CAPÍTULO 2- VOZES NO ESPELHO

O relógio marcava sete da noite quando Caio chegou ao prédio comunitário onde aconteciam os encontros do grupo de apoio. O ar estava fresco, e um burburinho suave vinha da sala principal. Ao abrir a porta, foi recebido por sorrisos, abraços e o calor humano que sempre tornava aquele espaço diferente do resto do mundo.

Marina, firme como sempre, estava à frente, organizando as cadeiras em círculo. Usava uma blusa azul vibrante e brincos longos que balançavam enquanto falava. Sua presença preenchia o ambiente de forma quase magnética.

— Boa noite, gente! — disse, assim que todos se acomodaram. — Lembrem-se: este é um espaço de escuta, respeito e coragem. Aqui, ninguém precisa fingir nada.

As palavras de Marina ecoaram fundo em Caio. Ela não era apenas a coordenadora do grupo. Era referência, guia e quase um farol. Uma mulher trans de cinquenta e poucos anos, que já havia atravessado dores que muitos ainda temiam enfrentar. Perdera amigos, empregos e até a casa quando decidiu viver sua verdade, mas nunca desistira. Transformara a própria história em um caminho aberto para os outros.

Caio lembrava bem da primeira vez em que a conheceu.

Flashback

Foi numa tarde de inverno, quando um cartaz colado no portão do centro comunitário chamou sua atenção: “Encontro de Acolhimento — Todos Bem-Vindos”. Entrou tímido, com as mãos enfiadas no bolso do casaco, coração acelerado. A sala era pequena, as cadeiras dispostas em círculo. No centro, Marina falava com uma voz aquecida por risos e silêncios partilhados.

“Eu perdi muita coisa quando escolhi ser eu”, dizia. “Perdi casa, perdi emprego, perdi amigos. Mas também ganhei a mim mesma. E, no fim, percebi que não era uma escolha entre ser feliz e ser autêntica. Era aprender a juntar as partes.”

Ela olhou ao redor, sorrindo, e aquele sorriso atravessou a carapaça de medo que Caio carregava.

No intervalo, enquanto os outros conversavam em pequenos grupos, Caio ficou parado junto à parede, tentando controlar a respiração. Marina percebeu, aproximou-se com calma e estendeu a mão.

— Vem cá, quero ouvir sua parte.

Ele falou pouco, quase nada. Mas ela ouviu como se fosse muito. Antes de ir embora, Marina entregou-lhe um envelope amassado. Dentro havia dois papéis: o telefone de uma amiga que ajudava com documentos e outro de atendimento psicológico gratuito.

— Quando bater medo, liga. Quando não souber por onde começar, eu te mostro o caminho. Só não some, tá?

Aquela frase grudou em sua mente. Naquele dia, Caio saiu do centro comunitário sentindo, pela primeira vez, que tinha alguém ao seu lado. Marina não o salvou — deu-lhe ferramentas, um mapa e a certeza de que não precisaria andar sozinho.

De volta ao presente

Agora, sentado no círculo, com Júlia à sua direita e um rapaz desconhecido à esquerda, Caio respirava fundo. Quando chegou sua vez de falar, as mãos tremiam, mas a presença de Marina o mantinha firme.

— Eu... — começou, hesitante. — Eu estou feliz com cada passo que dou, mas, às vezes, parece que o mundo não me enxerga. Olho no espelho e vejo quem sou. Mas, fora daqui, sinto que ainda é preciso explicar... justificar... provar.

O silêncio respeitoso que se seguiu lhe deu coragem. Júlia pousou a mão sobre a dele. Marina, do outro lado, assentiu com firmeza.

— Você não precisa provar nada a ninguém, Caio — disse ela, a voz carregada de convicção. — O caminho é seu. E as pessoas vão aprender a ver o que já está em você.

As palavras lhe trouxeram alívio imediato, mas o segredo que guardava ainda latejava, escondido, como uma sombra à espreita.

Na saída, Marina o chamou de lado.

— Você tem carregado algo além do que mostra aqui, não tem? — perguntou, encarando-o com ternura.

Caio desviou o olhar. O nó na garganta não o deixou responder. Apenas acenou, confirmando sem palavras. Marina sorriu, delicada.

— Quando estiver pronto, fale. Não guarde sozinho.

Naquela noite, enquanto caminhava com Júlia pelas ruas frias, Caio pensava em como Marina parecia enxergar o que ele próprio ainda não conseguia nomear. E, deitado em sua cama mais tarde, sentiu que todas aquelas vozes — a força de Marina, a cumplicidade de Júlia, a timidez de Clara, a frieza de Renato e até a gentileza inesperada de Gabriel — ecoavam dentro dele.

No espelho do quarto, no entanto, havia outra voz, silenciosa e oculta, que insistia em se fazer ouvir.

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Comments

Yoh Asakura

Yoh Asakura

Quando sai o próximo capítulo? Estou tão curiosa!

2025-09-01

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Atualizado até capítulo 37

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