O carro preto não seguiu para o hotel de Rafael. Em vez disso, navegou por ruas cada vez mais silenciosas, até entrar na garagem subterrânea da luxuosa mansão de Nox. O coração de Rafael afundou. Ele não esperava ser convocado para a presença do chefe. Não depois do relatório por vídeo.
Leo, impávido, saiu do carro. "Vamos. O chefe quer te ver. Pessoalmente."
"Mas... por quê? Eu disse tudo que ele queria saber," Rafael argumentou, sua voz falhando.
Leo olhou para ele com desprezo. "Quando o Sr. Nox pede sua presença, você não pergunta 'por quê'. Você obedece. Agora, saia do carro."
A jornada pelos corredores silenciosos e amplos da mansão foi uma tortura. Cada passo ecoava como um tambor fúnebre. Rafael sentia o cheiro do medo próprio, azedo e familiar. Leo parou em frente a uma porta de madeira maciça e escura. Ele bateu duas vezes.
"Entre." A voz de Nox veio de dentro, distante e impaciente.
Leo abriu a porta e empurrou Rafael para dentro, ficando do lado de fora e fechando a porta. Rafael ouviu a fechadura girar. Ele estava trancado dentro.
O quarto era enorme, uma suíte com decoração minimalista e caríssima. Nox estava sentado na beira da cama king-size, de costas para a porta. Ele não usava camisa, seu torso magro, porém definido, estava à mostra, coberto por uma complexa teia de tatuagens negras que contavam uma história de violência e poder. Uma delas, uma cobra negra que se enrolava em seu braço esquerdo, parecia ecoar a Pérola no aquário. Ele segurava um cigarro entre os dedos, a fumaça subindo em espirais lentas no ar parado.
Ele não se virou imediatamente. Deixou Rafael ali parado, suando, por longos segundos que pareceram horas.
"Como foi o dia, estudante?" Nox perguntou, sua voz um fio de fumaça carregado de sarcasmo.
Rafael engoliou seco, forçando as palavras para fora. "Foi... foi bom, senhor."
Nox deu uma longa tragada no cigarro e finalmente se virou. Seus olhos, frios e escuros, percorreram Rafael da cabeça aos pés, como se estivesse examinando um inseto.
"Bom?" ele repetiu, um sorriso cruel brincando em seus lábios. "Apanhar pastel com o filhinho do delegado? Fazer trabalhinho em grupo? Que vida boa você está levando, não é?"
Rafael manteve o olhar fixo no chão, na carpete cinza e cara. "Estou só seguindo as ordens do senhor. Ganhando a confiança dele."
"Claro que está," Nox disse, levantando-se da cama com uma graça felina. Ele caminhou até Rafael, circulando-o. "Mas cuidado, Rafael. Não se acostume muito com o papel." Ele parou na frente dele, o olhando de cima para baixo. "No final das contas, você não passa de um criminosozinho de merda. Um rato. Um lixo descartável. Nunca se esqueça disso."
A proximidade, o cheiro do cigarro e do perfume amadeirado de Nox, a visão das tatuagens e dos músculos tensos – era tudo calculado para intimidar. E funcionava.
Rafael, num surto de coragem – ou de estupidez – impulsionado pelos últimos dias, murmurou: "O garoto... ele é bom, senhor. Inocente. Ele não mexe com nada. O... o seu problema é com o pai dele. Não com ele."
O silêncio que se seguiu foi tão denso que pareceu sugar todo o ar do quarto. A expressão de Nox não mudou, mas seus olhos escureceram perigosamente.
"O que você disse?" Nox perguntou, sua voz tão baixa que era quase um sibilo.
Rafael sentiu um frio percorrer sua espinha, mas não conseguiu voltar atrás. "É só... ele não merece o que o senhor está planejando. Ele não fez nada."
Nox riu. Um som curto, seco e absolutamente vazio de humor. "Você é o chefe dessa porra agora? Está me dando ordens? Me dizendo no que eu posso ou não mexer?"
Antes que Rafael pudesse responder, ou mesmo piscar, Nox se moveu. Foi rápido como uma cobra. Debaixo de um travesseiro na cama, ele pegou uma pistola compacta e preta. Em um movimento fluido, ele armou o ferrolho e encostou o cano gelado na têmpora de Rafael.
Rafael congelou. Seu mundo se reduziu àquele ponto de metal frio contra sua pele. Ele podia sentir o cheiro do óleo da arma.
