3

O apartamento de Daniel e Davi era aconchegante, um contraste gritante com a frieza da delegacia e da violência das ruas. Fotografias de família enfeitavam as paredes, a maioria delas com uma mulher de sorriso radiante – a mãe de Davi, Elena. Era um lugar que ainda guardava o eco de risos passados, mas que agora carregava um silêncio pesado, preenchido apenas pelo rádio ligado em algum canal de notícias ou pelo som das páginas de um livro sendo viradas.

Naquela noite, porém, o silêncio era absoluto. Davi abriu a porta e entrou, esperando ouvir os passos pesados do pai ou o barulho da TV no noticiário da noite.

"Pai?" Sua voz ecoou no corredor vazio.

Nenhuma resposta.

Na mesa da cozinha, sob o abajur que fora de Elena, um pedaço de papel pautado, o bloco de recados que sempre usavam. A letra firme e um pouco acelerada de Daniel estava lá:

«Davi, filho. Surge um caso importante. Não vou voltar cedo. Não espere acordado. Janta na geladeira, é só esquentar. Te amo. Pai.»

Davi segurou o recado, um peso familiar no peito. Era sempre assim. Um caso. Sempre um caso. O trabalho do pai era um monstro insaciável que roubava jantares, conversas, presença. Ele entendia a importância, o orgulhava profundamente, mas... doía. A ausência do pai preenchia o apartamento, lembrando-o dolorosamente da outra ausência, maior e irreparável.

Com um suspiro, ele guardou o recado na gaveta, aquecendo o prato de comida – um ensopado que sabia a solidão – e comeu em silêncio na sala, ouvindo o tic-tar do relógio de parede.

Para fugir do vazio, ele se enfiou nos livros. A cadeira era Literatura e Sociedade, e ele mergulhou nos textos, sublinhando passagens e fazendo anotações nas margens. Era seu refúgio, um mundo onde as coisas faziam sentido, onde o bem e o mal eram discutidos em páginas, não disputados em tiroteios.

Foi durante uma pausa, enquanto bebia um copo d'água, que o celular vibrou no sofá. Uma mensagem. Ele pegou o aparelho, esperando ser seu pai.

Era um número desconhecido.

«(21) 98765-4321: Ei, é o Rafael. Da aula de Lit.»

Davi ergueu as sobrancelhas, surpreso. Ele tinha dado seu número para o novo aluno mais cedo, na lanchonete, num daqueles impulsos de tentar ser amigável, mas não esperava que o cara fosse usar tão cedo. Rafael parecia tão fechado.

«Davi: Oi, Rafael! Tudo bem? Pegou o conteúdo da aula?»

A resposta veio após um minuto.

«Rafael: Mais ou menos. Essa parada de Machado é densa. Nem sei por que me meti nisso.»

Davi sorriu sozinho. Era a primeira vez que Rafael parecia... humano.

«Davi: Haha, relaxa. No começo é assim mesmo. A Dona Marília é braba, mas ela explica bem. Precisar de ajuda com as anotações, me fala.»

«Rafael: Valeu. Tô precisando. Tô meio perdão aqui na cidade ainda. Não conheço nada nem ninguém.»

A mensagem veio carregada de uma solidão que ecoou a que Davi sentia naquele exato momento. Sua compaixão, sempre à flor da pele, se inflamou.

«Davi: Pois é, sei como é. Quando mudei pra cá foi osso também. Mas a galera acolhe bem.»

«Rafael: Aham. Olha... tô afim de dar uma saidinha amanhã. Conhecer um lugar diferente, saca? Um barzinho ou algo assim. Você não toparia de me mostrar algum lugar?»

Davi leu a mensagem e sua face immediately fechou. Um bar? Ele não era muito de balada. Preferia um cinema, um café...

«Davi: Ah, cara, barzinho não é muito a minha praia, sabe? Não curto muito esse tipo de rolê.»

Do outro lado da tela, Rafael, em um quarto de hotel barato pago por Nox, roeu as unhas. Ele tinha uma ordem. Aproximar-se. Criar vínculo. Levá-lo para um local isolado. A pressão era enorme. Ele digitou rapidamente, tentando um approach diferente.

«Rafael: Pô, nem é farra. É um lugar tranquilo. Chama "O Beco". É mais pub, tem uns jogos, sinuca. Nada de bagunça. Juro. Tô morrendo de tédio aqui no hotel.»

