O clima na faculdade era diferente naquele dia. Um burburinho animado percorria os corredores, um alívio bem-vindo da tensão usual dos prazos e provas. Para Davi, era mais um dia de imersão nos livros, mas até ele sentia a energia leve no ar.
A professora Marília entrou na sala de Literatura Brasileira Moderna com um pequeno sorriso nos lábios. "Pessoal, antes de mergulharmos na loucura de Graciliano Ramos, temos uma novidade. Como sabem, recebemos um novo aluno ontem, o Rafael."
Rafael, sentado no fundo, ergueu levemente a cabeça. Ele estava visivelmente mais tenso do que no dia anterior, seus olhos scanearam a sala rapidamente antes de baixarem para a mesa, como se tentasse se fazer o menor possível.
"Como ele veio de transferência e ontem foi um dia mais corrido, vamos fazer uma apresentação adequada," continuou a professora. "Rafael, quer vir aqui na frente?"
Um silêncio constrangedor pairou no ar. Rafael pareceu ponderar seriamente a possibilidade de pular pela janela. Relutantemente, ele se levantou e caminhou até a frente da sala, suas mãos enfiadas profundamente nos bolsos do jeans.
"Fala um pouco sobre você para a galera, querido. De onde veio, o que gosta de fazer..." incentivou Dona Marília.
Rafael limpou a garganta, evitando o contato visual com os outros trinta pares de olhos fixos nele. "É... eu vim de São Paulo. Da capital. E... é isso." Sua voz era monossilábica, quase um rosnado.
Davi, sentado na primeira fileira, sentiu uma pontada de pena. Ele se lembrou de seus primeiros dias, o nervosismo. Sem pensar, ele deu um sorriso encorajador para Rafael.
Um garoto de boné virado para trás, o Lucas – não o Lucas alvo de Nox, mas outro Lucas, o descolado da sala –, quebrou o gelo. "SP, massa! Time? Não me fala que é Corinthiano, aqui é terra Fluminense, irmão!"
Alguns risos soltaram pela sala. A tensão diminuiu um pouco.
Rafael pareceu surpreso com a pergunta direta. "Ah... não curto muito futebol," murmurou.
"Tá perdendo, mano!" brincou Lucas, e outros se juntaram à brincadeira leve.
Uma garota de cabelo roxo, a Júlia, perguntou: "E o que cê veio fazer em Protetor X? Ninguém vem pra cá sem um motivo forte."
Rafael congelou por um microssegundo. A ordem de Nox ecoou em sua mente: Mantenha a história simples. "Família. Problemas de família. Tive que me mudar."
A resposta foi aceita com acenos comprensivos. Protetor X era o tipo de cidade para onde as pessoas iam para recomeçar, ou para onde eram forçadas a ir.
"Bem, seja bem-vindo, Rafael," a professora interveio, salvando-o de mais interrogatórios. "Espero que se sinta em casa aqui. Podem todos ser acolhedores, hein?" Ela olhou para a classe, que respondeu com um murmúrio de assentimentos.
Rafael assentiu rapidamente e praticamente fugiu de volta para seu assento no fundo, aliviado por ter sobrevivido àquela provação.
O sinal do intervalo tocou, e a sala se esvaziou rapidamente. Davi, empacotando suas coisas, viu Rafael saindo sozinho pela porta. Ele se apressou para alcançá-lo.
"Ei, Rafael! Espera aí!"
Rafael parou e se virou, sua expressão ainda fechada.
"Mano, desculpa aí pela galera te enchendo lá dentro," Davi disse, caminhando ao lado dele em direção ao pátio. "O Lucas é assim mesmo, brincalhão, mas é de boa."
"Tá sussa," Rafael respondeu, ainda curto.
"E a Júlia com aquela pergunta... foi mal aí. Ela não tem muito filtro."
Rafael deu de ombros. "De boa. É a vida."
Eles chegaram ao pátio movimentado. Grupos de amigos se espalhavam pelos bancos, comendo salgados e rindo. Davi, num impulso, se virou para Rafael. "Bora comer um pastel? A barraca lá fora é boa."
Rafael hesitou. Sua missão era se aproximar, mas cada interação era uma facada em sua consciência. Ele olhou para os outros alunos, rindo e conversando, uma vida normal que ele nunca teve e que agora estava sendo pago para destruir.
"...Bora," ele concordou, sua voz um pouco menos áspera.
