não — respondeu a criança com simplicidade. — Mas por que você morreu?
A pergunta foi como uma adaga.
— Eu queria ver minha família… — murmurei, sentindo um nó na garganta. — Eles sentem minha falta?
A criança suspirou, aproximou-se e pegou minha mão. Seu toque era quente, firme e acolhedor.
— Eles estão chateados.
Guiou-me até uma imensa porta de madeira. Vozes ecoavam do outro lado, como se todos os segredos que eu busquei estivessem ali, aguardando. Meu coração acelerou.
— Minha família está lá? — perguntei, na última esperança de reencontrar aqueles que perdi.
A criança me fitou nos olhos e respondeu com firmeza:
— Salve-os.
As palavras ecoaram como um juramento, enquanto a porta me envolvia em luz. A travessia foi lenta, reconfortante, como caminhar por águas rasas em um verão tranquilo. Ao redor, tudo era turvo, iluminado por brilhos que não indicavam direção alguma.
“Como posso salvá-los?”
O pensamento se repetia, incessante, ao mesmo tempo em que vozes sussurravam, misturando-se aos meus próprios temores.
Poderei, de fato, salvá-los?
— Senhorita, está na hora de levantar. Não deveria dormir tanto assim
Essa voz… eu conheço essa voz.
Julie.
Mas… como?
Abro os olhos devagar, como se o próprio ar ao meu redor fosse pesado demais para me permitir despertar por completo. Minha visão, turva no início, lentamente se ajusta à luz suave que entra pela janela do meu quarto. Meu quarto. Aquele quarto.
Reconheço os cortinados azul-escuros bordados com fios dourados, as paredes decoradas com pinturas que sempre admirei quando criança, o carpete macio sob a cama em que agora repouso.
Eu estava em casa.
Um arrepio percorre meu corpo inteiro, da ponta dos dedos até a espinha. Desvio o olhar para baixo, e a sensação de vertigem toma conta de mim: minhas mãos são menores, mais delicadas, a pele clara ainda sem as marcas da dor e da guerra. Meu corpo não é o mesmo. O coração dispara.
“Eu… voltei?”
Não. Não pode ser. Deve ser um delírio da mente, um último truque antes do fim definitivo. Talvez, em instantes, eu finalmente veja minha família me esperando e poderei descansar.
Mas então, por que… porque Julie está aqui? Por que a escuto tão claramente, como se estivesse viva, preocupada, ao meu lado?
Minha cabeça lateja. Uma dor aguda, pulsante, me obriga a soltar um gemido involuntário.
— Jovem dama Kate? — a voz de Julie treme levemente, tomada pela preocupação. — Está pálida… está doente?
Seus olhos azuis me encaravam como duas luas cheias em uma noite escura. Tão familiares, tão verdadeiros. Eu quase perco o fôlego. Ela está mesmo aqui.
Respiro fundo. O ar é real. O cheiro é real. A cama sob meu corpo é real.
“Então… isso não é um sonho?”
O pânico me toma. Estou mesmo no passado? Estou viva outra vez? E se for isso… então esse é o destino que devo carregar? É assim que devo salvá-los?
Mas eu não quero. Não quero.
O peso do que vivi ainda me dilacera. Não quero sofrer aquilo tudo de novo, não quero reviver cada perda, cada lágrima, cada despedida.
— Julie… poderia me deixar sozinha? — minha voz sai mais fraca do que eu pretendia. — Não estou me sentindo bem.
Preciso pensar. Preciso entender. Como diabos isso aconteceu? O que foi aquela visão? Eu deveria estar morta. Eu escolhi estar morta.
Julie hesita. A lealdade em seu olhar se mistura com a relutância em me abandonar.
— Deseja que eu traga o seu café da manhã? — pergunta suavemente.
Quase deixo que uma lágrima escape. Escutar sua voz… depois de ter me despedido dela minutos atrás, ao saltar daquele maldito parapeito… é como receber uma punhalada no peito e um abraço caloroso ao mesmo tempo.
— Apenas… prepare meu banho. E me deixe sozinha, por favor.