Davi hesitou. "O Beco". Ele até conhecia. Era um lugar realmente mais tranquilo, frequentado por universitários. Mas sair à noite... seu pai ficaria possesso. Daniel era superprotetor, especialmente depois da morte da mãe dele. "A cidade é perigosa, Davi. Você não sabe o que eu vejo todo dia."

«Davi: Hmm, sei qual é. É de boa mesmo. Mas minha agenda tá meio pesada, e meu pai...»

Rafael viu a resistência e atacou o ponto fraco: a solidão.

«Rafael: Suave. Sem pressão. É que... cara, vou ser sincero. Tô me sentindo um peixe fora d'água aqui. Achei que a gente tinha se dado bem hoje e tal. Pensei em dar uma descontraída. Mas se não rola, sem problemas. Fica tranquilo.»

A mensagem foi uma facada de mestria. Davi sentiu-se imediatamente culpado. O cara era novo, sozinho, e ele estava sendo um chato. Era só um pub. Um jogo de sinuca. O que poderia dar errado?

«Davi: Não, não é isso! É que meu pai é meio neurótico com segurança, sabe? Mas... tá bom. Por que não? Amanhã à noite?»

Do outro lado, Rafael soltou o ar que estava prendendo. Um suor frio escorria pelas suas costas.

«Rafael: Boa! Valeu mesmo, Davi! Salvação. Lá pelas 20h? Te busco?»

«Davi: Não precisa buscar não, a gente se encontra lá na frente. É mais fácil. Combinado então, 20h no "O Beco".»

«Rafael: Combinado. Valeu, brother. Te devo uma.»

«Davi: Imagina! A gente se vê amanhã então. Tô indo dormir. Boa noite!»

«Rafael: Boa noite.»

Rafael desligou o celular e deixou-o cair na cama. Ele sentiu náusea. "Brother". O garoto o chamou de "brother". Ele havia conseguido. Cumpriria a ordem de Nox. Salvaria a própria pele.

Mas ao olhar no espelho empoeirado do quarto de hotel, ele não viu um sobrevivente. Viu um monstro.

Davi, por sua vez, desligou o celular com um sorriso tímido. Talvez ele estivesse fazendo um novo amigo. Seria bom ter alguém para sair, para falar de coisas que não fossem livros ou o trabalho estressante do pai.

Ele olhou para o recado na mesa. "Não vou voltar cedo."

Ele suspirou. Amanhã, inventaria uma desculpa para o pai. Diria que ia estudar na biblioteca com um grupo. Uma mentirinha inocente.

O que poderia dar errado? Era só um pub tranquilo. Um jogo de sinuca. Uma noite normal.

Ele não poderia estar mais enganado. Cada passo em direção àquele encontro era um passo em direção a uma armadilha perfeitamente orquestrada, e o chamariz era a própria bondade e solidão dele. A teia de Nox

O quarto que Rafael estava .A fina camada de civilização que ele vestira para a universidade havia descascado, revelando o nervosismo cru por baixo. Ele estava sentado na beira da cama, as mãos suando, segurando um celular descartável, um "queimador" que Leo lhe dera. Era hora de fazer o check-in.

Ele discou o número memorizado. A linha conectou-se com um click seco, mas ninguém falou do outro lado. Apenas uma respiração calma e expectante.

"Senhor?" Rafael disse, sua voz um pouco mais rouca que o normal.

"Fale." A voz de Nox era clara, impaciente, cortando como uma lâmina através da linha.

"É o... é o Rafael. Do... do assunto da universidade."

Um silêncio deliberado do outro lado, destinado a amplificar o terror. Nox sabia perfeitamente quem era.

"Ah, sim. O estudante," Nox respondeu, o sarcasmo pesado o suficiente para ser sentido mesmo através do telefone. "E? Nossa bolsa de estudos está rendendo frutos?"

Rafael engoliu seco. "Sim, senhor. Conversei com ele hoje. O Davi. Ele... ele é muito ingênuo. Confiante. Falou do pai, o delegado, com muito orgulho."

"Natural," Nox interrompeu, seu tom agora entediado. "Cordeirinhos sempre amam seus pastorzinhos, mesmo quando eles são incompetentes. Pule para a parte interessante. Você marcou o encontro?"