Sentados em um banco afastado, comendo pastéis quentes, a conversa finalmente fluiu. Davi, naturalmente aberto, falou sobre a faculdade, os professores chatos, as cadeiras legais. Rafael, por sua vez, foi soltando informações cuidadosamente fabricadas sobre uma vida em São Paulo que nunca existiu – um pai distante, uma mãe doente, a necessidade de trabalhar cedo.
"Por isso não curto muito balada e essas coisas," Rafael finalizou, encaixando a mentira na narrativa. "Sempre tive que ser sério."
"Faz sentido," Davi respondeu, com genuína empatia. "Mas é legal sair às vezes, descontrair. Tipo amanhã, né?"
Rafael quase engasgou com o pastel. "É. Amanhã."
"Confesso que tô meio ansioso," Davi admitiu, olhando para as mãos. "Não saio muito. Meu pai é superprotetor. Acho que vou ter que inventar uma desculpa, dizer que tô num grupo de estudo."
Rafael sentiu um nó de culpa no estômago. "É... complicado."
"Mas ele tá tão sobrecarregado com o trabalho ultimamente... acho que nem vai notar," Davi continuou, mais para si mesmo. "Ele é delegado, então vive nesses casos pesados. Às vezes chega em casa e nem fala, só fica olhando pro vazio. É difícil."
Rafael ficou em silêncio. Ele era a causa indireta daquele sofrimento. Ele era a ferramenta que iria multiplicá-lo por mil.
"Ele deve se orgulhar muito de você," Rafael disse, forçando as palavras. "Estudando numa faculdade e tal."
Davi sorriu, um sorriso triste. "É. Acho que sim. Minha mãe... ela era quem sempre vibrava com essas coisas. Ela faleceu há dois anos. Câncer. Foi rápido. Agora é só eu e ele."
Rafael não conseguiu olhar nos olhos de Davi. Ele via a dor genuína ali, a vulnerabilidade. Era como chutar um filhote.
"Porra... sinto muito, cara," Rafael murmurou, e desta vez, a emoção era real.
"Obrigado," Davi disse, sacudindo a cabeça como para afastar a tristeza. "Mas é a vida, né? A gente segue. Por isso tô animado pra sair amanhã. Preciso dar uma espairecida."
"Preciso dar uma espairecida." A frase ecoou na cabeça de Rafael como uma sentença de morte.
"É... vai ser legal," Rafael concordou, sua voz oca. "Lugar é de boa. A gente joga uma sinuca, toma uma cerveja... relaxa."
"Pois é," Davi concordou, seu humor melhorando. "E você me conta mais de SP. Sempre quis visitar."
A conversa continuou por mais uma hora, com Davi puxando assunto e Rafael respondendo com frases curtas e mentiras cuidadosas. Era um tango macabro: um dançando para a amizade, o outro para a traição.
Quando o sinal tocou, anunciando o fim do intervalo, Davi se levantou, esticando-se. "Mano, valeu mesmo pela conversa. Tava precisando. Até amanhã, então? O Beco, 20h."
Rafael assentiu, levantando-se mais lentamente. "É. Até amanhã. Não se atrasa."
"Combinaço!" Davi disse, dando um tapinha nas costas de Rafael antes de se virar e se juntar a um grupo de amigos que o chamava.
Rafael ficou parado, observando Davi se afastar, rindo com os amigos, completamente alheio ao perigo. O tapinha nas costas parecia ter deixado uma marca quente, uma mancha de culpa.
Ele havia feito isso. Ganhara a confiança. Marcara o encontro.
Agora, só restava executar o plano. Levá-lo para a van. Entregá-lo a Nox.
Ele olhou para as mãos que seguravam o pastel. Amanhã, elas seriam as mãos que entregariam um filho à sua perdição, e um pai à sua ruína.
Por um lado, a faculdade seguia seu curso normal, com aulas, prazos e a companhia de seus amigos de longa data. Por outro, havia a nova e estranha dinâmica com Rafael, um personagem sombrio que ele, em sua inocência, insistia em tentar iluminar.
No intervalo, o grupo usual se reunia no pátio. Lucas, o de boné, contava alguma história engraçada sobre seu fim de semana, fazendo Júlia, a de cabelo roxo, dar risadas altas. Davi ria junto, mas seus olhos procuravam sempre a figura solitária de Rafael, encostado em uma parede distante, fingindo mexer no celular.