Minha resposta soa fria. Ela não merece esse tratamento. Ela jamais mereceria. Mas eu não posso encará-la agora, não depois do que fiz, não depois de saber que ela sofreu ao me ver desistir. Mesmo assim, sei que ela me perdoaria. Julie sempre me perdoaria.
— Como desejar, jovem dama… — sua voz triste acompanha o ranger leve da porta que se fecha atrás dela.
O silêncio retorna, e então tento organizar meus pensamentos. Preciso de respostas.
Primeiramente, como eu voltei ao passado?
Segundamente, em que época exatamente estou?
Terceiramente, se realmente voltei, significa que meus pais e meu irmão estão vivos?
Levanto-me devagar, ainda tonta, e caminho até o espelho encostado na parede. O reflexo me assusta: sou uma criança novamente. Meus cabelos, mais longos do que me recordava nessa idade, caem pelos ombros em ondas claras. Meus olhos, grandes e vibrantes, parecem carregar inocência, não o peso das mortes que já testemunhei.
Encostei a palma da mão fria no espelho. Esse é o rosto da Kate Elise Axen antes da guerra. Antes da dor. Antes de tudo.
Respiro fundo. Tenho de organizar as ideias. Sei que no futuro o reino de Turlon declarará guerra contra o Império de Rafta logo após minha cerimônia de maioridade. Se estou certa sobre onde vim parar, isso significa que tenho apenas alguns anos para impedir a destruição que se aproxima.
Mas como? Como convencer alguém? Se eu simplesmente aparecer diante de Vossa Majestade e disser:
“O reino de Turlon declarará guerra. Precisamos impedir.”
Serei taxada de louca. Ou pior, de traidora, pois nesse tempo Turlon e Rafta ainda gozam de uma frágil aliança de paz.
Não. Antes de qualquer coisa, preciso de aliados. Preciso de uma posição de autoridade, de poder, para que minhas palavras tenham peso. Mesmo sendo filha de um duque, ainda sou apenas “a filha mimada”.
Não basta. Preciso encontrar uma forma de estar mais próxima do poder… do imperador… e, sobretudo, de impedir que meu pai e meu irmão sejam arrastados para a morte certa.
Estou perdida em pensamentos quando a porta range.
— Jovem dama? — Julie surge, discreta. — Ainda planeja sair para escolher o vestido para o Festival Celeste?
Meu coração dispara. Festival Celeste?
Um estalo me atravessa como um raio. Se eu tenho nove anos agora, então… sim, esta é a época em que o Festival celebra o nascimento do Império de Rafta, sob um céu estrelado que marcou a história.
Se estou certa, este pode ser o ano exato em que eventos improváveis acontecerão. Eu posso usá-los. Posso provar que venho do futuro.
— Julie… quantos filhos Vossa Majestade tem? — pergunto, quase sem pensar.
Ela me olha surpresa, como se minha pergunta fosse absurda.
— Vossa Majestade tem apenas um filho, o príncipe herdeiro Leonardo Armani. A jovem dama não se lembra?
— Claro que me lembro… só queria confirmar — respondo rápido, tentando esconder a euforia.
Um sorriso involuntário escapou de meus lábios. Se Leonardo ainda é filho único, então realmente voltei no tempo certo. Ainda dá para mudar tudo.
Julie faz menção de sair, mas se volta para mim antes:
— Ah, o Duque não tomou café com a Duquesa e o jovem mestre hoje — Meu coração aperta.
Por que papai faltou ao café? Ele sempre fez questão de estar presente.
Antes que eu possa refletir, uma voz familiar ecoa na porta:
— Você também não apareceu, Kate. Mamãe ficou preocupada.
Congelo.
Michael.
Meu irmão.
Lá está ele, apoiado à soleira da porta, ainda jovem, com o mesmo semblante travesso de quando éramos crianças. Faz quase um ano, no futuro, que não via seu rosto antes de sua morte no campo de batalha. Agora, diante de mim, está vivo. Vivo.
Quase choro.
— Não me senti bem hoje — tento disfarçar. — E você? Não deveria estar na aula de esgrima?