"Você," Nox sussurrou, seu rosto a centímetros do de Rafael, seu hálito quente contra seu rosto, "tem que trazer ele até mim. Esse é o seu trabalho, seu inútil patético. Você não pensa. Não questiona. Obedece." Ele pressionou o cano com mais força. "Agora, me diga. Você entendeu? Ou eu te mato aqui e agora e arrumo outro lixo para fazer seu trabalho? A Pérola não vai reclamar de uma refeição extra."
O medo foi tão avassalador que apagou qualquer resquício de compaixão ou rebeldia. Sob a iminência da morte, a lealdade a um garoto ingênuo significava nada.
"Desculpa, senhor!" a voz de Rafael saiu estridente, quebrada. "Eu entendi! Eu trago ele! Eu juro!"
Nox segurou a arma no lugar por mais alguns segundos, deixando o terror se impregnar, antes de baixá-la lentamente.
"Assim é melhor," ele disse, sua voz voltando a um tom quase conversational.
E então, com a mesma mão que segurava a arma, ele deu um tapa violento e aberto no rosto de Rafael. O impacto foi seco e alto, fazendo Rafael cambalear para trás, sua visão escurecendo por um segundo, o gosto de sangue enchendo sua boca onde o lábio cortou contra o dente.
"Agora," Nox disse, virando as costas e indo até a cama como se nada tivesse acontecido, "vai para o quarto que te designaram. Se lava. Cheira a medo e pobreza. Sai da minha frente."
Rafael, segurando o rosto latejante, com lágrimas de dor e humilhação welling em seus olhos, não precisou ser mandado embora duas vezes. Ele se virou e praticamente correu até a porta, suas mãos trêmulas abrindo-a.
A voz gelada de Nox o alcançou pela última vez, antes que ele cruzasse a soleira:
"E amanhã, você volta para aquela merda de escola. Continua seu trabalho. Tenta ganhar a confiança do filho do policialzinho de merda. E não me decepcione de novo."
A porta se fechou atrás de Rafael. Ele ficou parado no corredor escuro, encostado na parede fria, tentando recuperar o fôlego. Sua face queimava, mas a humilhação e o terror queimavam mais.
Leo surgiu da sombra, um sorriso sarcástico em seus lábios. "Aprendendo a lição, ratão? Vem. Te mostro onde você vai dormir. Não se preocupe, é longe da sala da Pérola. Por enquanto."
Rafael seguiu Leo, seu corpo tremendo, sua alma encolhida. Ele havia tentado ser humano, e por isso havia sido esmagado. Agora, só restava a obediência. Ou a morte.
A escolha, ele sabia, não era uma escolha de verdade. Ele levaria Davi para Nox. E que Deus – ou quem quer que estivesse ouvindo
O apartamento estava silencioso quando Davi chegou, mas desta vez, a quietude era diferente. Em vez do vazio, havia um movimento contido. Luzes acesas, o som de armários sendo abertos e fechados. Seu pai, Daniel, estava no corredor, vestindo o colete à prova de balas por cima de uma camisa social, sua expressão sombria, focada.
"Já vai, pai?" Davi perguntou, deixando a mochila no chão, seu bom humor do encontro com Rafael dissipando-se como fumaça.
Daniel terminou de ajustar o colete e olhou para o filho. Seus olhos, normalmente carregados de um cansaço pesado, hoje estavam afiados, alertas. "Infelizmente, vou ter que ir, filho. Aquele merda do Nox tá solto ainda. Pior: me mandou uma... mensagem hoje."
Davi sentiu um frio na espinha. "Mensagem? Que tipo de mensagem?"
"Não é nada para você se preocupar," Daniel disse rapidamente, evitando o olhar do filho. Ele pegou a coldre com sua arma da cômoda e o prendeu no cinto. "Só mais uma das bravatas dele. Mas não posso ignorar. Tenho que seguir uma ponta."
"Ele... ele ameaçou você?" A voz de Davi saiu um pouco mais aguda do que ele gostaria.
Daniel finalmente olhou para ele, e Davi viu a preocupação genuína no rosto do pai – uma preocupação que ia além do trabalho. "Ele ameaçou o que eu mais amo nesta cidade, Davi. E não são os prédios." Seu olhar foi significativo. "Então, sim. De certa forma, me ameaçou."
"Pai, cuidado," Davi suplicou, aproximando-se. "Por favor. Esse homem é perigoso."