"Mano, vem cá!" Davi chamou, em um desses dias, acenando para Rafael se juntar a eles.
Rafael ergueu os olhos, surpreso. Sua expressão era sempre a mesma: uma mistura de desconforto e vigilância. Ele hesitou, mas a ordem de Nox ecoava em sua mente: "Mergulhe. Faça parte do cenário." Ele se aproximou do grupo, suas mãos ainda enfiadas nos bolsos.
"É o Rafael, galera. O novo de SP," Davi apresentou, sorridente.
Lucas o cumprimentou com um aperto de mão descontraído. "Fala, brother! SP é isso aí? Só na farra?"
Rafael deu um encolhida de ombros. "Não muito. Mais trampo."
Júlia o estudou por um segundo. "Cê parece mais velho que a gente. Trabalha com o quê?"
"De tudo um pouco," Rafael respondeu, evasivo. "Serviços gerais."
Davi, percebendo o constrangimento, interveio. "Ele é bom em sinuca, gente. A gente vai jogar essa semana."
"Ah, é?" Lucas levantou as sobrancelhas, interessado. "O Davi é um perna-de-pau. Finalmente vai ter alguém pra humilhar ele de verdade!"
O grupo riu. Rafael forçou um sorriso que não alcançou seus olhos. Ele estava ali, fisicamente presente, mas sua mente estava em outro lugar – num quarto de hotel, num aquário com uma cobra negra, numa van que o aguardaria.
Em uma tentativa de integrá-lo, a professora Marília organizou um trabalho em grupo para a próxima aula. Por sorte – ou talvez por interferência silenciosa de Nox –, Davi e Rafael caíram no mesmo grupo, junto com Júlia.
Eles se reuniram na biblioteca. Davi era o entusiasta, cheio de ideias. Júlia era a organizadora, focada na formatação. Rafael... Rafael ficava em silêncio, olhando para os livros sem realmente ver.
"Rafael, o que você acha?" Davi perguntou, tentando incluí-lo. "A gente foca na crítica social do Graciliano ou na parte psicológica dos personagens?"
Rafael piscou, puxado de volta à realidade. "Ah... a crítica. Sempre a crítica. O pessoal sempre se fode no final, né?"
Júlia franziu a testa. "Que visão cynica."
"É a real," Rafael retrucou, sem pensar.
Davi interveio, suave. "É um ponto válido. A gente pode abordar por aí. A impotência do personagem diante do sistema."
Rafael olhou para Davi, para aquele rosto aberto tentando encontrar valor em sua opinião amarga, e sentiu-se ainda pior.
A semana passou dessa forma. Rafael era uma presença constante, mas fantasmagórica. Ele respondia quando perguntado, seguia o grupo, mas nunca iniciava uma conversa, nunca ria de verdade. Para Davi, aquilo era timidez. Para os outros, um pouco de esquisitice. Para Rafael, era uma tortura diária.
Chegou a sexta-feira. O tão aguardado dia do encontro no "O Beco". Durante o intervalo, a ansiedade de Rafael era palpável. Ele estava mais quieto que o normal, seus olhos vasculhavam os arredores da faculdade constantemente, como se esperasse por algo.
Davi notou. "Tudo bem, cara? Tá quietão hoje. Ansioso pra hoje à noite?"
Rafael assentiu, rápido. "É. Só cansado."
"Relaxa, vai ser legal. A gente vai se divertir," Davi disse, dando um tapinha no ombro dele.
Se divertir. A mesma palavra que Nox usara. Rafael sentiu um calafrio.
O sinal da saída final tocou. Os alunos se aglomeraram nos corredores, rumo aos portões. Davi, Lucas e Júlia caminhavam juntos, com Rafael alguns passos atrás, seu coração batendo forte contra as costelas.
"Então é isso, galera! Até segunda!" Lucas disse, dando um tchau com a mão antes de entrar no carro de um familiar.
"Vai sim, Davi! Não perde muito no sinuca pro novato!" Júlia zoou, entrando em um ônibus.
Davi riu e se virou para Rafael. "Pronto, brother. Agora é nós. Te vejo lá às oito, então?"
Rafael estava prestes a responder quando seu sangue pareceu gelar nas veias. Estacionado do outro lado da rua, longe o suficiente para não chamar a atenção mas perto o suficiente para ser uma ameaça clara, estava um carro preto, vidros escuros. Ele conhecia aquele carro. Era de um dos capangas de Nox.