Ele suspira, entra no quarto e se senta à beira da minha cama.
— Odeio admitir, mas estava preocupado com você. E… fugir das obrigações de herdeiro de vez em quando não faz mal.
Ele dá um meio sorriso, que me faz lembrar imediatamente do destino cruel que o aguarda.
Mas então, sem saber, ele me ofereceu a chave.
— E esse papo de “comandante do exército”? — resmungou, cruzando os braços.
Meu coração dispara. Claro. Comandante. Essa é a solução.
Levanto num ímpeto.
— Michael… onde está o papai?
Ele me olha, intrigado.
— No escritório. Por quê?
— Você acabou de me dar a resposta que eu precisava. — Dou um beijo rápido em sua bochecha e saio correndo pelos corredores, o coração martelando no peito.
Respiro fundo diante da porta do escritório. Bato suavemente.
— Papai… sou eu, Kate. Posso entrar?
— Entre — responde sua voz grave.
Abro a porta e o vejo.
Roberto Axen. Meu pai.
Ele está exatamente como nas lembranças que guardei com tanto carinho: o longo cabelo branco, o coque bem preso, os óculos constantemente ajustados no rosto. Rodeado de pilhas de papéis, com o ar sempre sobrecarregado de quem carrega não apenas um ducado, mas o peso de toda a família.
Meus olhos ardem. Estou diante dele novamente. Meu pai, vivo.
— Soube que não foi ao café da manhã — diz, erguendo os olhos vermelhos que sempre me hipnotizaram. Diferente dos oceanos pacíficos de Julie, os olhos dele são chamas. Chamas que aquecem, mas também queimam.
Engulo em seco.
— O senhor também não foi. Trabalho demais?
Ele arqueia uma sobrancelha.
— Ser duque exige muito. Mas diga, Kate, o que a traz aqui? Nunca vem ao meu escritório por vontade própria.
Talvez, afinal, eu realmente tenha dado motivos para ser chamada de mimada.
— Tenho… um pedido egoísta. — Tento manter a voz firme, mesmo com meus dedos tremendo.
Ele deixa a pena de lado, retira os óculos e me encara com intensidade.
— Pedido egoísta? É sobre o vestido do Festival? Está sem dinheiro?
— Não é isso! — a ansiedade me faz mover os dedos nervosamente, mas forço-me a parar.
— Então diga logo, filha.
Encho os pulmões de ar, reúno coragem e encarei aquelas chamas rubras sem desviar.
— Eu, Kate Elise Axen, quero me tornar comandante do exército ducal.
Silêncio.
Meu pai não hesita.
— Não.
A resposta é seca, firme, como uma muralha.
Mas eu não posso recuar.
— Estou falando sério.
— E eu também não estou brincando — responde, tomando um gole de chá. — Por que colocaria minha preciosa filha no campo de batalha? Você é inteligente, perspicaz, mas… não nasceu para isso.
Exatamente o contrário. Esse é o meu propósito agora.
— Então me teste — proponho, sentindo a adrenalina percorrer minhas veias.
Ele ergue uma sobrancelha.
— Um teste?
— Sim. Chame o capitão Harry Forms. Peça que me treine. Depois, organize um duelo entre mim e Michael. Se eu vencer, torno-me comandante. Se perder, nunca mais toco nesse assunto.
Por um instante, o silêncio retorna. Ele me observa como se tentasse ler minha alma. E, no fundo, sei que percebe minha mentira quando respondo à sua próxima pergunta com evasivas.
— Você sabe demais sobre o capitão Harry… como?
— Se almejo algo, devo conhecer o caminho — respondo com convicção.
Um sorriso surge em seus lábios. Ele conhece a filha que tem.
— Está bem. Encontre Harry antes de sair para comprar seu vestido. Ele decidirá se vale a pena investir em sua teimosia.
Meu coração quase explode. O primeiro passo foi dado.
Mas junto à euforia, vem o peso da lembrança: Harry Forms… no futuro, ele tentou me proteger quando tudo ruiu. Ele foi um dos últimos a permanecer ao lado de Julie e de mim. Não sei sequer se sobreviveu.
