O Chamado

O dia amanheceu cinzento, como se o céu também carregasse o peso da noite anterior. Adeline mal havia dormido. Cada vez que fechava os olhos, via o reflexo no espelho — não o dela, mas o da mulher da foto. A outra Adeline.

Ela decidiu explorar a casa com mais atenção. Havia cômodos que ainda não conhecia, portas que pareciam surgir onde antes havia apenas parede. A mansão mudava. Respirava. Observava.

No corredor do segundo andar, encontrou uma porta estreita, coberta por um véu de poeira. Ao abri-la, revelou uma biblioteca antiga. Livros de capa dura, enciclopédias esquecidas, e no centro, uma mesa com um candelabro apagado. Sobre ela, um livro aberto — não pela metade, mas na última página.

> "O ciclo se completa quando o sangue retorna. O chamado não pode ser ignorado."

Adeline tocou a página e sentiu um arrepio subir pelo braço. O ar ficou mais frio. As velas do candelabro se acenderam sozinhas, uma a uma, como se a casa estivesse respondendo.

Ela recuou, mas algo a impedia de sair. A porta havia desaparecido. Em seu lugar, uma parede coberta por espelhos. E em cada um deles, uma versão diferente dela mesma — mais jovem, mais velha, ferida, sorrindo, chorando.

No centro, o reflexo que a encarava não piscava. Não respirava. Mas falava.

— Você não está aqui por acaso. Você foi chamada.

Adeline tentou gritar, mas sua voz não saiu. O reflexo continuou:

— A casa precisa de você. E ele está acordando.

Com um estalo, a porta reapareceu. As velas se apagaram. E o livro estava fechado.

Adeline saiu correndo, o coração em desespero. Mas algo havia mudado. Ela não era mais apenas uma visitante.

Ela era parte da história.

E a história estava viva.

Adeline passou o resto do dia tentando ignorar os espelhos. Cada vez que cruzava um, sentia que algo a observava de dentro — não seu reflexo, mas uma presença silenciosa, paciente.

Ela voltou à biblioteca à noite, guiada por uma inquietação que não conseguia explicar. O livro que antes estava fechado agora estava aberto em outra página. A tinta parecia fresca.

> "O sangue desperto atrai o guardião. Ele virá quando o nome for dito em voz alta."

Adeline recuou. O nome? Qual nome?

Ela olhou ao redor e viu, sobre uma estante alta, um busto de pedra com inscrições em latim. Subiu em uma cadeira para alcançar, e ao tocar o busto, uma gaveta secreta se abriu na parede. Dentro, havia uma carta selada com cera vermelha e o brasão da família Cardoso.

Ela rompeu o selo. A carta dizia:

> "Adeline Beatriz Moura, você é a última. A casa precisa ser encerrada. O ciclo só termina com sacrifício."

Sacrifício?

O chão da biblioteca tremeu. Os livros começaram a cair das prateleiras, e uma voz ecoou pelas paredes — grave, arrastada, como se viesse de dentro da madeira:

— Você disse o nome. Ele está vindo.

Adeline correu, mas a porta da biblioteca se fechou sozinha. As velas se acenderam novamente, e no espelho ao fundo, uma figura surgiu. Alta, envolta em sombras, com olhos que brilhavam como brasas.

Ela não conseguia se mover. A figura se aproximava lentamente, atravessando o espelho como se fosse água.

— Você tem o sangue. Você tem o nome. Agora, você tem o chamado.

Com um grito, Adeline caiu no chão. Quando abriu os olhos, estava de volta ao quarto principal. O diário de Beatriz em seu colo. A carta havia sumido.

Mas o selo de cera estava em sua mão.

E o espelho, agora trincado, refletia não o quarto — mas o sótão.

Adeline passou o resto da noite tentando entender o que havia acontecido. A carta, o reflexo, a figura que atravessou o espelho — tudo parecia um delírio, mas os sinais estavam por toda parte.

Ela decidiu investigar o porão da mansão, um lugar que o advogado havia mencionado como “inacessível por segurança”. A porta era pesada, de madeira antiga, com marcas de garras ou cortes profundos. Ao girar a maçaneta, sentiu uma resistência — como se algo do outro lado não quisesse que ela entrasse.

Com esforço, empurrou a porta. O cheiro de mofo e ferro tomou conta do ar. O porão era amplo, mas vazio. No centro, uma marca circular no chão, feita com símbolos que ela não reconhecia. E ao lado, uma cadeira de madeira com correntes quebradas penduradas nos braços.

Ela se aproximou, e ao tocar um dos símbolos, uma voz ecoou em sua mente — não pelos ouvidos, mas direto na consciência:

> "O chamado é aceito. O ciclo começa. Ele está livre."

Adeline cambaleou para trás. As correntes começaram a se mover sozinhas, como se algo invisível estivesse se libertando. Ela correu para a escada, mas a porta do porão se fechou com um estrondo.

No escuro, ouviu passos. Lentos. Pesados. E uma respiração profunda, como se algo estivesse acordando após um longo sono.

Ela gritou, mas sua voz foi engolida pelo silêncio da casa.

E então, tudo parou.

A porta se abriu sozinha. A luz voltou. Mas Adeline sabia: ela não estava mais sozinha.

A mansão havia aceitado o chamado.

E o guardião estava solto.

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