Seus olhos se encontraram com os do motorista, mesmo através do vidro escuro. Ele viu um leve aceno de cabeça.
Era o lembrete. A vigilância. Eles estavam sempre lá.
"Rafael?" Davi perguntou, notando sua expressão congelada. "Tudo bem? É alguém que você conhece?"
Rafael piscou rapidamente, forçando-se a relaxar. "Não. Nada. Ninguém. Só... pensando numa coisa. É isso, às oito. Não se atrasa." Suas palavras saíram apressadas, cortantes.
Davi pareceu um pouco confuso com a mudança brusca de humor. "Tá... certo. Não me atraso. Preciso que você me ensine a jogar direito, lembra?"
"É. Te ensino." A frase soou como uma ameaça. Rafael virou-se abruptamente. "Tenho que ir."
Sem outro palavra, ele cruzou a rua rapidamente, deixando Davi parado na calçada, um pouco perplexo.
Assim que Rafael se afastou da faculdade, o carro preto se moveu lentamente, acompanhando seu caminho. Uma janela elétrica desceu um pouco.
"Dá volta no quarteirão e entra," uma voz áspera ordenou de dentro do carro.
Rafael não discutiu. Ele dobrou a esquina, entrou em um beco mais quieto e, como combinado, a porta traseira do carro se abriu. Ele entrou rapidamente, e o carro acelerou antes mesmo da porta se fechar completamente.
Dentro, além do motorista, estava Leo, o braço direito de Nox. Seu rosto era uma máscara de desdém.
"O chef quer um relatório final. Agora," Leo disse, sem nem olhar para Rafael.
Rafael, espremido no banco, sentindo o cheiro de perfume caro e violência dentro do carro, apenas assentiu, seu estômago embrulhado.
O carro não foi para a mansão. Foi para um escritório comercial discreto no centro da cidade, um dos fronts legais de Nox. Ele foi levado para uma sala vazia, com uma mesa e uma cadeira. Na parede, uma tela se acendeu.
Era Nox. Ele não estava em casa. Estava em seu iate, o mar azul visível através de uma janela atrás dele. Ele vestia um roupão branco e segurava uma taça de champanhe.
"Rafael," Nox cumprimentou, sua voz amplificada e fria pela tecnologia. "O cordeiro está pronto para o abate?"
Rafael engoliu seco. "Sim, senhor. Ele vai estar lá. Às oito. Sozinho."
Nox deu um gole na champanhe. "Excelente. E o local? Você confirmou a saída dos fundos? A van estará lá. Meus homens estarão lá. Você só precisa cumprir sua parte."
"Sim, senhor. Eu... eu levo ele para lá. Digo que vou fumar. Ele vai."
"Claro que vai," Nox sorriu, um reflexo sem calor na tela. "Porque ele confia em você. Delicioso, não é? A confiança é a corda que enforca os idiotas."
Rafael ficou em silêncio.
"Alguma dúvida? Último minuto crise de consciência?" Nox perguntou, seus olhos perfurando Rafael mesmo através da tela.
"Não, senhor," Rafael mentiu, olhando para o chão.
"Bom. Porque seria uma pena. A Pérola está com muita, muita fome. Ela sente o cheiro do seu medo, sabia? É um aroma que a excita." Nox colocou a taça de lado. "Agora, suma da minha vista. E não estrague minha noite."
A tela escureceu.
Leo, que estava parado na porta, fez um gesto com a cabeça. "Vamos. Te levo de volta. Você tem um encontro para não faltar."
Rafael foi levado de volta para o carro e deixado a alguns quarteirões do pub. O carro preto desapareceu na traffic.
Ele ficou parado na calçada, o coração batendo como um tambor. O sol começava a se por, pintando o céu de laranja e roxo, cores de um fim tranquilo que ele não merecia.
Ele olhou para o relógio. 19:30.
Em meia hora, ele trairia a única pessoa que lhe mostrou gentileza genuína em anos. Em meia hora, ele se tornaria o monstro que Nox queria que ele fosse.
Ele acendeu um cigarro com mãos trêmulas, a fumaça queimando seus pulmões. Não havia volta. Ele estava no beco sem saída, e a única saída era empurrar Davi
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Comments
Ana Costa
🥹🥹🥹🥹
2025-08-29
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