A guerra ainda não começou. Minha mãe ainda vive, embora a doença que a consome nunca possa ser vencida. Michael ainda sorri, ignorando o destino que o aguarda.
E meu pai… meu pai ainda está aqui.
Dessa vez, juro a mim mesma: não vou deixar nada destruir minha família.
Volto para meu quarto com passos firmes, o coração acelerado como se já pressentisse o peso da conversa que estava prestes a ter.
O ambiente ainda guardava o aroma suave das flores frescas que Julie havia colocado em um vaso ao lado da cama, mas nem mesmo o perfume delicado era capaz de aliviar a tensão que dominava meu peito.
Troco rapidamente de vestido, escolhendo um modelo mais sóbrio, de um azul profundo que refletia a seriedade do encontro, e penteio meus cabelos com precisão, como se cada fio arrumado fosse uma forma de manter minha mente sob controle.
Logo, o capitão Harry, do exército Ducal, é anunciado. Ele entra com sua postura impecável, porte militar que exala disciplina e honra.
Sua figura esbelta e olhos atentos sempre me transmitiram confiança — uma confiança que eu já havia sentido no passado, ou melhor, no futuro que vivi.
— Jovem dama Kate, soube pelo Duque que irá ter aulas comigo para se tornar comandante. — Sua voz era firme, porém educada, como um homem que reconhece a formalidade da situação, mas sem deixar de lado a humanidade.
Ordeno, em tom frio, que os empregados se retirem.
A sala fica em silêncio, apenas o som do bater das portas ao se fecharem ecoa pelo ambiente. Harry me olha, confuso, franzindo as sobrancelhas. Espero alguns instantes, certificando-me de que não há ninguém espiando ou escutando atrás das cortinas pesadas, e só então decido abrir a boca:
— A informação que irei passar é extremamente confidencial... e nem mesmo o Duque deve saber dela.
Ele se aproxima, surpreso, mas atento.
— Informação? — repete, com uma mistura de dúvida e curiosidade.
Respiro fundo, sentindo um arrepio percorrer meu corpo. A revelação era um peso que só eu carregava.
— Daqui a nove anos, uma guerra será declarada. — Minha voz treme, mas não hesita. — Turlon irá trair a aliança com Rafta e nos atacar sem piedade.
O capitão estreita os olhos, tentando absorver o que acabara de ouvir.
— Isso é algo muito sério, senhorita... como poderia saber de algo assim?
Mesmo que a incredulidade estivesse em suas palavras, sua postura não era de desprezo. Ele me escutava, ignorando o fato absurdo de ser uma criança de nove anos falando como uma veterana.
— Porque eu vim do futuro. — A confissão faz seu semblante congelar, seus olhos antes serenos agora chocados.
Levanto o queixo, sem recuar.
— Não precisa acreditar em mim agora. Vou provar minha origem no Festival Celeste, quando revelarei acontecimentos inevitáveis. Mas antes... preciso de dois favores.
Ele cruza os braços, refletindo. Mesmo relutante, concorda.
— O primeiro é que me ensine verdadeiramente a lutar esgrima. Não como uma dama em aulas superficiais, mas como um soldado que precisa sobreviver.
— E o segundo? — Sua voz carrega um peso de cautela.
— Que marque uma reunião com o príncipe herdeiro Leonardo Armani.
Harry arqueou as sobrancelhas, confuso.
— Uma reunião com o príncipe herdeiro?
Assinto, firme.
— O que irei revelar sobre o Festival tem mais relevância para ele do que para você. Além disso, mesmo que me torne comandante do exército Ducal, não terei voz suficiente por ser inexperiente... e por ser mulher.
Preciso do apoio dele. — Ergo minha xícara de chá e tomo um gole, a fim de esconder a emoção em minhas mãos trêmulas. — Você e o príncipe deverão ser os únicos a conhecer meu segredo.
É a única forma de prevenir a morte do meu pai e do meu irmão, e ainda garantir a vitória de Rafta.