"Sim, senhor. Amanhã à noite. Vou encontrá-lo em um pub chamado 'O Beco'. É um lugar tranquilo, mas... isolado o suficiente na parte de trás. Eu sugeri."

"O Beco?" Nox repetiu, e Rafael pôde quase ouvir o sorriso cruel se formando em seus lábios. "Que apropriado. O beco sem saída. E ele aceitou? Justo like that?"

"Ele hesitou no começo," Rafael explicou, ansioso para parecer que fez um bom trabalho. "Disse que o pai é protetor. Mas eu... eu joguei com a solidão dele. Ele caiu. Aceitou."

"Claro que aceitou," Nox murmurou, mais para si mesmo. "A bondade é a isca mais fácil de se usar. Ela é tão rara que quando aparece, os otários se agarram a ela. E você garantiu que ele virá sozinho?"

"Sim, senhor. Disse que era só nós dois. Para conversar, jogar sinuca."

Perfeito." O tom de Nox era de pura satisfação. Um planejador admirando sua própria armadilha. "Agora, escute com atenção, seu lixo descartável. Você vai encontrá-lo lá. Vão conversar, jogar. Seja agradável. Ganhe ainda mais a confiança dele. Quando for a hora certa, você o levará para a saída dos fundos. Diga que quer fumar um cigarro, que quer mostrar algo a ele, qualquer desculpa patética que sua mente insignificante conseguir inventar."

Rafael sentiu um frio na espinha. "E... e então?"

"E então você não precisará se preocupar com mais nada," Nox disse, sua voz baixa e hipnótica. "Haverá um carro esperando. Uma van preta. A porta estará aberta. Você apenas... o guiará para dentro. É tudo o que você precisa fazer. Entendido?"

"Sim, senhor," Rafael sussurrou, seus dedos trêmulos apertando o telefone.

"Bom garoto," Nox disse, e o elogio soou como a mais profunda das humilhações. "Faça isso direito, e você terá uma passagem de ônibus para longe desta cidade e dinheiro suficiente para começar uma vida medíocre e insignificante em algum lugar. Falhe..." Nox fez uma pausa dramática. "...e bem, você conhece a Pérola. Ela está particularmente agitada esta noite. Parece que sente que um banquete se aproxima."

A imagem da cobra negra e grossa deslizando na água surgiu na mente de Rafael, nítida e aterrorizante. Um calafrio percorreu seu corpo.

"Não vou falhar, senhor. Eu prometo."

"Suas promessas não significam nada para mim," Nox retrucou, impaciente. "Apenas sua obediência. O relatório está encerrado."

Nox estava prestes a desligar quando Rafael, num surto de nervosismo misturado com uma curiosidade mórbida, soltou: "Senhor... e... e o que vai acontecer com ele? Com o Davi?"

Do outro lado da linha, na sala fria de sua mansão, Nox ergueu uma sobrancelha. Ele se recostou em sua cadeira de couro, olhando para o aquário. A Pérola Negra observava-o fixamente.

"O que vai acontecer?" Nox repetiu, e uma risada suave, verdadeiramente aterrorizante, escapou de seus lábios. "Rafael, Rafael... você não é pago para fazer perguntas. Você é pago para obedecer. Mas já que perguntou... ele vai se divertir. Eu prometo."

A palavra "divertir" saiu carregada de um significado tão perverso que Rafael sentiu o estômago embrulhar.

"Ele vai aprender que o mundo não é o conto de fadas que seu pai policial pintou para ele. Vai aprender sobre consequências. Sobre dívidas. E o melhor de tudo..." a voz de Nox baixou para um sussurro conspiratório, "...o delegado Daniel vai aprender também. Ele vai receber uma... demonstração prática do que acontece quando se mexe comigo. Será educativo para todos os envolvidos. Agora, some. E não me ligue de novo até que o trabalho esteja feito."

A linha se cortou, deixando Rafael segurando o telefone mudo, o suor frio escorrendo por suas têmporas. O silêncio no quarto era opressivo. Ele olhou para suas mãos, imaginando-as empurrando um garoto inocente para dentro de uma van.

"Divertir," ele sussurrou para o quarto vazio, e o significado daquela palavra, na boca de Nox, encheu-o de um horror tão profundo que desejou, por um breve segundo, que a Pérola Negra o tivesse encontrado primeiro.

Ele havia feito um pacto com o diabo

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!