"Eu sei melhor do que ninguém o quão perigoso ele é, filho," Daniel disse, sua voz grave. "Mas é meu trabalho lidar com gente perigosa. Eu vou tomar cuidado. Prometo que vou voltar para casa." Ele colocou as mãos nos ombros de Davi. "Você é o que me mantém são, sabia disso? Tudo que eu faço é para que você possa ter uma vida normal, longe dessa merda toda."
Davi sentiu um nó na garganta. Ele se jogou nos braços do pai, num abraço forte e apertado. "Eu te amo, pai. Por favor, volta."
Daniel abraçou-o de volta, com uma força que surpreendeu Davi. "Eu te amo mais, filho. Agora, fica em casa, certo? Tranca a porta. Não abre para ninguém. Qualquer coisa, me liga."
"Prometo," Davi murmurou contra o ombro do pai.
Daniel soltou-o, deu um último aceno e saiu, fechando a porta atrás de si. Davi ouviu o som da fechadura girando por fora – seu pai trancando-o de fora, um protocolo de segurança que sempre o deixava com um misto de amor e angústia.
Sozinho, o apartamento pareceu voltar a pesar sobre Davi. A ameaça de Nox, que antes era uma coisa distante das notícias, agora parecia tangível, pairando no ar como um cheiro de fumaça. Ele tomou um banho longo, tentando lavar a ansiedade, vestiu um roupão e se sentou à sua mesa para tentar se concentrar na lição de Literatura.
Graciliano Ramos e a seca existencial do sertão... As palavras dançavam na página, mas não faziam sentido. Sua mente estava no pai, nas ruas escuras, na figura fantasmagórica de Nox.
Foi quando seu celular vibrou. Uma notificação do Instagram. Um usuário que ele não reconhecia – rafa_sp92 – tinha mandado uma mensagem direta. O perfil não tinha foto, apenas um fundo preto.
Davi franziu a testa. Rafa... Rafael?
Ele abriu a mensagem.
rafa_sp92: E aí, brother. De boa?
davi.lima: Oi! Tudo sim, e vc? Esse é seu perfil?
rafa_sp92: É sim, criei agora. Tô me atualizando, né? Kkk. Então, tô bolando um rolê pra amanhã. Topa?
Davi hesitou. A conversa com o pai ainda ecoava. Fica em casa.
davi.lima: Bom... eu não sei. Vou sair amanhã? Meu pai...
rafa_sp92: Ah, vai! Para onde? Ficar em casa é osso.
davi.lima: Não sei ainda.
rafa_sp92: Sogar der Teufel hat Angst. Lá é massa.
Davi leu o nome estranho, confuso. Soava alemão. Ele nunca tinha ouvido falar.
davi.lima: Onde fica esse lugar?
rafa_sp92: É uma festa super legal, num galpão afastado. Música boa, gente descolada. Bem diferente daquele pub meia-boca. Cê tem que sair de casa, amigo. Sua vida não pode ser só estudar. Vive um pouco!
Davi mordeu o lábio. Uma festa. Num galpão afastado. Tudo o que seu pai o avisara para evitar. Mas a pressão de Rafael, a vontade de parecer descolado, de ter uma vida normal, de escapar daquela bolha de medo e estudo... era forte.
davi.lima: A... tá bom. Eu vou pensar.
rafa_sp92: Blz. Pensando aí. Me fala depois. Se quiser, eu te busco em casa e a gente vai junto. Mais seguro.
Te busco em casa. A oferta soou tentadora e assustadora ao mesmo tempo. Não teria que pegar ônibus, não teria que andar sozinho à noite. Mas também significaria que Rafael saberia onde ele morava.
davi.lima: Ok... aí eu te falo. Valeu!
rafa_sp92: Nois! Tmj. Agora vou dormir, tá tarde. Flw.
O perfil ficou offline. Davi deixou o celular na mesa, sua mente uma confusão. Por um lado, a empolgação de ser convidado para uma festa, de fazer parte de algo. Por outro, o aviso do pai, a estranheza do nome do lugar, a insistência de Rafael.
Ele olhou para os livros abertos. A seca existencial do sertão. De repente, a solidão e a aridez daqueles personagens não pareciam mais tão distantes. Ele se sentia preso, sedento por algo mais, mesmo sem saber ao certo o quê.
E no fundo, uma vozinha minúscula sussurrava que "Sogar der Teufel hat Angst" soava menos como um nome de festa e mais como uma armadilha. Mas a vontade de se livrar do rótulo de filhinho de papai, de estudante certinho, era mais alta.
Ele ficou olhando para a tela escura do celular, dividido entre a promessa feita ao pai e o convite tentador do novo – e potencialmente perigoso
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