O silêncio pesa. O capitão me encara, sério, mas consigo notar a sombra da compaixão em seus olhos.
— O duque e o jovem mestre morrem nessa guerra?
— pergunta, quase hesitando em ouvir a resposta.
Fecho os olhos por um instante. A lembrança ainda queima como ferro em brasa.
— Sim. Do nosso ducado, só restaram eu e minha empregada Julie... Você mesmo me ensinou esgrima por ordem do meu pai, mas depois de ser convocado não tive mais notícias suas. Nem sei se sobreviveu.
Harry inspira fundo, e sua expressão endurece.
— Se o que diz for verdade, deve ter sido... insuportável.
Seus olhos não demonstravam pena, mas no fundo eu sabia que era exatamente isso. Se fosse o contrário, eu também sentiria o mesmo.
— Não sei como, mas me deram uma segunda chance. Eu preciso fazer a diferença desta vez. — Minha voz quase falha, mas encontro forças no meu próprio juramento interno.
Ele se aproxima um passo, baixando o tom.
— Não se preocupe, senhorita. Não falarei ao Duque.
Um sorriso escapa em meus lábios, pequeno, mas sincero.
— Obrigada, Harry. Agora preciso ir comprar o vestido para o Festival... e roupas de treino.
Levanto-me, encerrando a conversa.
[...]
A loja “Emma” era nova, refinada, e já competia com as mais tradicionais da capital. As vitrines exibem vestidos tão exuberantes que ofuscavam até mesmo os olhares mais acostumados ao luxo. Não pude evitar o incômodo: depois de ter sobrevivido à fome e à guerra, cercada de miséria, aquelas sedas cintilantes pareciam... irreais. Supérfluas.
— Boa tarde. Sou Caroline, uma das atendentes. A jovem dama tem algum modelo em mente? — perguntou uma mulher esguia, de sorriso ensaiado, assim que entramos.
Olhei ao redor, sem entusiasmo.
— Vestidos para o Festival Celeste... e roupas para treino de espada.
Ela piscou, surpresa, mas retomou o sorriso profissional.
— Infelizmente não trabalhamos com roupas de esgrima femininas, mas temos modelos deslumbrantes para o Festival. Por favor, me acompanhem.
Julie agradeceu com um aceno e respondeu por mim quando a atendente perguntou se eu preferia ver o catálogo ou tirar medidas.
— Primeiro o catálogo.
Enquanto folheamos as páginas brilhantes, carregadas de bordados e pedrarias, eu só pensava na simplicidade que a sobrevivência me ensinara. Escolhemos um vestido digno, mas não espalhafatoso.
Quanto às roupas de treino, tivemos que procurar em outras lojas. Foi assim que minha tarde inteira se esvaiu — entre tecidos, provadores e o peso de uma vida que eu já não sentia ser minha.
Na manhã seguinte, encontrei Harry no campo de treinamento que haviam preparado para mim. O vento carregava o cheiro da madeira recém-polida e da terra batida. Antes de começarmos, ele quis conversar.
— Se já treinou comigo, qual foi a primeira regra que ensinei? — perguntou, enquanto eu me alongava.
— Nunca abaixar a guarda. — Respondi sem pensar.
Aquela frase ainda ecoava em mim como a primeira lição de sobrevivência.
Ele assentiu.
— Exato. Você pode conhecer o futuro, mas lembre-se: ao mudar um evento, cria-se um espaço para o desconhecido.
Assenti.
— Ainda tenho nove anos para planejar cada passo.
E agora, tenho você. Logo terei o príncipe também.
Ele me entregou uma espada de madeira.
— Então me diga, o que mais ensinei?
— O básico da esgrima, truques e como perceber a presença de alguém.
Harry riu baixo.
— Veremos se seu corpo se lembra.
E começamos. Cada movimento doía em músculos adormecidos pelo sedentarismo infantil. Meu corpo já não era o mesmo da mulher que sobrevivera à guerra. Mas a dor era bem-vinda. Era o lembrete de que eu estava viva... e desta vez, preparada.
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